Na noite de terça-feira (26/5), tive a oportunidade de conversar com os alunos do quarto ano do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). O bate-papo, convite do professor Mário Luiz Fernandes, versou sobre o trabalho da assessoria de imprensa em órgãos públicos, em especial sua relação com os veículos de comunicação.
Como nos últimos três anos tenho atuado nesta área (como chefe de redação da equipe de assessoria de imprensa da Câmara Municipal de Campo Grande – 2007/2008 – e chefe de reportagem da assessoria de imprensa da Prefeitura de Campo Grande – desde janeiro de 2009) – me senti à vontade para o desafio. Durante a conversa, um detalhe em especial me chamou atenção: a dificuldade que os alunos têm para separar as atribuições de jornalismo e assessoria de imprensa, tema que tratei aqui em outubro passado no artigo ‘Jornalismo e assessoria de imprensa: ética e realidade‘.
Há – em especial no campo teórico – quem considere ambas as atividades similares. Estou do outro lado. Penso haver diferenças marcantes entre a assessoria de imprensa e o jornalismo. Estas diferenças esbarram, inclusive, no Código de Ética da profissão.
Sem previsão de aumento de ônibus
Façamos, portanto, uma análise de alguns pontos do Código sob o ponto de vista de um caso hipotético envolvendo a assessoria de imprensa de, digamos, um governo estadual.
Exemplo de caso: o governo do estado está lançando um conjunto habitacional e há pressão para que a obra seja entregue em tempo da comemoração do aniversário do Estado. O assessor de imprensa conversa com o secretário da pasta responsável pelo projeto, com técnicos, visita o canteiro de obras e apura as informações que considera relevantes para a composição do release. Durante este processo, o assessor descobre que a) as casas não serão entregues no prazo, embora o governador e o secretário insistam em que a data estabelecida seja divulgada; descobre também que, b) para realizar a obra, algumas famílias foram removidas do local de forma inadequada, com uso de truculência. Ao tocar no assunto com o secretário, recebe uma explicação pouco convincente e um aviso de que este fato deve ser deixado de lado; finalmente, o assessor apura que c) as unidades habitacionais serão construídas em um local com pouco acesso ao transporte coletivo. Ele procura o secretário responsável pela pasta de Transportes e o governador e descobre que não há previsão para a ampliação de linhas de ônibus para a região e é alertado para não tocar no assunto.
Quem paga o salário
Diante do caso exposto, veja o que diz o Código de Ética do jornalista e, em itálico, meus comentários:
Capítulo I – Do direito à informação
Art. 2º Como o acesso à informação de relevante interesse público é um direito fundamental, os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de interesse, razão por que:
I – a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação e deve ser cumprida independentemente da linha política de seus proprietários e/ou diretores ou da natureza econômica de suas empresas;
Ocorre que está no cerne do trabalho de assessoria de imprensa filtrar as informações que são prejudiciais ao seu cliente. Qualquer assessor de imprensa que divulgue uma informação diretamente prejudicial ao seu cliente estará fazendo qualquer coisa, menos assessoria de imprensa. No exemplo acima, o atraso da obra, a remoção truculenta das famílias e a escassez de linhas de ônibus serão sumariamente suprimidas do release, embora sejam ganchos obrigatórios para um jornalista atuando em um veículo de comunicação. O jornalista Ricardo Noblat aponta esta dicotomia de interesses entre jornalismo e assessoria de imprensa em seu artigo ‘Assim é, se lhe parece’, publicado na revista Comunicação Empresarial nº 47, da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje): ‘… quem paga o salário do jornalista é o público que consome o que ele apura e divulga. Quem paga o salário do assessor de imprensa é a empresa, entidade, governo ou figura pública que o contratou. No dia em que um assessor de imprensa for capaz de distribuir notícias contra seus clientes, estará fazendo jornalismo – e deixará de ser assessor de imprensa…‘
Informações obstruídas
II – a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público;
Uma assessoria de imprensa de órgão governamental encontra diariamente momentos em que interesse público é deixado de lado a partir da omissão de informações que seriam prejudiciais ao cliente.
