Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Cachorro’ faz jus à anistia?

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça está às voltas com o segundo processo mais rumoroso em seus sete anos de existência: o de José Anselmo dos Santos, conhecido como ‘cabo Anselmo’, embora tenha sido apenas marinheiro de primeira classe. Trata-se do mais célebre dos militantes da resistência à ditadura militar que, no jargão dos próprios órgãos de segurança, atuaram como ‘cachorros’ da repressão, armando ciladas para os companheiros.

Em 2004, a Comissão de Anistia recebeu muitas críticas em razão do óbvio favorecimento ao escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, que não só teve seu processo passado abusivamente à frente dos de dezenas de milhares de anistiados que não eram celebridades, como recebeu uma pensão mensal vitalícia (e respectiva indenização retroativa) cujo valor, exageradíssimo, não condizia com as próprias regras do programa.

O caso atual é bem mais complexo.

O cabo Anselmo foi o principal agitador da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil no período que antecedeu a quartelada de 1964. Depois do golpe, passou vários anos foragido, esteve em Cuba treinando guerrilha e, de regresso ao Brasil, militou na luta armada contra o regime militar, ao mesmo tempo em que colaborava sub-repticiamente com a repressão da ditadura, atraindo seus companheiros para emboscadas.

Julgamento em dois meses

Eis como Elio Gaspari relatou, em A Ditadura Escancarada, uma de suas missões:

‘A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (…) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do Dops paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia. Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (…). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (…) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.’

Quando seu verdadeiro papel ficou evidenciado, ele passou a viver sob a proteção dos órgãos de segurança, que lhe proveram remuneração e fachada legal sob identidade falsa. De vez em quando, para aumentar os ganhos, concedia entrevistas que foram publicadas com destaque na grande imprensa e até viraram livros.

O processo do cabo Anselmo, que tramita desde 2004 na Comissão de Anistia, será julgado dentro de aproximadamente dois meses, segundo informação que a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo (edição de segunda-feira, 28/7), colheu do presidente do colegiado Paulo Abrão Pires Jr.

Condições para pacificação

O programa foi criado para oferecer reparações àqueles que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência do estado de exceção vigente no Brasil entre 1964 e 1985.

Conseqüentemente, caso o cabo Anselmo tenha sido um militante revolucionário até meados de 1971, só então mudando de lado, sua vida foi mesmo afetada pelo arbítrio instaurado no país, a despeito do juízo moral que façamos de quem chegou a se vangloriar de haver causado a morte de ‘cem, duzentos’ idealistas que combatiam a ditadura e o tinham como companheiro.

Ou seja, se o poder não tivesse sido usurpado por um grupo de conspiradores em 1964, o cabo Anselmo continuaria presumivelmente servindo à Marinha, ao invés de se tornar um homem que há décadas carrega o estigma da infâmia e precisa viver escondido no próprio país. Daí, o seu direito formal à reparação que está pleiteando.

No entanto, a anistia federal foi uma tentativa de re-equilibrar os pratos da balança, depois que a Lei da Anistia de 1979 passou uma borracha no passado, equiparando carrascos e vítimas.

Naquele momento, os vitoriosos impuseram aos vencidos as condições para a pacificação: libertariam presos políticos e deixariam os exilados retornarem ao país, desde que os assassinatos, torturas e atrocidades cometidos ou consentidos pela ditadura ficassem para sempre fora do alcance da Justiça.

Telefonista da delegacia

O governo Fernando Henrique Cardoso, não podendo ou não ousando remediar essa situação, resolveu, pelo menos, remendá-la, concedendo compensações financeiras aos humilhados e ofendidos.

Daí o mal-estar causado pela impudência com que o cabo Anselmo pleiteou benefício de vítima, após ter sido um dos maiores vilões do período. Do ponto de vista moral, é chocante vermos um ser tão decaído lado a lado com cidadãos dignos e sofridos; do ponto de vista legal, provavelmente não há como expulsar esse estranho do ninho.

A menos, claro, que se consiga comprovar a tese sustentada por vários de seus ex-colegas da Armada: a de que o cabo Anselmo desde o primeiro momento serviu à comunidade de informações como agente infiltrado nos movimentos de esquerda.

Alegam, primeiramente, que ele tudo fez para radicalizar os movimentos dos subalternos das Forças Armadas – fator decisivo para que a oficialidade decidisse quebrar seu juramento de fidelidade à Constituição, passando a apoiar os conspiradores.

Logo após o golpe, Anselmo pediu asilo na embaixada mexicana. Mas, embora fosse uma das pessoas mais procuradas do país, resolveu sair andando de lá, sem ser detido.

Algum tempo depois foi preso, exibido como troféu pela ditadura… e logo transferido para uma delegacia de bairro, na qual, diz Gaspari, ‘Anselmo fazia serviços de telefonista, escrivão e assistente do único detetive do lugar’.

Um sapo gigantesco

A situação carcerária do ex-marujo, continua Gaspari, não cessou de melhorar:

‘Com as regalias ampliadas, era-lhe permitido ir à cidade. Numa ocasião surpreendeu o ministro-conselheiro da embaixada do Chile, visitando-o no escritório e pedindo-lhe asilo. Quando o diplomata lhe perguntou o que fazia em liberdade, respondeu que tinha licença dos carcereiros. O chileno, estupefato, recusou-lhe o pedido.’

Finalmente, sem nenhuma dificuldade, Anselmo deixou a cadeia em abril de 1966. Nada houve que caracterizasse uma fuga: apenas constataram que o hóspede saíra e não voltara.

Foi para Cuba e só retornou ao Brasil em setembro de 1970, iniciando no ano seguinte sua trajetória de anjo exterminador.

Se ficar estabelecido que ele sempre foi um agente duplo, Anselmo não fará jus à anistia federal; mas, claro, os antigos comandantes do Cenimar, Deops e órgãos congêneres dificilmente atestarão que o cabo Anselmo já estava na sua folha de pagamentos antes da quartelada de 1964.

Caso tenha realmente sido um perseguido político até 1971, seus direitos não são anulados pelas indignidades posteriores.

O certo é que as chamadas provas circunstanciais não bastam para privá-lo da reparação a que moralmente não faz jus.

Então, é provável que a Comissão de Anistia tenha de engolir esse sapo gigantesco: deferir o pedido de um indivíduo infame a ponto de causar a morte da companheira que engravidara (a paraguaia Soledad Barret Viedma), tendo considerado mais importante garantir o massacre de seis revolucionários do que salvar sua amante e a criança que ela iria conceber.

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Jornalista e ex-preso político, foi militante da VPR, organização traída pelo cabo Anselmo; mais artigos no blog do autor