Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Discurso em homenagem ao senador Pompeu de Sousa

MEM?RIA

MÁRIO COVAS, 1930-2001

Mário Covas (*)

“O SR. MÁRIO COVAS (PSDB-SP) pronuncia o seguinte discurso. ? Sr. presidente, srs. senadores, sra. Othília, DD. esposa de Pompeu de Sousa, senhores familiares, senhoras e senhores:

O cronista da História política deste século, Carlos Castello Branco, conta que, ao longo dos meados da década de 30, um jovem rapaz cearense, com seus vinte e seis anos de idade, assomava à janela de um consultório de dentista no Rio de Janeiro. Fazia-o com o inevitável temor de quem aguarda sua vez de enfrentar o dentista e com a agitação de quem é naturalmente inquieto. É possível revê-lo com as mãos às costas, balançando o corpo e olhando para o horizonte que dali se descortinava. E, no edifício fronteiro, à janela, vislumbrou alguém que conhecia; diga-se de passagem, alguém que era até seu ídolo: o jornalista Américo Palha, com quem convivera no Ceará e que era figura obrigatória na crônica eleitoral desse estado. Do reconhecimento à sinalização, à gesticulação, à euforia, que afinal foi correspondida de forma idêntica por aquele que estava na outra janela, entre o reconhecimento e a chegada de ambos à rua, foi um pulo. O abraço veio, carinhoso, forte, solidário, e Pompeu disse: “Que prazer em vê-lo, Palha”. E Palha disse: “Que prazer em vê-lo, Orlando”. Só depois disso acontecer é que Pompeu verificou que Palha não era o Palha, e o interlocutor verificou que Pompeu nunca fora Orlando. Ambos aprofundaram o abraço, porque o gesto de solidariedade ganhava uma dimensão ainda maior, na medida em que se dava entre dois amigos recentes, entre dois desconhecidos de sempre, entre dois homens que se ligaram apenas pelo fato de serem seres humanos. E aí remata Carlos Castello Branco, com aquela capacidade de síntese que Deus lhe deu: “Pompeu saiu às gargalhadas pela rua e pela vida”.

Os homens nascem com o peso do pecado original. A marca nem sempre é visível; ela se coloca ou se desloca aqui ou ali, desta ou daquela forma. Mas há homens que nascem como se em si o resgate do pecado original tivesse ocorrido. Deus lhes reserva uma série de atributos que, afinal, complementam sua personalidade e sua missão humana. Roberto Pompeu de Sousa Brasil nasceu trazendo o nome de seu país no seu próprio nome; mas Deus lhe determinou o local certo para nascer: o fez acontecer no estado do Ceará, numa cidade chamada Redenção. Como todos sabem, o Ceará libertou os escravos quatro anos antes do que o resto do Brasil o fez; e, dentro do Ceará, o primeiro município que o fez foi exatamente Redenção. Portanto, a idéia da independência, da liberdade, da exaltação à vida humana, em Pompeu, está presente na sua própria origem como pessoa humana.

A representação política compõe a crônica de sua família. O velho senador Pompeu, hoje patrono de um município do Ceará, foi senador do Império, foi o primeiro senador Pompeu, e era seu bisavô. Era filho e neto de médicos. E há quem diga até que, na origem de sua vida, a medicina foi uma alternativa por ele acalentada.

Sem dúvida, o bom humor era a sua principal característica. O depoimento de Evandro Carlos de Andrade, que com ele trabalhou durante muito tempo, testemunha taxativo: “Tudo lhe detonava a gargalhada”. Um dia, no Diário Carioca, encantado com o texto que anunciava para o dia seguinte o primeiro enforcamento de mulher na Inglaterra, depois de muitas décadas, ele quis publicá-lo acompanhado de fotografia da condenada. Mas não havia. Mandou buscar no arquivo a pasta de fotos de “pin-up girls”. Escolheu a mais bonita, de maiô e salto alto, e publicou-a de cima a baixo na primeira página, como se fosse a que seria enforcada depois. Octávio Malta, que escrevia para o jornal Última Hora, ficou indignado com o fato. E protestou na sua coluna, em que fazia a crítica dos demais jornais. Pompeu ria desbragadamente ao ler a crítica e justificava-se de forma imperiosa: “Em jornalismo, não se pode ser acadêmico”.

