ASPAS
"A grande furada, copyright Correio Braziliense, 12/11/00
"‘Não consigo acreditar!’, declarava pasmo o colunista Tim Russert, da NBC, às 4h10 da madrugada de terça. Desde a queda do Zeppelin que não (ou)víamos tantos repórteres dos EUA mostrarem emoção e impotência diante dos fatos. O chamado ‘crack das urnas’ ainda está longe de terminar – principalmente nos desdobramentos jurídicos e na frustração social de negros e latinos daqui pra frente. Mas uma vítima foi eleita por ampla margem de equívocos: a informação. Ou melhor, a deformação de massa.
O choque do futuro. E não era Alvin Toffler estabelecendo os parâmetros do novo milênio, mas a constatação do quanto o jornalismo está contagiado pelos aspectos formais e espetaculares da notícia e perdeu seus mais caros pré-requisitos: a checagem minuciosa, a dúvida, o questionamento da fonte única, o zelo obsessivo na apuração. Ficou demonstrada a principal fragilidade das grandes redes: a manipulação interpretativa sem bases – o Instituto de Pesquisa (ah, os institutos!) Voter News Service afirma só ter entregue projeções básicas de boca-de-urna, as interpretações foram da mídia.
A pressa pelo furo (o ‘sair na frente’ febril que honra a quem descobre, mas não inventa) coube mais aos jornais que adotaram cegamente o que as tevês divulgavam. A reação foi vista pelo ativista ecológico John Helmet, dos Verdes de Ralph Nader, como ‘a reação perigosa de uma sociedade castrada pelo consumo, que tende a achar que tudo que o Grande Irmão publica é verdade e não distingue mais a vida da realidade’.
Todos os plantões extraordinários das tevês, às 2h17 da madrugada de terça declaravam Bush o novo presidente. O The New York Times e o The St. Louis Post-Dispatch quiseram ser os primeiros a dar em tempo real na Internet e conseguiram o prêmio equívoco número um. O site do Washington Post ‘elegeu Bush’ e levou 45 minutos para tirar a nota do ar. O New York Post caprichou na manchete em vermelho-cheguei: ‘Bush vence!’
Quem foi dormir ‘informado’, meio de pileque pela festa da vitória, acordou com a patética recontagem que seria natural pelo próprio regimento da Flórida, que prevê esse recurso quando a margem de diferença de votos é pequena. Na pressa, ninguém leu a lei, açodados pelo que o jornalista Alberto Dines chama aqui de ‘pesquisite aguda’.
‘Com certeza, vocês devem estar bem aborrecidos conosco, e eu, francamente, não os culpo’, confessava, na ABC, o âncora Peter Jennings. E, desorientado, assumia não saber como proceder ‘daqui pra frente’. Isso no ar. A ABC tinha dado a vitória ‘certa’ de Bush na Flórida às 2h17 da madrugada. Às 4h30 vinha uma reconsideração de que ‘algo estava acontecendo e a votação está ainda muito apertada’. Dan Rather, da rede CBS, parafraseava Jennings em não culpar o espectador caso ele estivesse xingando sua rede e Judy Woodruff, da CNN, declarava perplexa que ‘já não confiava mais’ nas informações que recebia.
Bill Wheatley, vice-presidente da NBC News, justificou a pixotada ao ver que Bush estava 50 mil votos na frente de Gore ‘concluindo’ que ele não perdia mais. Detalhe: faltavam cem mil votos para ser computados. Av Westin, ex-vice-presidente da ABC News, só tinha uma avaliação do fiasco: ‘Pressão para dar uma notícia com exclusividade sem os cuidados elementares’.
