Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O imaginário infantil e o infantil imaginário

Aos 10 anos, vivi um momento trágico em minha vida. Como torcedor do Botafogo, vi a sua inconcebível derrota para um desacreditado Flamengo na final do Campeonato Brasileiro. Durante um período relativamente longo, o revés de 1992 soou como amargo e tingiu de gris os meus primeiros passos no futebol, desacreditando-me enquanto torcedor e tirando todas as esperanças reais que poderia ter no futebol, em meu time do coração. Três anos depois, com o expresso Túlio Maravilha, as esperanças voltavam com o épico título de 1995.

Inicio este texto com o futebol como uma forma de demonstrar o nível saudável de apreensão a estar presente na cabeça de uma criança de 10 anos. A minha infância, normal, estava rodeada pela “preocupação” em ver o meu time do coração campeão – entre muitas outras que, por certo, não me impediam de dormir durante a noite. Via o futebol aos domingos, brincava durante a semana depois das aulas, tirava boas e más notas, recebia elogios e broncas dos pais e professores, via o Botafogo perder e ganhar. Nada mais natural.

A morte do menino Eduardo foi brutal. E, de certa forma, foi “somente” mais uma morte brutal em nossa história recente. Os principais meios de comunicação, como sempre, fazem uma cobertura aquém de suas potencialidades para a conscientização do brasileiro em seu interminável momento de crise social. Com a violência batendo incessantemente à sua porta, prestes a arrombá-la, o debate em torno da redução da maioridade penal ganha vigor atualmente no Congresso e retrata, nitidamente, o nível de preocupação do brasileiro mediano em solucionar um problema do jeito mais fácil e rápido: atribuindo a culpa a alguém.

A medida de responsabilizar crianças de 16 anos por crimes cometidos na caótica sociedade brasileira soa como um dos grandes salvadores dos nossos problemas. A Gotham City tropical tem o seu Batman na forma de uma intervenção jurídica – de novo. A aprovação da lei seria como o projetor do símbolo do homem-morcego nas nuvens que o chama e, prontamente, responde ao chamado. Para o bandido que, em nosso caso, são os aterradores criminosos menores de idade, o super-herói surgirá no instante exato de sua fuga, depois de haver cometido o crime, entre as sombras dos infinitos becos sem saída. A medida parará os meninos infratores em sua tentativa de fugir, depois de haverem cometido o crime, salvando o infantil imaginário de violência no Brasil.

Pequenos inimigos

Deixa-se, aqui, algo muito claro: no Brasil, favelado não é minoria. Embora viva nos becos da Gotham City tropical, na verdade, ele é silenciado pelos meios de comunicação. Mas, definitivamente, trata-se de uma parcela gigantesca da população, de nossa sociedade, ansiosa por direitos sociais, como educação, saúde e segurança. No Rio de Janeiro de hoje, pós-Copa do Mundo e às vésperas das Olimpíadas, o último item é luxo, não mais direito. A sensação de segurança tornou-se artigo raro a povoar o imaginário do brasileiro mediano, da periferia carioca – e de muitos dos Rios de Janeiro ao longo do Brasil. A violência, cada vez mais naturalizada, está em qualquer esquina, podendo saltar à nossa frente, inclusive na forma de ameaçadores meninos de 10 anos. Ou seja, em nossa cabeça prevalece o imaginário de violência cotidiana.

E foi um tiro certeiro na cabeça, na última semana, que apagou para sempre toda e qualquer memória de um menino que, nesta idade, deveria se preocupar no máximo com a vitória de seu time de coração. Uma violência ao seu imaginário que, provavelmente, ainda não era um imaginário violento – era naturalmente infantil. Matou-se uma criança de 10 anos e seus pais ficarão apenas com a memória do que ele dizia desejar ser quando crescesse. Simbolicamente, com Eduardo é sepultada toda a “supérflua” apreensão de um menino de sua idade. Agora, os Eduardos não devem mais se preocupar com a final do Campeonato Carioca. Em seu lugar, devem atentar para quem bate em sua casa, o que entra pela janela, quem encontrará na esquina seguinte ou se os seus pais ou irmãos voltarão para o jantar.

Enfim, a criança perde o direito de crescer como criança. Aprende a diferenciar, desde o princípio, o barulho de tiros, da polícia e dos traficantes. No caso do menino Eduardo, o que mais espanta é o fato de um policial, homem supostamente preparado para a segurança, simplesmente atirar em uma criança. Por mais atento ao menor movimento inimigo, uma pessoa, supostamente, sempre pensa duas vezes antes de disparar – ou mesmo apontar uma arma – a um menino. No episódio da gigantesca novela da violência carioca, o policial pacificador, neste caso, apenas disparou. Em seu imaginário violento existe uma população de ameaçadores meninos de 10 anos dotados de revólveres, de pistolas, AR 15, M 16, prontos para disparar contra eles. Estes pequenos inimigos, tão aterrorizantes, estariam à espreita em qualquer esquina.

Apertar o gatilho

Não por acaso, a redução da maioridade penal adquire contornos e, novamente, colore o imaginário do brasileiro, agora um imaginário de violência, como a grande solução para os problemas de crimes violentos. A grande mídia, tacanha, incapaz de sustentar um debate minimamente consistente, respira a ideia de justiça a ser cumprida e não pensa no que é justo. Então, pinta as ruas com a negrura dos becos de Gotham City, com um homem de capa preta, na forma de um código penal, a surgir de suas sombras. Desigualdade social é considerada por esta mídia uma conversa de surdos. E, se após a culpabilização dos menores pelos crimes ser efetivada pelo Congresso a violência cotidiana não for reduzida e o imaginário de violência não for aplacado, buscar-se-á outro responsável, criando no imaginário um outro inimigo a ser desenhado na forma de outra medida salvadora.

Os fatos recentes, da maneira como são contados, fazem crer que os policiais, os mesmos que atiraram no menino Eduardo e mataram o seu imaginário infantil, não pensavam que um menino desta idade está concentrado em imaginar o seu futuro. Prevalece o prático, o imediato. Nem tudo reluzente é ouro, mas no Rio de Janeiro dos 2000 tudo o que brilha pode ser arma. A questão é quem aperta o gatilho primeiro. O vitorioso segue os rastros do homem-morcego, sempre atrás dele, pois, no fundo, com seu imaginário de violência, teme ser alvejado, porque também tem em sua casa um menino de 10 anos a desejar ser algo, com o seu imaginário infantil. Mas, os fatos da semana mostram o quão irrelevantes são os desejos do filho do policial quanto ao seu próprio futuro. O imaginário infantil é progressivamente e, precocemente, substituído por um infantil imaginário de violência. Importa, agora, sobreviver e apertar o gatilho primeiro, tal como ensinado pelo próprio pai.

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Faustino da Rocha Rodrigues é professor e jornalista