A rejeição ao academicismo foi uma constante na sua vida: tinha prazer no debate, na discussão das idéias, no confronto de natureza democrática. Mas não discutia apenas pelo prazer da discussão, era uma força envolvida sempre na busca de um objetivo, na busca de um resultado. É dele a frase: “Só vale a pena viver quando se tem uma luta por uma grande causa, caso contrário já não seria viver, seria apenas existir”.

Em 1986, quando fazia 70 anos de idade, declinou as suas duas únicas derrotas na vida: a instauração, no dia primeiro de novembro de 1937, do Estado Novo, e a decretação no dia primeiro de abril de 1964 daquilo que ele denominava o Estado Novíssimo. Todas as demais, até as que envolveram violências contra ele não as considerou derrotas, porque foi capaz de transformá-las em vitórias. Apenas aquelas que atingiam o coletivo é que rigorosamente fixava como derrotas de natureza pessoal.

O jovem cearense nascido em 1916 veio para o Rio em 1931, fez a sua primavera no Ceará, e seu verão no Rio, para vir praticar o seu outono em Brasília. Foi homem sem invernos, não os teve e não os terá.

Começou a vida no Rio de Janeiro, como professor no Colégio Pedro II, onde ministrava a matéria Português. Estudou Matemática com Pontes de Miranda, cujo curso de Filosofia freqüentou. Namorou, naquela época, a juventude comunista. Augusto Frederico Schmidt, em certa fase da sua vida, talvez o seu amigo mais íntimo, resgatou-o para o convívio da Igreja.

Foi redator-chefe do jornal O Meio-Dia. Foi datiloscopista do Ministério do Trabalho; trabalhou em A Folha Carioca e a abandonou quando ela aderiu à Embaixada Alemã. Aos 22 anos, chegava aquele jovem cearense às redações do Diário Carioca, o pequeno jornal, que faz parte da história das lutas deste século, neste país.

Foi sucessivamente editor internacional, diretor de redação, diretor-geral, diretor-presidente, ali tendo permanecido até agosto de 1961. Percorreu no jornal um caminho diferente dos demais. O foca, normalmente, era conduzido à seção de esportes, para o estágio inicial. Pompeu de Sousa ganhou, desde logo, uma editoria internacional. Nessa época, a ditadura namorava o nazifascismo, e Pompeu usava a sua coluna para dar estocadas na ditadura e para reivindicar um posicionamento do Brasil junto às forças democráticas, no conflito mundial.

Mas a época não permitia essas veleidades. A violência logo mostrou suas garras e o DIP determinou ao jornal que ou acabava com a coluna ou fechava o jornal. Ao tempo, Roosevelt foi capaz de entender que era preciso uma aproximação com a América Latina, e criou, conferindo a David Rockefeller a tarefa de presidir, um Escritório de Coordenação de Assuntos Latino-Americanos. Era a política da boa vizinhança. Esse escritório convidou algumas figuras, entre as quais, com um certo alívio para o regime ditatorial que prevalecia no Brasil, Pompeu de Sousa foi incluído, para se transferir para os Estados Unidos.

A partir daí, nos Estados Unidos, ele passou a fazer um programa de rádio onde usava o desdobramento e o noticiário sobre a guerra como instrumento adicional para sua permanente luta em favor da liberdade e da democracia.

Volta ao Brasil. E nesse instante cria aqui um novo programa de rádio voltado para o noticiário do conflito e se assessora convenientemente. É seu assessor, como observador militar, o então coronel Humberto Castello Branco.

Em 1945 conspirou para a queda do Estado Novo. Em 1950, com Canrobert contra a posse de Getúlio. Em 1954, no célebre episódio do atentado contra Carlos Lacerda, do qual decorreu a morte do major Vaz e, conseqüentemente, a instauração de um inquérito paralelo no Galeão, a presença de Pompeu de Sousa foi tão ativa que seus companheiros o chamavam com carinho “presidente da República do Galeão”.

