MEM?RIA
ASPAS
MÁRIO COVAS, 1930-2001
"Covas morreu quando a festa ia começar", copyright Folha Online, 6/03/01
"A grandeza administrativa de Mário Covas é conseqüência da mesquinhez e irresponsabilidade de seus antecessores.
Ao assumir seu primeiro mandato de governador, ele viu-se rodeado de dívidas por todos os lados, geradas pela gastança de fundo eleitoral.
Optou pela impopularidade dos cortes e enxugamentos, desativando programas e colocando gente na rua -o que transmitiu aos eleitores a sensação de um governo parado.
Para complicar, Covas não tem aptidão mercadológica, tão marcante na política contemporânea regida pelas pesquisas de opinião e pela regra de que ?você vale quanto aparece?. Nutria, explicitamente, um desprezo pela combinação de política e da publicidade.
Nos primeiros quatro anos, ele arrumou as finanças e, agora, tinha começado a festa dos gastos, graças ao caixa com mais recursos para investimentos, favorecido pelo crescimento da economia e maior arrecadação dos impostos. Iria passar os próximos dois anos inaugurando obras e drenando mais recursos para a área social -privilégio que deixou a seu sucessor, Geraldo Alckmin.
Covas, porém, perdeu o prazer das realizações, mas morreu como os políticos sonham morrer: glorificado. Uma condição que apenas o martírio é capaz de conferir aos homens públicos.
Como sua maior obra administrativa foi aquela que não se vê -a disciplina nos gastos, sem esbanjamentos e imagina-se que não dê voto, Covas morre como exemplo de que seriedade compensa. E nenhum político consegue ser sério sem ter a coragem de enfrentar a impopularidade.
Governar rodeado de marqueteiros e pilotado por pesquisas de opinião é o melhor caminho para o sucesso fácil e rápido -e o melhor caminho também para a mediocridade."
"Bravo, honrado, coerente: um homem de bem", copyright Folha Online, 6/03/01
"A morte que foi chegando devagar, sofrida e implacável na devastação do câncer, deu tempo ao governador Mário Covas para retocar a sua biografia com a última página, escrita aos arrancos das explosões do seu temperamento forte, para reforçar, na fria certeza do desfecho próximo e inexorável, alguns dos traços definidores do seu caráter esculpido em bloco de pedra inteiriça, sem emendas ou rachaduras.
A agressiva bravura com que desafiou o destino, com a plena consciência dos seus deveres de homem público, que nada podia esconder da população do Estado que o elegera e reelegera e do país, às quais devia o compromisso com a verdade, deixa um exemplo que se acentua na mediocridade da fase política que nos humilha.
Homem público
A imagem do homem público sem disfarces ou dissimulações. Na límpida e transparente exposição dos seus defeitos e qualidades. Insistindo com os médicos para que não escondessem nada do seu estado terminal. Da crua e direta informação sobre o diagnóstico, a cada passo do tratamento, que tentava o milagre na certeza da desesperança. Com a imprensa registrando com gráficos as operações mutiladoras, que doem mais no orgulho masculino do que no corpo fragilizado.
Cercado pelos repórteres no duro cumprimento das obrigações profissionais, com os excessos reprováveis, explodiu abrindo a alma na íntima confissão da derrota da vida: ?Podem noticiar que eu estou morrendo?. Nenhuma dramaticidade na fiel devoção à verdade.
Vaidade
Nas longas conversas com o repórter e escritor Márcio Moreira Alves, seu amigo e hóspede nos últimos dias, que recolheu o depoimento da sua vaidade, do justo orgulho pela administração que não poderia concluir no ano e dez meses de inauguração de centenas de obras, espalhadas por todo o Estado. Pagara o preço do desgaste nos primeiros anos de arrumação da casa, que herdara em estado falimentar, saneando as finanças com um programa de rigoroso controle nas despesas.
Com a caixa folgada, lançara-se ao programa de grandes obras da sua vocação de realizador.
E foi a ânsia de mostrar o que estava pronto ou em fase de acabamento que o impeliu a desdenhar incômodos, desmaios, desconfortos e, a passos trôpegos, amparado por mãos de assessores, sentado na cadeira de rodas, realizar viagens estafantes de avião, de ônibus, de carro, para inaugurar os marcos da sua biografia. Até o último alento, quando foi forçado a passar o governo ao vice Geraldo Alckmin.
Vazio
Mário Covas não necessitou da generosidade e emoldura dos discursos à beira do túmulo para o reconhecimento consensual de que a sua morte representa um desastre para o governo, uma perda brutal para o esquema que integrava com a fidelidade e a independência do seu feitio indomável e para o país, que perde o raro modelo de liderança literalmente insubstituível.
