Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa amiga da onça

O Globo publicou a notícia, mas com relativa timidez. No dia seguinte, poucos comentários. O Jornal do Brasil omitiu-se por completo. Essa cobertura já seria suficiente para deixar qualquer leitor pessimista com os dias seguintes. Mas o golpe de misericórdia estava por vir. Na sexta-feira, 26, no noticiário sobre a partida entre Fluminense e São Paulo, vencida pelo clube carioca (5 a 2), realizada no estádio de Caio Martins, em Niterói, um parágrafo, perdido entre os demais, novamente no Globo, me deixou totalmente perplexo. Primeiro pelo conteúdo, segundo pelo tratamento dado pelo jornal, como se o fato fosse corriqueiro (se for, é melhor que governo, polícia, igreja, correios, escolas, TODA a sociedade intervenha para resolver a questão):
"A torcida chegou animada ao Caio Martins, mal sabendo que foram vendidos mais ingressos do que a capacidade do estádio. Conclusão: quem deixou para entrar em cima da hora foi impedido pela Polícia. Houve confusão nos arredores do Caio Martins. Pior situação foi dos paulistas, cuja caravana acabou barrada e não entrou no estádio."

VASCO DA
GAMA

Raphael Perret Leal (*)

Na segunda-feira, 29 de janeiro, foi divulgado o laudo pericial do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) sobre as condições da arquibancada de São Januário, estádio do Vasco da Gama, no dia 30 de dezembro de 2000, quando estava sendo realizada a partida entre o time da casa e o São Caetano, decidindo a Copa João Havelange, e que foi interrompida pela queda do alambrado, ferindo 160 pessoas.

O laudo constatou que a capacidade do estádio é de pouco mais de 20 mil pessoas, sentadas, e de 27.306, se todas ficarem em pé. Foram confeccionados 32.537 ingressos. Todos foram vendidos. Trocado em miúdos: houve superlotação. Além disso, foi comprovada a má conservação das grades. Averiguado o que aconteceu, é hora de identificar os responsáveis e denunciá-los pelo crime que ocorreu. Tragédias como a de 30 de dezembro têm culpados, e eles precisam ser punidos. Esperemos para ver como a imprensa agirá neste sentido.

Porém, não vale a pena ser muito otimista quanto à atuação da mídia impressa no assunto se levarmos em conta o que ocorreu uma semana antes. No sábado, 20, O Globo noticiou que um juiz autorizou o uso de São Januário para sediar partida válida pelo Campeonato Estadual do Rio de Janeiro. A Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros não liberaram o estádio, tampouco foram notificados oficialmente da decisão do juiz.

Fato corriqueiro?

Para não deixar dúvidas, vou repetir: a liberação por parte do magistrado foi feita no dia 19, nove dias antes da divulgação do laudo. Mais: desde a queda do alambrado, se houve obras no estádio foi para disfarçar as falhas, e não para consertá-las, somente para que escapassem de ser apontadas pela perícia.

A liberação de São Januário, naquelas circunstâncias, foi, no mínimo, imoral. A Defesa Civil e os bombeiros eximiram-se de qualquer responsabilidade sobre o que pudesse acontecer. Sorte que o jogo realizado não tinha tanto apelo, e o público presente foi pequeno. O que não justificativa a insensatez da autorização de utilizar um estádio cujas grades caíram na última partida.

Pode-se interpretar o parágrafo da seguinte forma:

Foram vendidos mais ingressos do que a capacidade do estádio, mas isso foi um errinho de planejamento. A polícia estava lá para orientar os torcedores, por isso podem ter certeza de que não houve problemas dentro de Caio Martins. Viram? Não tem problema vender mais ingressos que a capacidade do estádio, basta não deixar entrar quem chegou atrasado e está tudo bem.

Sim, e ainda dou três motivos para endossar que fica tudo perfeitamente bem:

** São vendidos mais ingressos que o permitido, o que dá lucro aos organizadores. Não há dúvidas de que isso é criminoso, porque causa superlotação.

** O torcedor compra um ingresso, tranqüilamente, sabe que não se trata de uma entrada falsa, pois comprou em local autorizado, e na hora é barrado por causa de um errinho de planejamento.

** Das duas uma: ou a polícia impede a entrada dos atrasados, e estes criam confusão do lado de fora, ou não há controle, todos entram, ocorre a superlotação e a tragédia acontece.

A questão é visivelmente mais complexa, mais suja, mais corrupta do que parece, sintetizada num minúsculo parágrafo de 54 palavras. No JB, novamente, nada foi dito sobre o caso.

Primeiro o cidadão

O que justifica essa omissão completa, cúmplice e criminosa? Um conluio entre a mídia e a organização do futebol? Falta de preparo dos jornalistas (não apenas do repórter que escreveu o texto, mas do editor que aprovou a publicação), de tato para entender a gravidade do caso? Paixões clubísticas? Rivalidades bairristas? Ou outras questões obscuras?

Faltou investigação. Faltou, pois, jornalismo. Não bastou o mau exemplo de São Januário? Por que a imprensa comeu mosca no caso de Caio Martins? É caso seriíssimo. E de polícia. Havia tudo para ocorrer novo desastre. Por que só se bradam – demagogicamente, pelo visto – gritos de "temos que mudar", "os responsáveis devem ser punidos", "é preciso evitar tudo isso" após o acontecimento, se quando ele tem possibilidade de ocorrer ninguém fala nada ou, pior, esconde?

Tanto no caso da liberação fora de hora de São Januário quanto na venda dos ingressos de Flu x São Paulo a imprensa carioca errou feio. Talvez nem tenha errado, porque nada fez. Só erra quem faz. E os jornais não fizeram. Talvez seja a hora de ensinar aos jornalistas que seus leitores são, antes de torcedores, cidadãos. Precisam ser respeitados e ter seus direitos defendidos. A imprensa é auxiliar nessa tarefa. Nos episódios descritos, porém, mostrou-se amiga da onça.

(*) Analista de sistemas, jornalista

 

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