1.
A análise das Conferências Nacionais de Saúde pode ajudar a compreender o que está em jogo na 1ª Confecom. Não na temática, e sim, na política. A 1ª Conferência Nacional de Saúde ocorreu em 1941 e, da 1ª até a 7ª, as discussões eram mais fechadas. O embate expressivo se deu na 8ª, em 1986, num contexto de redemocratização e emergência do Movimento de Reforma Sanitária. Dois anos depois, em 1988, a Constituição Federal acolheu a saúde como direito de todos e dever do Estado. Em 1990, a Lei 8.080 criou o Sistema Único de Saúde, o SUS. O então presidente, Fernando Collor de Mello, vetou os artigos que tratavam do financiamento e da participação da comunidade. O Movimento Sanitário reagiu e foi publicada a Lei 8.142, que trata das Conferências e Conselhos de Saúde.
O breve histórico ajudar a compreender a análise feita pela pesquisadora Tânia Regina Krüger em tese defendida no curso de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco em 2005 [leia a tese de Tânia Regina Krüger aqui]. A tese, intitulada ‘Os fundamentos ideo-políticos das Conferências Nacionais de Saúde’, revela como, no contexto neoliberal dos anos 1990, as Conferências, a partir da 8ª até a 12ª, em 2003, abriram mão da disputa político-ideológica e da forma de organização dos serviços de saúde. Passaram-se a privilegiar reivindicações específicas e projetos privados, que ficaram acima dos projetos societários/coletivos para a saúde no país. Deixou-se de lado a visão da totalidade, e as políticas de saúde, nos debates, raramente foram mostradas em sua vinculação estrutural com as políticas econômicas e sociais. Deste modo, muitas questões passaram a ser tratadas de forma a-histórica.
Reivindicações aparecem por si mesmas
A autora avalia, ao longo do texto, que as Conferências de Saúde deveriam ser espaços de conflito e de disputa de projetos, mas a institucionalização e a forma como a elas os gestores se referem as transformam em espaços de harmonização de interesses. Há também a desconfiança de que espaços participativos como as Conferências têm sido usados pelos gestores, em muitos momentos, como meros fóruns pró-forma. A análise a seguir dá o que pensar nos debates rumo à Confecom:
‘As inúmeras reivindicações específicas acabam obscurecendo a defesa que se faz dos princípios de sustentação do SUS. Talvez elas estejam dando base e legitimidade às políticas governamentais focalistas que se apresentam acobertadas pelo véu da eqüidade. Esse tipo de política surge como uma alternativa à universalização […] A reivindicação de programas específicos pode ter um caráter de discriminação positiva ao procurar contemplar segmentos mais vulneráveis, no entanto está descaracterizando de maneira gradativa o imperativo de direito de todos, de universalidade e de obrigação do Estado.’
Uma análise pertinente se relaciona com a questão das classes sociais. A autora diz que, nas Conferências de Saúde, esse debate está se perdendo, apesar de ser fundamental para qualificar a discussão. A classe trabalhadora, diz ela, se fragmenta em minorias étnicas, sexuais, de gênero, os desempregados, os trabalhadores formais e informais, e essa fragmentação se manifesta nas Conferências:
‘Em termos de fundamentos ideo-políticos se pode considerar sinteticamente que depois da 8◦ Conferência, os condicionantes da saúde e da doença deixaram de ser pensados num contexto de condições de reprodução social. O Estado, que era percebido a partir de sua natureza de classe, passou a ser compreendido como representante dos interesses sociais em prol do desenvolvimento do país. Na proposta original da Reforma Sanitária, identificam-se elementos de que a reformulação do setor saúde se vinculava diretamente a um projeto de sociedade nacional, o que também se perdeu nos últimos 15 anos. Atualmente se visualizam reivindicações em direção à distribuição das riquezas nacionais, o que é necessário no imediato, mas desaparecem as que questionam a garantia dos direitos sociais mediante alterações no modo de produção. Antes a democracia das relações Estado e sociedade tangenciava as propostas da construção do sistema de saúde, agora as reivindicações aparecem por si mesmas.’
Qual o sentido de ‘nova sociedade’?
A concepção de Estado, analisa ainda a pesquisadora, praticamente desapareceu. Ela diz também que o setor privado prefere permanecer nos seus canais tradicionais de barganha, como nos corredores do Executivo e do Parlamento, licitações e lobbies, a ir para o embate público, na ‘lógica tradicional do capital e da burguesia brasileira que não é a do enfrentamento, mas da conciliação e de preferência pelo alto’. De modo geral, conclui, as Conferências de Saúde não se perguntam mais qual a natureza e em quais fundamentos se sustentam suas reivindicações, priorizando mais as necessidades imediatistas e da micro-política.
A jornalista Elaine Tavares, no texto ‘A Conferência Nacional de Comunicação: desafios e limites’, diz o seguinte: ‘[…] falar de democratização pressupõe uma anterioridade: discutir de forma muito clara o que vem a ser esse conceito. O que significa democratizar a comunicação no bojo de um Estado capitalista, em que o mando efetivamente não está na mão dos legisladores ou do governo federal? Como democratizar um campo de ação de um Estado que é dirigido, em última instância, pelo capital monopólico?’
