Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Merchandising sem limite

O GLOBO

Raphael Perret Leal (*)

Qualquer iniciativa que privilegie a educação e a transmissão de conhecimento é bem-vinda. Embora a presença de brindes em jornais não seja lá muito benéfica (primeiro, porque pode ocasionar um aumento de vendas nas edições não devido ao conteúdo dos diários, mas por causa dos brindes que, eventualmente, podem interessar mais ao leitor do que as notícias; segundo, transforma o jornal em produto comercial, desvinculado de sua natureza original, que é simplesmente informar), os fascículos "Ao pé da letra", organizados pelo professor Pasquale Cipro Neto, com dicas gramaticais e ortográficas, que começaram a circular com as edições dominicais de O Globo desde 18 de março, prestam bom serviço e se mostram úteis ao cidadão, cada vez mais confuso ou ignorante das regras da língua, e ao próprio vernáculo, tornando-se mais respeitado. Palmas.

Entretanto, desde a semana anterior ao dia 18 até hoje, sábado, 24, o jornal vem publicando notícias(!) sobre os fascículos. Para se ter uma idéia, a única informação realmente importante em toda a semana pré-publicação foi a de que a coleção seria indicada pelo Conselho Estadual de Educação para o "Hora da leitura", programa implantado na rede pública de ensino do Rio de Janeiro em que as escolas devem dedicar uma hora semanal à difusão do hábito da leitura entre os alunos.

De resto, pura rasgação de seda de estudantes, filólogos, acadêmicos, professores. O ministro da Educação mereceu, claro, um dia só com seus comentários. Emocionante foi saber que a presidenta do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) lê semanalmente a coluna de Pasquale, óbvio, no Globo.

Depois da publicação do primeiro fascículo, mais notícias (!). O gerente-geral de circulação do jornal afirma que a chegada da coleção às bancas foi um sucesso. Ficamos sabendo também que o segundo fascículo discutiria o emprego de pronomes e numerais, com ilustrações e exercícios, tornando o aprendizado "mais fácil e divertido".

De um modo geral, é possível destacar alguns aspectos importantes sobre esse assunto:

1) Praticamente todos os dias, além de domingo, veio na capa do Globo o anúncio da coleção, colorido, em destaque. Ocupava um espaço equivalente ao de chamadas de capa secundárias;

2) Dentro do jornal, as notícias (!) sobre os fascículos não eram discretas. Na maioria das vezes, apareciam no topo da página, com seis colunas. Não eram muito longas, mas tinham destaque similar ao de notícias como a volta para casa de Herbert Vianna e a viagem de uma imensa comitiva do estado a Cuba;

3) As informações não apresentavam o espírito da novidade, essencial para a definição de notícia. Começavam, em geral, com uma opinião nova (seja de ministro, de professor, de estudante, de gerente de circulação), e os parágrafos seguintes eram pura reciclagem do que havia sido publicado antes. O supra-sumo da cara-de-pau foi na sexta-feira, quando o título dizia que os assinantes recebiam a coleção em casa, informação que apareceu todos os dias, na capa do jornal, dentro do tal anúncio colorido. Mostra de que não há mais o que falar sobre os fascículos.

4) Nem é preciso ler os textos para confirmar a imparcialidade das notícias (!).

Não se repreende a propaganda do brinde. É necessário mostrar a importância da coleção. É discutível, porém, o caminho pelo qual foi feita essa publicidade. Encartes, ou mesmo em artigos ou editoriais, seria perfeitamente aceitável. Mas em forma de notícia, com destaque, e quase todo dia, é inadmissível. Dá status de importância a um assunto puramente comercial.

A imparcialidade escorreu pelo bueiro. O noticiário torna-se banal e frívolo. E irritante.

(*) Analista de sistemas e estudante de Jornalismo

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