QUALIDADE NA TV
IBOPE & TV PAGA
Nelson Hoineff (*)
Um fantasma esperado pela televisão há pelo menos três anos acaba de tomar forma. O Ibope começou a medir a audiência das redes de televisão por assinatura. A medição engloba períodos mais longos do que o minuto-a-minuto, mas ainda assim utiliza os clássicos métodos de aferição quantitativa. No mundo inteiro, isto seria ruim para o mercado; no Brasil, pode ser catastrófico.
Em primeiro lugar, porque pesquisas de audiência não indicam o que o espectador gostaria de ver; apenas registram para onde ele se inclinou em função do cardápio oferecido no instante da medição. Aferem reações, o que nada tem a ver com expectativas.
Mas essas reações, que mais tarde acabarão por estimular as expectativas, são limitadas pelo próprio conjunto das ofertas televisivas. O espectador deixa de perceber que o seu leque de possibilidades transcende o repertório em relação ao qual sua resposta está sendo medida.
A mais importante característica da TV por assinatura é justamemente ampliar esse leque, criando alternativas para o modelo massificante que está na natureza das redes abertas. Isso tem funcionado relativamente bem: desde a metade do ano passado, o conjunto de redes de TV por assinatura nos EUA passou a suplantar em audiência a soma das quatro principais redes abertas.
Esse conjunto é pulverizado. Contém algo em torno de 450 redes de TV por assinatura oferecidas a mais de 3 mil operadores que distribuem os sinais por todo o país. A diversificação da oferta promovida pela multiplicação dos mecanismos de distribuição de sinais (MMDS, cabo, DTH) trouxe vários corolários importantes, como a redução do poder de barganha das concessões. Mas nenhum teve um impacto tão forte sobre a relação do veículo com a sociedade quanto a sua possibilidade de desmassificação, que atinge diretamente a produção do conteúdo e a arquitetura dos mecanismos de comercialização do veículo. Multicanal, a televisão assume também a possibilidade de desenvolver um caráter segmentado, onde as redes de TV por assinatura já não têm obrigação de falar de tudo ao mesmo tempo, mas, pelo contrário, são encorajadas pelo mercado a buscar a especialização, os nichos específicos, substituindo o superficialismo pelo rigor.
A medição quantitativa do desempenho de uma rede de televisão por assinatura representa o sinal verde para que estas virtudes, as principais da segmentação, sejam abandonadas. Seu lugar tende a ser ocupado por duas possibilidades igualmente nocivas: a reprodução dos modelos vigentes na televisão aberta, e a padronização das redes que compõem os lineups.
Um e outro já acontecem no Brasil, por um conjunto de razões. A principal está no atributo dos operadores de empacotar os programadores e não apenas distribuí-los. Se a TV multinacanal permitiu a disponibilização de um número praticamente infinito de sinais, coube aos operadores criar modelos seletivos de agrupamento que, em muitos casos, reproduziram os critérios antes utilizados pelas redes abertas para a seleção de seu conteúdo.
Outra razão é que a tendência monopolística observada na televisão aberta brasileira se transferiu, como esperado, para a televisão por assinatura. Em decorrência disso, os lineups não encorajaram o surgimento de redes independentes; e as redes surgidas avançam na medida em que é possível fazê-lo estando sob o guarda-chuva hegemônico. A valoração quantitativa das redes e dos produtos vai potencializar essas distorções.
Diferença pequena
Se o número de espectadores não é um bom parâmetro para avaliar o desempenho de uma rede de televisão por assinatura, isso não quer dizer que não existam mecanismos adequados para tal. O melhor deles consiste em avaliar o impacto da rede sobre a venda da assinatura ou a satisfação do assinante.
Para que isso fique claro, é necessário levar em conta que alguns segmentos constituem condições necessárias para que o consumidor decida comprar os serviços de um operador; outros são determinantes desta decisão. No primeiro caso, estão os canais infantis, de esportes e de filmes. Nenhum operador sobreviveria se não oferecesse ao consumidor boas alternativas nestes três segmentos.
