ARMAZÉM LITERÁRIO
Autores, idéias e tudo o que cabe num livro
RESENHA
Sérgio Luiz Gadini
Ao vivo do corredor da morte, de Mumia Abu-Jamal. São Paulo, Conrad, 2001, 203 páginas.
Ao Vivo do Corredor da Morte não é apenas uma biografia de um preso político, condenado à morte, na Pensilvânia (EUA). Trata-se de uma maneira ousada e diferente de alertar para os julgamentos, muitos vezes sem provas suficientes, que condenam pessoas de grupos discriminados, ironicamente naquela que é vulgarmente conhecida como a "maior democracia do planeta".
A narrativa do jornalista e radialista Mumia Abu-Jamal adquire um caráter autobiográfico na medida em que, através de seus textos, é possível identificar a trajetória de vida do autor, particularmente dos 19 anos em que está preso, lutando pelo direito de falar dos abusos a que os afro-americanos são sumetidos nos Estados Unidos.
Aliás, desde os tempos do surgimento das colônias inglesas na América, o discurso da resistência encontra as mais diversas formas para expressar a discriminação política e cultural. Daí porque, lembra John Edgar Wideman, "as melhores narrativas sobre escravos e prisões sempre trazem questionamentos profundos, implícita ou explicitamente, a respeito do significado da vida. Parte do trabalho do blues, do jazz e dos melhores esforços artísticos é revelar o caos que vive dentro das certezas que utilizamos como modelo".
A narrativa do autor adquire um caráter comovente, particularmente quando se refere à privação dos direitos e relações familiares. Nas palavras do autor, "as visitas sem contato (físico) enfraquecem e, finalmente, cortam os laços familiares. Por meio dessa política e prática eficiente e premeditada, o Estado nega aos condenados um elemento fundamental de expressão de humanidade ? o toque e o contato físico ? e, dessa forma, corrói lentamente os laços familiares, já debilitados pela distância entre a casa e a prisão".Assim, "os prisioneiros se tornam ?mortos? para aqueles que os conhecem e amam e, portanto, mortos para eles mesmos", conclui Abu-Jamal.
Manifesto à liberdade
Os números revelam a face discriminadora da pena capital. Levantamentos estatísticos, já veiculados e de conhecimento público (apesar da indiferença das instâncias judiciais responsáveis), revelam que os réus acusados de matar brancos têm 4,3 vezes mais chances de serem condenados à morte do que réus acusados de matar negros; para 6 em cada 11 réus condenados por matar um branco, a sentença não teria sido a de morte se sua vítima fosse negra. E Mumia atenta para esse detalhe: "No corredor da morte, você encontrará um mundo mais negro do que em qualquer outro lugar. Os afro-americanos representam somente 11% da população nacional mas constituem 40% da população do corredor da morte. Lá, você encontrará também o autor destas linhas".
Um vísivel tratamento desigual, entre presos negros e brancos, é constatado na descrição detalhista, mas sensível e precisa, de Abu-Jamal. "O bloco do corredor da morte dá acesso a dois a dois pátios: um composto de jaulas, outro com espaço ?livre?, com fontes de água, quadra de basquete completa, argolas e uma área para corrida. As jaulas eram para os negros do corredor da morte. O pátio aberto para os brancos do mesmo lugar. Os negros, devido à insensibilidade racista e ao puro ódio, estavam condenados a esperar a morte em condições indignas". Mumia consegue, desse modo, ilustrar as mais diversas reflexões de seus artigos e ensaios com exemplos e casos que revelam verdadeiras afrontas públicas aos direitos humanos dos presos, particulamente aos negros que estão nas inúmeras prisões norte-americanas.
A veia crítica de Mumia Abu-Jamal não esquece uma passagem do reverendo Jesse Jackson pela Califórnia, em 1975. Em entrevista com Jackson, Mumia questionou o pastor acerca de uma manifestação de integrantes do Move. "Eu tenho uma agenda para os negros da América, meu jovem… quem se importa com um bando de negros sujos e despenteados?", respondeu Jesse, rodeado por seus seguranças. Mas, "eu me importava", lembra o autor, incansável ativista em defesa dos direitos da comunidade negra.