Isso tudo foi um baque em um país que, justificadamente, detém a primazia da tecnologia de ponta e esbanja auto-estima na hora de mostrar que é o maior. Apontadas como vilãs, as redes de televisão ABC, CBS, CNN, Fox e NBC tentaram espalhar a inhaca no ventilador da Voter News Service (VNS) – única fonte para todas as tevês. Só a agência Associated Press, que recebia o mesmo serviço, escapou do erro simplesmente por ter um repórter em cada condado da Flórida checando a apuração oficial e boca-de-urna. E por não ter nenhuma estrela interpretando magicamente o que acontecia.
Como se não bastasse a proximidade com o bizarro que sempre dá munição para o Terceiro Mundo ser ridicularizado por eles, mais uma: um morto do Missouri foi eleito para o Senado no melhor estilo Odorico Paraguassu. O que já faz o legendário jornalista Carl Bernstein denominar Bush como ‘presidente aparentemente não eleito’.
Foi o desmascaramento fatal da desastrada mídia fast-food, essa insossa mistura de clones patronais – dando o entretenimento que o público quer visando só ao aumento nas vendas. E a indefectível pressa pelo furo embalado rapidinho, agora, principal fonte de frustração e incompetência. Abalos nos ares vanguardistas e bossas formais do ‘charme na notícia enfeitadinha sob baixíssimo conteúdo ou teor de reflexão’ mostrou sua verdadeira cara manipuladora."
"Império confuso", copyright IstoÉ, 12/11/00
"‘Barriga’ – Os telefones republicanos quase derreteram de tanto trabalho naquelas horas. O esforço valeu a pena: descobriu-se que as televisões haviam errado feio nas previsões e deixaram de lado vários municípios conservadores com milhares de votos para George Bush. Pouco antes das 22 horas, as emissoras – depois da bronca republicana – corrigiram o erro e voltaram a colocar a Flórida na lista dos Estados cujos resultados não se podiam prever. As horas se passaram e o país entrou em hipertensão. Pela madrugada, às 2h30, os âncoras exaustos e descabelados anunciavam que George W. Bush havia levado a Flórida e era o 43º presidente americano. Vários jornais e televisões de todo o mundo – inclusive do Brasil – que, como de costume, acompanhavam os acontecimentos via CNN, seguiram atrás. No jargão jornalístico, quem fez isso ‘comeu barriga’.
‘Este foi o maior exemplo de irresponsabilidade e desserviço cometido pela imprensa deste país nos últimos 10 anos’, dispara Tom Rosentel, do Center for Excelence of Journalism, um organismo de análise crítica da imprensa. ‘A pressa em dar a notícia não apenas serviu para confundir o país num assunto tão grave quanto quase provocou uma crise política sem precedentes’, diz Rosentel. Ambos os candidatos prepararam seus respectivos discursos e seguiram para a concentração de correligionários que os aguardava – republicanos em Austin, Texas, e democratas em Nashville, Tennessee. No final da caravana de carros que acompanhava Gore, um seu assessor recebeu mensagem no aparelho de bip anunciando que a diferença de quase 50 mil votos a favor de Bush havia evaporado e a eleição não estava perdida. A notícia provocou uma corrida maluca para impedir que Gore anunciasse sua aceitação da derrota. O discurso desastrado só foi abortado quando Gore estava a 100 metros do microfone. Do local, ele ligou novamente para o rival republicano para dizer que as circunstâncias haviam mudado muito.
‘O senhor está querendo me dizer, senhor vice-presidente, que está retirando sua concessão?’, diria um Bush incrédulo. ‘Você não precisa ficar nervosinho’, disparou Gore. Bush ainda argumentou que seu irmão Jeb garantia que a vitória republicana era inconteste no Estado. ‘Deixe-me explicar uma coisa. Seu irmãozinho não é a autoridade maior nesta questão’, respondeu Gore. E assim ficou o dito por não dito. E o democrata tinha razão. De acordo com as leis da Flórida, numa eleição onde a diferença entre candidatos é de até 0,5%, exige-se recontagem de votos. Naquele momento, apenas 1.784 votos separavam os dois concorrentes."
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