IV – a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as nãogovernamentais, deve ser considerada uma obrigação social;
Deveria, mesmo. Mas, neste caso, o salário destes assessores deveria ser pago diretamente pela sociedade a fim de garantir o cumprimento desta obrigação. Se for pago através do intermédio do poder público a obrigação deste assessor passar a ser com seu patrão e não com o leitor. A outra saída para quem quer manter-se dentro de uma ética jornalísitica estrita é pedir demissão e mudar de emprego.
V – a obstrução direta ou indireta à livre divulgação da informação, a aplicação de censura e a indução à autocensura são delitos contra a sociedade, devendo ser denunciadas à comissão de ética competente, garantido o sigilo do denunciante.
Somos todos passíveis de um processo ético. Todo assessor de imprensa obstrui informações que não são do interesse do contratante.
Homofobia prevaleceu
Capítulo II – Da conduta profissional do jornalista
Art. 4º O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, deve pautar seu trabalho na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação.
O compromisso fundamental do assessor de imprensa é com o interesse e a preservação da imagem de seu cliente. A verdade acaba sendo uma questão secundária no processo.
Art. 6º É dever do jornalista:
II – divulgar os fatos e as informações de interesse público;
VII – combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercidas com o objetivo de controlar a informação;
Ora, ambos os artigos acima são nobres e corretos, embora quixotescos na prática cotidiana de assessoria de imprensa. A saída, mais uma vez é a demissão.
XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias;
XIV – combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza.
Recentemente, a Câmara Municipal de Campo Grande perdeu a oportunidade de dar um exemplo de tolerância aprovando o projeto de Lei 6353/07, de autoria do vereador Athayde Nery (PPS), que concederia o título de utilidade pública para a Associação das Travestis de Mato Grosso do Sul (ATMS) – que já possui o mesmo título nos âmbitos estadual e federal. Integrantes da bancada evangélica e católica da Casa impediram a aprovação do projeto sem nenhum argumento técnico. Prevaleceu a homofobia. Durante este episódio eu integrava a assessoria de imprensa da Casa. Obviamente não pude dizer o que de fato estava acontecendo ali, embora tenha feito isso em meu blog (aqui, aqui e aqui).
‘Nunca passei informação errada’
Art. 7º O jornalista não pode:
II – submeter-se a diretrizes contrárias à precisa apuração dos acontecimentos e à correta divulgação da informação;
Diante do que já foi dito acima não há motivo para comentar este parágrafo.
III – impedir a manifestação de opiniões divergentes
Não cabe a assessoria de imprensa dar espaço ao contraponto. Quando isso ocorre, serve apenas de gancho para uma seqüência que reforce o ponto de vista do cliente.
O que foi dito acima pode chocar muitos colegas, mas este é um choque recheado de uma falsa inocência. Pode também confundir a cabeça de quem gostaria de ver a ética jornalística aplicada à assessoria de imprensa, embora este seja um desejo repleto de equívocos. O jornalista Ricardo Kotscho, por exemplo, diz o seguinte em seu artigo ‘1964-2009: 45 anos de reportagem‘:
‘Não é a função ou o cargo que faz o profissional, é o contrário: em qualquer cargo ou função, seja numa redação ou numa assessoria de imprensa, a nossa ética tem que ser a mesma. Era assim que pensava e agia quando trabalhei como Secretário de Imprensa no governo. Nós, afinal, prestamos um serviço ao público, para o conjunto da sociedade, e não para quem eventualmente nos paga o salário, seja uma empresa privada ou o governo.’
Em outro artigo, ‘Imprensa: os dois lados do balcão‘, Kotscho faz uma defesa de fé da ética jornalística estendida a assessoria de imprensa para no final jogar uma pá de cal sobre tudo o que falou.