Fundamental, em meio a esse cenário nada agradável ao leitor, é perceber que a esperança, ainda, sobrevive no "inferno", em especial no término de vários dos artigos que compõem o livro de Mumia. Ao Vivo do Corredor da Morte é, enfim, um manifesto à liberdade, capaz de não deixar nenhum leitor ? dotado de mínima sensibilidade humana ? indiferente ao mundo de que fala o jornalista Abu-Jamal. É provável que a declaração do atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Marcos Rolim, de que o sistema penitenciário brasileiro é uma espécie de "reinvenção do inferno", valha também ? e muito bem ? para os Estados Unidos da América.
Ânimo e esperança
A prisão, política obviamente, de Mumia Abu-Jamal não é mera coincidência: militante e ativista desde a juventude, o autor era conhecido como a "voz dos sem-vozes", em função dos programas e reportagens que fazia para a National Public Radio, Mutual Black Network e National Black Network ? além dos programas que apresentava diariamente na WUHY e outros espaços jornalísticos. Mumia também era presidente da seção da Filadélfia da Associação dos Jornalistas Negros.
Na madrugada de 9 de dezembro de 1981, Mumia dirigia seu taxi (para ajudar no sustento da família) quando foi baleado, algemado, espancado, preso e, ao que tudo indica, injustamente acusado pela polícia de assassinar um policial norte-americano. Cerca de seis meses depois, já estava condenado à morte.
Como revela Edson Cardoni, no posfácio da edição brasileira, além de "selecionar um júri para matar" e negar recursos judiciais constitucionalmente previstos, o cerco implacável contra Mumia não ocorre apenas nos tribunais e na prisão. "Assim que surgiu a primeira edição de Ao Vivo no Corredor da Morte, em 1995, a FOP (Ordem Fraternal da Polícia) iniciou uma campanha para proibi-lo. Parlamentares estaduais e federais da Pensilvânia pediram o confisco das receitas provenientes da venda do livro, fornecendo assim uma excelente explicação do que querem dizer com ?liberdade? e ?livre iniciativa?".
Um policial caminha em direção ao homem e chuta-lhe a cara. Eu sinto e não sinto tudo isso. Três policiais se juntam à dança, chutando e golpeando aquela forma ensangüentada e algemada. Dois o agarram pelo braço, colocam-no em pé e arremessam sua cabeça de encontro ao poste. Ele cai".
– Pai, por que atiraram em você, por que estão chutando e batendo em você?
– Há muito tempo eles querem fazer isso, não se preocupe, papai está bem… vê? Não sinto absolutamente nada.
A face bochechuda de minha filha se mistura suavemente às feições de um homem mais velho, nariz achatado, calvo, dentes de ouro, pele escura, belas rugas.
– Filho, você está bem?
– Sim, pai, estou bem. (…)
Recupero a consciência e me vejo algemado, com um forte gosto metálico de sangue na boca, no escuro. Estou deitado no piso acolchoado do furgão, sou informado pelo ruído do rádio que estou sendo levado para a delegacia a alguns quarteirões… Estou a caminho do departamento de polícia, provavelmente a caminho da morte."
O texto acima encerra o último capítulo do livro de Mumia Abu-Jamal, em forma de memórias impressionistas, "nos tempos da Filadélfia". Uma lembrança que nada tem do significado que o nome da cidade representa no idioma grego: "amor fraterno"! Ironias da história… e dos absurdos que o controle público norte-americano, em nome da promessa de segurança, é capaz de fazer com a vida de seres humanos.
Ao vivo do corredor da morte é desses raros livros que, em meio às mais abusivas agressões aos direitos humanos, é capaz de imprimir ânimo e esperança na forma como o autor fala, a partir de sua trajetória, do sonho de liberdade há séculos defendido e almejado pela comunidade negra que reside no país mais rico do mundo. O texto de Mumia consegue encantar pelo seu modo de dizer, provocando o leitor para repensar esse mundo globalizado e, ainda, pouco democrático. E, assim, desafia o próprio leitor. Afinal, como lembra Jello Biafra, no texto da contracapa, "se não fizermos nada agora, o que aconteceu com Mumia pode acontecer com outras pessoas inocentes, inclusive eu ou você".
(*) Jornalista, professor universitário no Paraná. E-mail: slgadini@uepg.br
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