A cabeça de Pompeu de Sousa voltara dos Estados Unidos, depois de um convívio com o que havia de mais moderno na técnica jornalística, explodindo de inovações. E o seu tempo era de tal forma preenchido que foi preciso dispor do intervalo do Carnaval de 1950 para que ele aproveitasse aqueles dias e estruturasse a reforma profunda que iria fazer no Diário Carioca. É aí que nascem ou se transportam para o Brasil as técnicas do “lide”, do “sublide”, do “copy desk” e até dos manuais de redação. Mas com muita percepção e clareza convenceu-se de que, para possibilitar uma reforma dessa dimensão, era preciso dispor de quem não tivesse sido deformado ao longo da vida pelo vício do uso. Portanto, montou uma equipe de focas, cujo perfil a história se encarregou de demonstrar. Estiveram com ele nessa empreitada Armando Nogueira, Evandro Carlos de Andrade, Janio de Freitas, José Ramos Tinhorão, Ferreira Gullar, Thiago de Melo. Deixa o Diário Carioca ? e esta não é uma derrota, é uma decepção ? porque em 1961 a direção do jornal pressiona para que ele atenue o tom de um artigo, denunciando a pressão dos militares contra a posse de João Goulart.

Anos depois ele traduz o espírito que o impelia ao tomar essa decisão: “Nós, jornalistas, lutamos a vida inteira pela liberdade de imprensa e o máximo que conseguimos é a liberdade da empresa”. Pouca gente como ele foi capaz de entender a profundidade desse conceito. O dono do direito chamado liberdade de informação não é nem a empresa, nem mesmo o jornalista, é o leitor, que tem o direito a receber a informação sem que sobre ela pese qualquer forma de censura. Foi a violência que se cometia contra o leitor, contra um direito da cidadania que o fez demitir-se do jornal onde nesta altura era diretor-presidente.

Anos depois, enfrentava a sua grande segunda decepção da vida. O observador militar que o ajudara no programa de rádio, já então na Presidência da República, investe contra o seu cargo de professor da Universidade de Brasília. Ele encabeça, para orgulho seu e da sua geração, uma lista de 12 professores que são demitidos da universidade, gerando, em contrapartida, uma solidariedade que faz com que 210 professores se demitam.

Conviveu com toda uma geração de jornalistas, como Carlos Castello Branco, Fernando Sabino, Vinícius de Morais, Antônio Maria, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos, Deodato Maia, Fernando Lobo, João Emílio Falcão, e recebeu a chefia da Redação do Diário Carioca das mãos de Carlos Lacerda.

Talvez a sua mais expressiva manifestação seja a de que “não é possível fazer nada sem paixão”. Foi um homem permanentemente carregado de sentimentos mas, seguramente, o que o dominava e o que traduzia por antecipação a sua conduta era a paixão. Os ódios inexistiam ou eram apenas uma fachada eventual, absolutamente passageira, para sustentar a paixão que, afinal, era o que o motivava. Oswald de Andrade, com quem conviveu durante muito tempo, o aconselhou a casar-se imediatamente ou morreria de paixão.

Do seu primeiro casamento, do qual enviuvou cedo, teve duas filhas. Casou-se com Dona Othília há 40 anos e com ela teve mais quatro filhos; deixa oito netos. Dona Othília e Pompeu conheceram-se no curso de Napoleão Laureano, que ele ministrou já portador de um câncer terminal e, a aceitar o depoimento de Evandro Carlos de Andrade, “foi uma paixão fulminante que, como toda paixão, aqui ou ali, se transforma em lava, em pequenos períodos”. Com todo a certeza de que a lava acaba produzindo a mais rica terra para germinar o fruto.

“À Othília que, sentada a meu lado, viu-se sempre entre as mil tarefas de fazer o inesquecível Diário Carioca de cada dia, rabiscar à máquina todos esses bilhetinhos e muito mais.”

Essa é a dedicatória do seu livro, redigido recentemente, que retrata o período de sete meses do governo Jânio, quando ele, como implacável jornalista político, enviava diariamente ao presidente dos bilhetinhos o bilhetinho do jornalista.

