Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Rudolfo Lago

ROLO HISTÓRICO

"…e todo o barulho era só fita", copyright Veja, 14/03/01

Além da jabuticaba, o Brasil acaba de ganhar outra exclusividade mundial: é a da fita que faz um tremendo barulho, derruba dois ministros, coloca um senador sob o risco de cassação de seu mandato – e, depois de todo esse salseiro, constata-se que a fita não era bem aquilo… Na quinta-feira passada, o foneticista Ricardo Molina, de Campinas, exibiu aos senadores a transcrição da fita em que está gravada a conversa do senador Antonio Carlos Magalhães com procuradores da República. O suposto conteúdo da fita fora publicado pela revista IstoÉ e trazia dois trechos explosivos. Num, ACM avisava aos procuradores que, se fosse quebrado o sigilo telefônico de Eduardo Jorge, ex-secretário-geral do Palácio do Planalto, o presidente Fernando Henrique ficaria em dificuldades. Em outro trecho, ACM contava aos procuradores que tinha em seu poder ?a lista de todo mundo que votou a favor e contra? a cassação do ex-senador Luiz Estevão no ano passado.

O primeiro trecho irritou o presidente, que se sentiu moralmente agredido por ACM e demitiu os dois ministros indicados pelo senador. O outro motivou pedidos de cassação do mandato de ACM por suposta violação do sigilo de uma votação secreta. Na quinta-feira, o foneticista Molina apresentou aos senadores um relatório de 55 páginas com a transcrição dos 57 minutos da fita. E não há, na transcrição, nem uma frase nem outra. Em nenhum momento, ACM diz que a quebra do sigilo de Eduardo Jorge comprometeria o presidente Fernando Henrique. Também não diz aos procuradores que possui a ?lista? da votação na sessão que cassou Luiz Estevão. ?A montanha pariu um rato?, concluiu o líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra, um dos parlamentares que pediram a abertura de processo contra ACM no Conselho de Ética. ?A IstoÉ fez uma emenda aglutinativa na transcrição da fita?, completou, com bom humor. No jargão legislativo, chama-se de ?emenda aglutinativa? aquela peça que reúne pedaços de projetos diferentes e os agrupa num novo projeto de lei.

Com péssima qualidade, a gravação teve 75% de seu conteúdo recuperado por Molina. Até pode ser que as frases comprometedoras que vieram a público estejam justamente nos 25% não recuperados, embora o procurador Luiz Francisco de Souza tenha afirmado, desde o início, que entendera a declaração de ACM sobre a votação como a expressão de uma convicção pessoal – e não como informação de uma lista. Além disso, já se pode afirmar que os trechos antes publicados eram, como diz Dutra, aglutinativos. Na parte da cassação de Luiz Estevão, por exemplo, publicou-se uma longa frase em que ACM fala que a senadora Heloísa Helena votou a favor de Luiz Estevão, que ele tem ?a lista? da votação, que isso não se pode ?falar porque Luiz Estevão vai tentar anular? a votação e que, caso isso aconteça, ?quebra o Senado?. Na versão degravada por Molina, a ordem é outra. O procurador Guilherme Schelb diz que Estevão ?vai tentar anular a cassação dele no Senado? e ACM reage dizendo que ?a opinião pública quebra o Senado?, mas isso é dito bem antes, e não depois, da referência ao voto de Heloísa Helena. Sinal de que, em ritmo aglutinativo, os trechos andaram pulando de um lugar para o outro."

"Jornalistas e cabeleireiros", copyright Folha de S. Paulo, 9/03/01

"Diz o sábio Ricardo Boechat que nós, jornalistas e cabeleireiros, temos algo em comum: o acesso a fofocas. A diferença é que, antes de divulgar as fofocas, os jornalistas conferem sua veracidade.

Nos tempos da ditadura, com a imprensa e o Judiciário manietados, havia um amplo vazamento de rumores, muitos dos quais infundados, mas que era a maneira de driblar a censura. Posteriormente, com a redemocratização e, principalmente, depois dos amplos poderes dos quais a mídia se viu revestida -especialmente após a campanha do ?impeachment?-, a disseminação de rumores, longe de ser uma resistência contra a censura, passou a ser mau jornalismo.

Watergate, o grande episódio que deflagrou o espírito investigativo da mídia, só virou notícia objetiva após meses e meses de investigações. Não se tinham documentos, inicialmente, mas se juntavam evidências, testemunhos, checava-se a consistência das acusações, para só então transformar o rumor nesse prato de qualidade inigualável: a informação jornalística. Evidentemente a existência de leis rigorosas contra abusos de mídia em muito contribuiu para o rigor nas apurações.

Recentemente, na série de reportagens que fez sobre o DNER, Mônica Bergamo passou uma aula importante sobre como juntar evidências e testemunhos e dar consistência às denúncias. Só que exige tempo e competência.

Tome-se agora esse caso ACM. Foi-se até o senador, ressentido pelo afastamento do governo, ligou-se um gravador na sua frente e permitiu-se que ele falasse o que lhe desse à telha. A partir daí tinha-se uma pauta, um roteiro para ser investigado. Em vez disso, a pauta foi transformada em reportagem jornalística, sem que o senador fosse questionado uma única vez, sequer para conferir se suas declarações tinham lógica, ou para solicitar provas.

Onde estamos? Se as informações tivessem essa relevância, se pudesse levar a uma desestabilização política, o cuidado no tratamento das informações deveria ser redobrado. Não tendo relevância -por ausência de provas-, ficou gozado, mas expôs o risco que o país corre com esse tipo de jornalismo.

O rigor jornalístico não é apenas uma questão de oferecer um produto de qualidade aos leitores, mas um ato que tem implicações institucionais relevantes. Existe um amplo mercado de boatos, em círculos específicos, que passa por fontes políticas e, especialmente, pelo mercado financeiro. Há um enorme caldeirão, uma feijoada imensa, de onde se pode tirar a mistura que bem entender. Alguns boatos são possíveis, outros são prováveis, alguns são verossímeis, outros são sem nexo.

Quem quiser atacar ACM terá matéria farta nesse caldeirão, assim como quem quiser pegar qualquer outro político desse país. Daí os cuidados que cercam reportagens desse tipo. Mesmo em um país de larga tradição democrática, com instituições sólidas, como os EUA, possibilidades de impeachments de presidentes são tratados com todo o cuidado. Aqui nãatilde;o. É uma festa inacreditável. Tudo pela tiragem.

Esse show não prosperou porque a economia vai bem, o governo conseguiu consolidar sua base de apoio. Se o governo fosse mais fraco, esse material poderia desestabilizá-lo, por mais irrelevante que fosse.

Está na hora de começar a pensar melhor na responsabilidade institucional da mídia. Há alguns limites, alguns valores republicanos que têm que estar acima dessas disputas mercadológicas, independentemente de quem seja o presidente.

Balões

Os balões de ensaio que têm saído em colunas contra Solange Vieira, da Secretaria de Previdência Complementar -propondo sua degola, por ser presumivelmente ?carlista?- não passam de jogadas de grupos tentando limitar seu trabalho.

Apesar de alguns exageros, e de não perceber que muitos dos atuais dirigentes de fundos de pensão são seus aliados na moralização do setor e na apuração de abusos de seus antecessores, Solange está realizando um trabalho fundamental na SPC. Seria uma pena se o governo fosse na conversa desses boateiros e permitisse a sua saída."

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