Segundo ele: ‘Na função de Secretário de Imprensa e Divulgação (no Governo Lula), procurei agir exatamente como esperava que os assessores agissem comigo quando era repórter: nunca tirá-los do caminho certo, mesmo quando a pauta era inconveniente ao governo, e ajudá-los na apuração das suas matérias. Posso não ter sido muito eficiente neste meu papel de assessor-repórter, não fornecendo todas as informações que eles queriam, mas posso garantir a vocês que nunca passei uma informação errada a nenhum deles.‘
Confusão atinge todos os profissionais
Kotscho diz também: ‘Não devemos nunca confundir divulgação jornalística com propaganda, um erro muito comum em todos os meios e latitudes… Jornalismo é, por natureza, uma atividade crítica, investigativa, que procura denunciar o que há de errado para que seja consertado.‘
E que: ‘Toda informação passada a um jornalista não pode ser de interesse apenas do governo ou da empresa. Esta informação tem que ser, necessariamente, de interesse de toda a sociedade. Precisa apresentar um fato de interesse jornalístico.‘
Tudo isso para, no final, contradizer o que dissera antes ao concluir o artigo da seguinte forma: ‘Antes que me perguntem se no governo poderia fornecer todas as informações de que dispunha, inclusive as que eram contra os interesses do governo, já vou logo respondendo que não. Também nunca escrevi nada contra os interesses do Estadão, do JB, da revista IstoÉ, da Folha, da Globo, da Bandeirantes, do SBT, da revista Época, nem de nenhum outro veículo onde já tenha trabalhado. Por isso é que continuo amigo de todo mundo dos dois lados do balcão e sei que tenho as portas abertas para voltar quando quiser.‘
Ora bolas…
Esta confusão entre o fazer jornalístico e o ofício de assessorar não atinge apenas gente graúda como Kotscho (cuja trajetória profissional, diga-se, é invejável e digna de nota), mas todos os jornalistas que porventura tenham sido lançados em uma assessoria de imprensa achando que ali fariam jornalismo.
Um ofício digno, mas distinto
Diante disso é bom lembrar o professor Eugênio Bucci. Em seu artigo ‘Profissões diferentes requerem códigos de ética diferentes‘ ele vai direto ao ponto: ‘Jornalismo e assessoria de imprensa são duas profissões diferentes e não podem ser regidas por um mesmo Código de Ética.‘
Citando o Código de Ética e a afirmação de que ‘o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pautará pela abertura às mais variadas opiniões sobre os fatos, pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação‘, Bucci questiona:
‘Em se tratando de uma equipe de repórteres e editores de uma revista ou de uma emissora de rádio ou de qualquer instituição jornalística, cumprir à risca esse artigo é um dever óbvio, não há o que se discutir. Mas, aí vem a pergunta: isso vale para um assessor de imprensa? Será que um assessor de imprensa da Coca-Cola deve ouvir a Pepsi-Cola antes de divulgar um release? E um assessor da Igreja Universal do Reino de Deus, terá de ouvir sempre a Assembléia de Deus quando preparar notas sobre o fenômeno evangélico no Brasil? Se alguém aqui me disser que esse artigo vale para os que trabalham em redações, mas vale `mais ou menos´ para quem é assessor de imprensa, pois é isso o que se diz nos corredores, eu pergunto: como uma categoria pode pretender ter um código de ética cujos artigos valem para alguns de seus integrantes e não valem para outros?‘
E finaliza de forma que eu não poderia superar e, portanto, cito na íntegra para encerrar este artigo:
‘A profissão de jornalista tem como cliente o cidadão, o leitor, o telespectador. Nesse sentido, o jornalista se obriga – em virtude da qualidade do trabalho que vai oferecer – a ouvir, por exemplo, lados distintos que tenham participação numa mesma história. Ouvir todos os envolvidos, buscar a verdade, fazer as perguntas mais incômodas para as suas fontes em nome da busca da verdade é um dever de todo jornalista.
O assessor de imprensa, cuja atividade, eu repito, é digna, necessária, ética e legítima, tem como cliente não o cidadão, não o leitor, mas aquele que o emprega ou aquele que contrata os seus serviços. O que o assessor procura, com toda a legitimidade, é veicular a mensagem que interessa àquele que é o seu cliente, àquele que o contrata, e não há nada de errado com isso. É um ofício igualmente digno, mas não é jornalismo. A distinção entre os dois clientes estabelece uma distinção que corta de cima a baixo os dois fazeres.‘
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Jornalista e editor do blog Escrevinhamentos