Há memória mais digna do que essa? Há lembrança mais agradável do que essa? Há sonho a acalentar mais profundo que esse? Pode uma mulher realmente desejar do seu companheiro uma mensagem mais carinhosa que relembra a presença e não a ausência? Que relembra o convívio e que divida o resultado?

Pompeu foi professor do primeiro curso de Jornalismo em 1949, na matéria Técnica do Jornal e do Periódico, na Faculdade Nacional de Filosofia, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fundou em 1961 a extraordinária e revolucionária experiência educacional chamada Universidade de Brasília, com a convivência de Anísio Teixeira, frei Mateus Rocha, Oscar Niemeyer e o nosso Darcy Ribeiro.

Aqui permaneceu durante algum tempo, até que a violência o afastou da universidade. Foi para São Paulo editar fascículos para a revista Veja. Foi diretor da Editora Abril de 1967 até 1979. Voltou para Brasília, que adotara como sua terra, e em 1985 assumiu a Secretaria de Educação do Distrito Federal, no governo José Aparecido. Conviveu com intelectuais, artistas e músicos. Na sua fase inicial de jornalista chegou a escrever críticas de teatro. Mas, ainda uma vez é o seu sentido de liberdade que baliza esta passagem. Voltando dos estados Unidos, depois de ter assistido Lawrence Olivier interpretando Shakespeare e reconhecendo que o teatro no Brasil nada mais era, até então, do que uma diversão para depois do jantar, encanta-se, primeiro, com a crônica de Álvaro Lins e, em seguida, com a visão da peça de Nelson Rodrigues, O vestido de noiva. Esta obra representou um marco de mudança no teatro, mudança completada não apenas pela presença deste dramaturgo como com a vinda para o Brasil do extraordinário Ziembinsky. Pompeu, que era uma amante de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, O?Neill, Shakespeare e Ibsen, enfronha-se e envolve-se nesta nova revolução de natureza cultural. Isso o faz confrontar-se com a censura, que logo investe contra a obra de Nelson Rodrigues e, como os tempos mudam, as novas tecnologias trazem novas frentes de luta. É o cinema, através de Nelson Pereira dos Santos, que, produzindo Rio 40 Graus, oferece e convoca Pompeu de Sousa a um novo patamar de luta contra a censura.

Seu amor pela música era profundo. Conviveu com Lamartine Babo, com Nílton Silva, com Lupicínio, que admirava por lhe fazer agrado a dor de cotovelo do samba gaúcho. Cartola trabalhou com ele como contínuo no jornal Diário Carioca.

Nelson Rodrigues foi em certa fase da sua vida um dos seus mais chegados amigos. É depoimento de Pompeu que, à saída do jornal, pelo menos uma noite na semana, eles caminhavam juntos até o final da Praia do Flamengo. Certo dia brigaram, e, como toda briga de dois homens dessa dimensão, brigaram por nada. Pompeu, quando perguntado a respeito, brincava: “O Nelson nunca me perdoou ter tirado o ponto de exclamação dos títulos de jornal”. Mas, na realidade, a verdade repousava num outro fato tão pequeno como esse: a posse ou o uso de uma permanente para assistir, em lugar privilegiado, essa paixão que se chama futebol.

Os que conviveram com ele, e com ele trabalharam, lembram-se de dois tiques que lhe eram inseparáveis: mordiscava a aliança de ouro enquanto pensava, o que fez com que a engolisse em duas oportunidades sucessivas; e há os que se lembram dele batendo à máquina com o terrível hábito de manter uma gilete em cima da língua.

Em 1955, com Lott, ficou com Jango e JK; em 61 foi secretário de Imprensa do governo de Tancredo Neves que, quando primeiro-ministro, o convidou para essa tarefa. Sua presença em palácio, como acontece com todos os revolucionários românticos, durou pouco. Em 79, chefiou o escritório político que comandou a candidatura do general Euler Bentes Monteiro. Em 85 foi secretário de Educação do Distrito Federal e, finalmente, em 1986, Brasília, em nome deste país, convocou-o, como seu representante, à Assembléia Nacional Constituinte. A militância política que começara lá no Ceará, antes dos 20 anos de idade, na Aliança Liberal, que, afinal, desaguou na Revolução de 1930, desdobrara-se depois de 1945 na UDN, através da esquerda democrática. Posteriormente, na imensa aventura partidária em que se constituiu o Partido Socialista Brasileiro, comandado por João Mangabeira, antecipou sua presença na vida política convencional.