O paulista com os arrebatamentos do sangue de imigrantes italianos – sem papas na língua, falando a linguagem direta da franqueza, sem fazer concessões para agradar ou simplesmente temperar suas explosões, de honestidade irretocável, sem a mancha de qualquer desconfiança, com a história de uma vida de convicções que o levaram à militância na esquerda e a obstinada adesão aos compromissos democráticos, com destacada atuação na campanha pelas eleições diretas e líder da maioria na Assembléia Constituinte que elaborou a esburacada Constituição de 88, de esperanças e frustrações – morre como o candidato natural dos sonhos de todos os partidos.
O candidato
Quando em plena atividade, Mário Covas freqüentou todas as listas de presidenciáveis com modestos índices nas pesquisas. O candidato viável, com potencial para crescer na campanha e resolver disputas internas no seu partido ou no bloco governista.
Mas, a dimensão da perda reflete a avaliação atualizada pelo reconhecimento da afirmação da sua liderança nos meses em que zombou da morte. O PSDB examina alternativas igualadas, sem a facilidade do candidato que se afirma no consenso. Vulnerado pelas denúncias contra suas lideranças, o PMDB curva-se à tardia lamentação da perda do candidato em cujas mãos estaria bem entregue a bandeira da moralidade e da luta contra a corrupção. E o PFL, com as rachaduras baianas, teria em Mário Covas o candidato perfeito para consolidar a aliança.
Perde o presidente Fernando Henrique o governador que era uma referência para o seu partido e o amigo e parceiro de muitas lutas.
O governador Mário Covas foi um homem de bem, de honra e caráter. Das melhores figuras da sua geração."
"O colecionador de histórias", copyright no. (www.no.com.br,) 6/03/01
"Por conta de seu temperamento, o governador Mário Covas costumava alimentar a crônica política nacional com frases fortes e episódios engraçados. Nos finais de semana em que se reunia com a família ou em discursos públicos, costumava contar ?causos?. Os temas preferenciais eram relatos da política cotidiana e futebol. Santista fanático, Covas dizia ser ?santista mesmo e não pelezista?, em alusão aos que passaram a torcer pelo time por conta da atuação de Pelé. ?Ele nunca se colocava como personagem de suas histórias. Mas todos que o conheciam colecionam histórias que viveram com ele?, diz o ex-secretário de Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos Júnior. Veja algumas delas:
Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo:
?Quando ministrei os quatro sacramentos para Mário Covas, no Incor, ele pegou a minha mão e disse: ‘vamos ser amigos até o fim’. A frase mostra as características que acompanharam toda a biografia dele: a lealdade e a coragem. Por incrível que pareça, a imagem do Covas homem público, para mim, é lembrada pelo famoso par de botas que usava para ir à rua quando acontecia alguma catástrofe, como as enchentes. Ele nunca se distanciou do povo – e algumas vezes até foi criticado por isso. Sempre aparecia alguém para dizer que ele estava se expondo demais. De uma pessoa assim, realmente é um privilégio ser amigo até o fim.?
Belisário dos Santos Júnior, ex-secretário de Justiça do governo Covas e amigo da família:
?No dia 3 de setembro de 1996, Mário Covas foi à zona Leste de São Paulo para inaugurar um dos Centros de Integração que faziam parte de seu programa assistencial. Subiu no palanque e começou a falar para a população. De repente, olhou para o lado e interrompeu o discurso. Apontou para o muro da escola que seria entregue e disse: ‘está torto’. Alguns assessores ainda tentaram argumentar. Mas ele continuou: ‘está torto. Pode medir que está torto. Vamos derrubar o muro e construir outro. Quando estiver tudo direitinho eu volto para inaugurar’. Fomos todos embora, atrás dele. Mário Covas era assim. Jamais jogava para a platéia. Começou a conversar dialogando com movimentos sociais e seguiu assim até o fim. Costumava se reunir pessoalmente com as liderançccedil;as, sem pauta pré-definida, conversava e às vezes argumentava duro. Mas sempre decidia na hora. Quando estava anunciando o Programa de Assentamento dos Sem Terra, em novembro de 1995, ele foi pessoalmente até um acampamento na fazenda Santa Clara, no Mirante do Paranapanema. Pegou todo mundo de surpresa. Quando as lideranças chegaram, ele estava lá, conversando com as pessoas. Covas costumava dizer que não adianta governar um Estado onde existisse uma só cidade onde ele não pudesse andar nas ruas.?
Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita de São Paulo:
?No ano passado, eu enfrentei uma crise de ordem política dentro da Congregação Israelita. O governador Mário Covas me telefonou. Não para me convidar a ir ao Palácio, mas para me convocar. Para ele, não bastava hipotecar solidariedade pelo telefone. Fui vê-lo e ele me disse que é impossível alcançar grandes metas na vida sem provocar ciumeira em pessoas pequenas ao nosso redor. Gravei essas palavras. Elas calaram fundo. Em seguida, ele me contou histórias sobre crises que enfrentou. Saí de lá muito fortalecido, com um pouco da coragem dele. No auge da ditadura militar, Mário Covas sempre esteve nos bastidores do trabalho feito por mim e pelo arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns na luta pela democracia. Quando organizamos o livro ‘Brasil Nunca Mais’, ele também esteve por perto. Qualquer apuração sobre a biografia de Covas vai mostrar sua maior qualidade: a coragem.?
José Genoíno, deputado federal (PT-SP):
?Eu era do movimento estudantil de 1968 e vim para São Paulo para preparar o congresso de Ibiúna. Fui preso quando estava voltando para Fortaleza, onde morava. E depois solto com habeas corpus. Eu ia voltar de ônibus para Fortaleza, mas ganhei uma passagem de avião. Só soube anos depois que quem pagou foi o Covas, que era deputado federal na época. Eu nem o conhecia… No Congresso, ele teve atuação admirável. Quem detonou o Genebaldo Corrêa na CPI dos anões do orçamento, por exemplo, foi ele. Tava aquele depoimento água com açúcar quando Covas disse: ‘deputado, e se eu lhe mostrar um cheque comprovando o seu envolvimento?’ O Genebaldo desmontou. Não sei até hoje se ele tinha o tal cheque.
Também convivi com Covas na Constituinte. Ele era o líder do PMDB. Foi uma convivência muita intensa. Houve um episódio em que estávamos discutindo uma forma de colocar o Estatuto da Terra na Constituinte. Ele estava comprometido com a nossa proposta. Disse que ia até o fim mesmo que perdesse. A imagem que tenho dele é muito boa, mesmo estando em partido adversário. Ele acreditava no que fazia. Tinha um comportamento ético nas questões políticas e era muito duro na negociação. Mas quando dava sua palavra, ele mantinha. Mesmo sua teimosia tem de ser entendida no bom sentido. Ele era convicto e coerente. Não importava com quem disputava. Era um político com P maiúsculo.?
Sami Arap, urologista, integrante da equipe médica de Mário Covas:
?A pior coisa para um médico é tratar de alguém por quem ele desenvolve uma grande amizade. Isso porque acompanhamos os passos do tratamento como se fosse com alguém da nossa família – ou com nós mesmos. Mário Covas desenvolveu uma empatia muito forte com toda a equipe médica dele. Chegamos a promover ‘pizzadas’ juntando a família dele e os médicos. No meio disso, há as histórias típicas dele. Covas costumava dizer que quando ia apenas um médico conversar com ele, ficava tranquilo. Mas quando iam quatro ou cinco, sabia que era paulada. Uma vez, fui com outros dois dar uma notícia desagradável sobre um exame. Ele falou: ‘ôrra! Mas lá vem vocês de novo me amolar’. Ele brincava, mas sempre colaborou com a equipe médica. A ponto de querer nos tranquilizar, como quando me procurou para dizer que confiava em mim e sabia que nós, no Incor, íamos tratar dele muito bem. Criamos um tipo de relação de franqueza muito boa. Em 1998, eu disse que ele teria que ser operado. Ele perguntou o que aconteceria se ele não fosse. Eu respondi: ‘se você não for, ano que vem não vamos ter governador?. Ele riu e marcamos a cirurgia.?
Luiz Eduardo Greenhalgh, deputado federal pelo PT e advogado:
?O apelido do Mário Covas no grupo autêntico do MDB era ‘espanhol’. Ele era um grande guerreiro. Falava pouco. Não era dado a grandes concessões. O dia mais bonito que eu vi dele foi na Constituinte, quando decidiu disputar a liderança do MDB. O Ulysses Guimarães apoiava um deputado de Santa Catarina. Mas mesmo assim o Covas ganhou. Ele virou o resultado com o discurso e conseguiu a liderança. Nunca vi ninguém mudar o plenário a seu favor, pois na Câmara e no Senado o jogo é de cartas marcadas. Foi incrível. Ele virou líder do MDB na Constituinte. A primeira vez que ele se internou no Incor há três anos, abri um livro de visitas. Disse que achava que ele devia teimar, que ele era o espanhol do MDB autêntico e que iria vencer a doença. Mas na última vez que o vi, percebi que seria derrotado.?
Walter Feldman, deputado estadual pelo PSDB e presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo:
?Em 1997, o Covas, eu, um ajudante de ordens e um piloto estávamos em um bimotor quase chegando em Catanduva, cidade do interior de São Paulo. De repente, o avião teve uma queda de uns 50 metros, derrubando tudo no chão. Ficou todo mundo morrendo de medo, menos o Covas. Ele ficou calmo e começou a dar ordens para todos. Inclusive para o piloto.?"