Essas considerações são relevantes quando se sabe que a Confecom debuta em um período histórico bem diferente daquele que caracterizou a 8ª Conferência de Saúde. No que se refere aos sindicatos, só para dar um exemplo, a maioria adotou princípios da chamada governança corporativa. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), que está na Comissão Organizadora Nacional da Confecom, informa em sua página qual seria o ‘desafio da comunicação’: ‘Que a comunicação seja um instrumento efetivo de formação e informação articulado à estratégia da classe trabalhadora na disputa de hegemonia na relação com os sujeitos que se propõem a construir uma nova sociedade.’ Pergunta: qual é o sentido da expressão ‘nova sociedade’, hoje, para a direção da CUT? A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), essa já se rendeu até aos fundos de pensão, pelos quais o dinheiro se esvaiu sem parar na crise iniciada em 2008.
2.
Ataques silenciosos de onde menos se espera…Enquanto alardeia a I Confecom, o governo vai cavando trincheiras em outros campos. Está na Câmara dos Deputados o PLP-92/2007, que institui a fundação estatal de direito privado. Este tipo de fundação é uma nova forma de privatização, e o PLP-92/2007 nomeia os Hospitais Universitários como os primeiros alvos. Além dos HUs, o projeto permite que as tais fundações sejam instituídas nas áreas de saúde, educação, assistência social, cultura, desporto, ciência e tecnologia, meio ambiente, previdência complementar do servidor público, comunicação social e turismo nacional. O que virá aí?
A fundação estatal de direito privado, assim como a Parceria Público-Privada (PPP), a Organização Social (OS) e a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), constituem a nova onda de privatizações, desta vez dos fundos públicos. A professora e pesquisadora da UFRJ Sara Granemann disse, em palestra recente em Santa Catarina, que o PLP-92/2007 baseia-se no Plano Diretor de Reforma do Estado (PDRE), criado pelo ex-ministro Bresser Pereira durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Os componentes básicos de tal reforma eram, segundo Bresser Pereira [leia o artigo de Luiz Carlos Bresser Pereira, ‘A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle‘]: (a) a delimitação das funções do Estado, reduzindo seu tamanho em termos principalmente de pessoal através de programas de privatização, terceirização e publicização (este último processo implicando na transferência para o setor público não-estatal dos serviços sociais e científicos que hoje o Estado presta); (b) a redução do grau de interferência do Estado ao efetivamente necessário através de programas de desregulação que aumentem o recurso aos mecanismos de controle via mercado; (c) o aumento da governança do Estado através do ajuste fiscal, da reforma administrativa rumo a uma administração pública gerencial (ao invés de burocrática), e a separação, dentro do Estado, ao nível das atividades exclusivas de Estado, entre a formulação de políticas públicas e a sua execução; e (d) o aumento da governabilidade, aperfeiçoando a democracia representativa e abrindo espaço para o controle social ou democracia direta.
Por isso, quando os movimentos defendem o ‘controle social’ da mídia e a ‘democratização da comunicação’ é preciso definir o sentido deste conceito e dar-lhe perspectiva histórica.
3.
A Comissão Organizadora irá se prestar a quê?O Ministério das Comunicações divulgou no dia 26/5 os nomes indicados para compor a Comissão Organizadora Nacional da Confecom. Estão nela parlamentares com recordes de concessões no Congresso Nacional, direta ou indiretamente ligados a empresas de radiodifusão. O deputado federal Paulo Bornhausen (DEM-SC), cuja família também é detentora de empresas de radiodifusão, é o titular da Câmara dos Deputados. Ele disse o seguinte na página dos Democratas: ‘Como presidente da Frente Parlamentar Mista de Radiodifusão, vejo nesse evento a possibilidade, entre outras coisas, de serem fortalecidas sobretudo as redes regionais de radiodifusão privada’ . Mais explícito, impossível (ver aqui). Em sua página pessoal, está escrito o seguinte: ‘O presidente da Frente Parlamentar Mista da Radiodifusão, deputado Paulo Bornhausen (Democratas-SC), acertou com o ministro das Comunicações, Hélio Costa, a participação dos parlamentares no processo de organização de todas as etapas da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, agendada inicialmente para ocorrer de 1º a 3 de dezembro. […] A idéia da Frente Parlamentar é atuar em todas as fases da conferência, incluindo as rodadas preparatórias nos estados (ver aqui).
4.
E a população?Portanto, avaliaram participantes em oficina promovida pelo Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, é preciso traçar estratégias para fazer valer as propostas do campo popular, principalmente porque há o risco de a Comissão Organizadora nos estados repetir a formação da Comissão Organizadora Nacional, que tem 12 representantes do poder público, oito representantes dos empresários, sete representantes do segmento não-empresarial da sociedade civil e um representante da mídia pública, portanto pendendo para os interesses empresariais. Este será o primeiro grande embate político a ser travado.
Páginas na internet, listas de discussão e blogs dizem que é fundamental levar o debate sobre a Conferência à população. Aqui nas terras catarinas tem havido muita reunião – aberta e fechada – mas ainda não se viu mobilização ampla e pública, que integre quem não faz parte dos grupos já estruturados, com interesses focalizados, na ótica da micro-política, no dizer de Tânia Regina Krüger. A prosa tem que se alargar, envolver a população, para que as decisões sobre a I Confecom não sejam tomadas nos salões e salinhas do Centro Administrativo do Governo ou – pior ainda – em cochichos sussurrados nos ouvidos dos poderosinhos de plantão pelos seus serviçais de sempre.
******
Jornalista, Florianópolis, SC