“O povo tanto serve para derrubar ditaduras como para consolidar democracias”. E Pompeu havia sido chamado para a tarefa que se apresentava: a de consolidar a democracia.

Reconhecia, rindo de si próprio, seus defeitos e as dificuldades que tinha. É dele esta auto-análise: “Confesso, com muita humildade, que não sou bem dotado para o pragmatismo; sou até um sujeito simpático, mas não sou bom negociador.”

É possível a cada um de nós lembrar-se de Pompeu de Sousa, transitando por este espaço, sentado à Presidência da Mesa. Pompeu fazia de cada ato da sua vida um banquete de 500 talheres. Era íntegro, inteiriço; não era capaz de comer apenas com a boca, de falar apenas com o coração, de amar apenas com a alma. Era alguém por inteiro, que ao falar sacudia cada um dos fios do cabelo. Que muitas vezes se policiava, escondendo as mãos às costas, como se tivesse medo de que elas se antecipassem à palavra e adiantassem o pensamento. Era, como ele próprio dizia, alguém que vive movido pela paixão.

E foi assim que chegou a esta Casa, para convívio dos seus amigos. Tive a oportunidade, por ter sido líder do meu partido na Constituinte, de conviver com ele como constituinte. E Pompeu de Sousa deixou gravadas, na história constitucional deste país, 66 emendas da sua lavra. Não me atenho a todas. Mas há uma que mostra a dimensão desse homem e o nível do seu compromisso:

“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço

à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de

comunicação social, observado o disposto nesta Constituição.”

Não apenas a afirmativa de que a informação é livre, mais do que isso, a proibição de que qualquer lei possa, de alguma maneira, violentar a possibilidade de sua difusão.

Mas não bastou. Lembro-me do dia em que votamos neste plenário a última das suas mensagens, à véspera de Pompeu encerrar essa etapa. Legislou sobre o art. 224 da Constituição que diz:

“Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional

instituirá, como órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social,

na forma da lei.”

Este Senado aprovou, no finalzinho do ano passado, no começo deste ano, ao término do seu mandato, o Projeto de Lei de autoria de Pompeu de Sousa, o senador, o constituinte, o homem, o jornalista, o paladino da liberdade, a lei sobre matéria que, afinal, representou o objetivo da sua vida.

“Conheci Papai Noel”, disse a pequena Raphaela, com dois anos de idade, sobrinha de Rita Nardelli, que foi sua assessora de imprensa, relatando à família a sua ida ao gabinete de Pompeu de Sousa. E, às vezes, me pergunto: há alguma coisa que possa significar aspiração mais digna do que receber de uma criança a afirmação de que esteve com “Papai Noel”? A criança e o idoso não aceitam os padrões de censura que nós, tradicionalmente, nos impomos. Elas respondem pelo instinto aos seus desejos, ao seu afeto e ao seu carinho.

Nunca vi uma pessoa passar ao lado de Pompeu de Sousa, se ainda estivesse na faixa da idade da esperança ou se já vivesse a época da razão, que não o olhasse, que não o parasse, que não o cumprimentasse, que não o acarinhasse. Ele acabava criando em todos nós que com ele andávamos uma certa dose de ciúmes, pelo carinho com que era tratado, e cujo troco era a exuberância do seu sorriso, era a gratidão do seu olhar, era a simpatia da sua figura.

Em sua última entrevista afirmou, com o bom humor de sempre: “Agora sou um velhinho aposentado. Dou-me ao luxo de escrever somente sobre o que vi e não sobre o que eu fiz. Isto deixo para depois”. Pompeu, como ninguém, aprendeu a lição de Vieira. Os homens que falam por ter vivido, por ter visto fazem história; os homens que falam por saber “profetizam”. Pompeu nesta primeira fase ia se dedicar à tarefa de fazer história, testemunha que foi de três gerações deste século; deixava para depois, como tarefa mais ampla, a imensa profecia que era o corolário da sua vida.

“Sai Dutra, entra Goés”. Com esta manchete que era uma novidade na época, Pompeu revolucionou o seu momento histórico. Admitiu que o velho “nariz de cera” estava gasto e que o primeiro dos compromissos dos jornalistas era com o leitor. E, recentemente, no desdobramento da sua luta de sempre, projetava para o futuro o novo comportamento da comunicação jornalística. “É preciso que o jornalista comprometido satisfaça 3 aspectos: noticiar, interpretar e opinar. Esta síntese dará o instrumental pelo qual o jornal e a notícia voltarão a competir com outro meio de comunicação, eletrônico, que é a televisão.”

Sem dúvida, se tempo lhe fora dado, espírito não lhe faltaria para iniciar essa nova luta. Pouca gente como ele entendeu com mais propriedade o dito popular: “Se todos os seus esforços forem vistos com indiferença não desanime, porque também o Sol ao nascer dá um espetáculo todo especial e, no entanto, a maioria da platéia continua dormindo”. Nunca se preocupou com o sono alheio, desde que a madrugada o levantava e a perspectiva do horizonte do dia lhe oferecia o instrumental da sua luta.

Às vezes, divago pensando como terá sido o seu encontro com Deus, porque certamente Pompeu está no céu. Imagino que ao chegar á porta o velhinho de barbas brancas, a quem cabe a tarefa de disciplinar aquela entrada, São Pedro, deve ter visto aquela figura simpática, de cabelos brancos, esvoaçantes, qual poeta,. E terá corrido rapidamente para consultar os alfarrábios da vida. Procurando nos arquivos, que ainda não se modernizaram, pois a informática ainda não chegou por lá, puxou a ficha de Pompeu de Sousa e imediatamente deve ter corrido ao Senhor: “Senhor, há um homem aí que tem a figura do revolucionário, a vocação do revolucionário, foi um homem que revolucionou a Terra. Estou com medo de deixá-lo entrar”. E o senhor lhe respondeu: “Deixe-o entrar. Ele é um dos nossos. Fez isso por paixão, pelo amor que dedicou a seus semelhantes, e porque acredita na liberdade”.

Morreu de parada cardíaca. O senador Almir Gabriel foi quem me trouxe a notícia. No dia seguinte, ao encontrar Othília e ao abraçá-la, vi que a despedida não foi tão dolorosa. O médico, Dr. Campos da Paz, me contou que sofreu pouco fisicamente. As mais duras e resistentes ligas metálicas sofrem, com o uso constante, um fenômeno físico chamado “fadiga”. E, logo, independente de sua dureza, rompem. Havia de ser assim com Pompeu. Amou demais. E por amar demais, seu coração foi acometido de fadiga. Excesso de uso. Pela vez primeira, ao vê-lo no caixão, senti a ausência do seu sorriso. Estava sério. Era como se reverenciasse o desconhecido, do qual não duvidava, mas que nunca enfrentara. Era como se de repente sua permanente alegria interior não exigisse a exibição dos dentes. Era como se de repente nova tarefa o convocasse, impedindo-lhe o riso e fortalecendo-lhe a gravidade. E hoje eu aqui deveria estar em nome do meu partido para dizer alguma coisa em relação à memória de Pompeu. Gostaria de ser triste neste instante, para mostrar a dimensão da dor de cada um de nós.

Mas que me perdoem todos. Não consigo pensar em Pompeu sem manter a alegria. Só consigo lembrar-me dele pela semente que plantou, pela mensagem que deixou, por aquilo que construiu. Só consigo me lembrar do Pompeu de todos nós, de cada um de nós, pela imagem que dele cada um de nós carrega em seu coração. Não há muito que possa fazer, mas acho que, sem poder pagar o principal, busco minimizar a dívida que com ele temos, pelo pagamento de parte dos juros, deixando, em nome do meu partido, a oração silenciosa e o desejo de que, nesta nova empreitada, Pompeu não perca na eternidade a imensa mensagem que foi capaz de transmitir à sua geração. (Muito bem! Palmas.)”

(*) Discurso proferido no Congresso Nacional, Brasília, em 1991.