Já os determinantes são conjunturais; dependem, entre outras coisas, da organização social da área em que está o operador. Nos EUA, por exemplo, é fácil determinar as regiões onde exista uma demanda maior por canais voltados para a comunidade negra, ou judaica; para assuntos do campo ou do meio urbano. Nenhum desses segmentos vai fazer primariamente com que uma assinatura de programação seja comprada. Qualquer um deles, no entanto, é capaz de determinar se a decisão da compra será tomada ? e vai regular depois o grau de satisfação do assinante com o lineup que recebe.
Outros fatores incluem o impacto das redes na discussão das questões comunitárias, ou de natureza puramente cultural. Quanto mais um canal contribua para a diversificação (em oposição à padronização) da grade, melhor é o seu desempenho.
Uma pesquisa quantitativa tiraria tudo isso do ar. Induziria o espectador a acreditar que um canal é tão melhor quanto mais ele se pareça com uma grande rede aberta. Bom mesmo é o que a gente já conhece.
O problema é que todos os estudos modernos apontam em outra direção. As teorias contemporâneas do espectador reconhecem a existência de cabeças pensantes em frente ao aparelho. "Os consumidores passivos são espantalhos que caíram em desuso", lembra Daniel Dayan (En Busca del Publico, Gedisa, Barcelona, 1997). John Corner mostra que a agenda de pesquisas sobre o poder dos meios "não está mais dominada pelo tema da oferta, mas pela proliferação de trabalhos relativos à demanda" (Meaning, Genre and Context, Edward Arnold, Londres, 1991).
Em outras palavras, o que interessa não é saber se o Fox Kids é mais visto que o Discovery Kids e menos do que o Cartoon, ou se o Telecine Premium é mais apreciado que o Cinemax e menos que o HBO, porque a diferença será sempre muito pequena ? e, no fundo, o que está sendo pesado é farinha do mesmo saco. O que interessa é saber se o canal está de fato contribuindo para aquilo a que ele se destina num ambiente de TV por assinatura ? pluralizar. E a pluralização (tanto da programação quanto dos mecanismos de produção) é, como lembra Carlo Sartori, um dos determinantes mais visíveis da qualidade em televisão (La Qualitá Televisiva, Bompiani, Milão, 1993).
Base estagnada
É facílimo entender ? ainda que o conservadorismo das agências relute em aceitar ? a relação direta que existe entre as mídia segmentadas. Uma revista literária ou científica é tão mais respeitada quanto mais fundo ela puder ir no seu objeto e conseqüentemente estabelecer uma relação de cumplicidade intelectual com seus leitores.
Da mesma forma a televisão. É irracional imaginar que 80 milhões ou 110 milhões de brasileiros estão autenticamente interessados no mesmo produto cultural todas as noites. Se ninguém se espanta mais com isso, é porque o atributo massificante da televisão aberta está bem determinado ? e não subsiste a menor dúvida dos valores que estão em jogo.
Ainda que em televisão por assinatura as pesquisas não meçam audiências massivas, os valores envolvidos são idênticos. Isto significa que as reações aos números serão de natureza similar. Um excelente documentário exibido pela GNT, por exemplo, pode ser condenado justamente por estar orientado para o seu nicho de público ? e cumprindo bem essa proposta. Programas e até mesmo redes voltados para interesses específicos, tão plurais quanto a própria sociedade, tenderão a ser banalizados ou simplesmente desaparecer.
Por esta razão, é importante estabelecer o papel do público nisso tudo. O modelo de TV por assinatura não aumentou simplesmente a oferta de canais. Estabeleceu também uma nova ordem econômica no veículo. Na televisão aberta, a conta é paga pelos patrocinadores ? que naturalmente querem ver mais gente vendo os seus comerciais, não importa o produto que lhes seja oferecido entre eles.
Na TV por assinatura, no entanto, quem paga a conta é o assinante. E o que essa conta está pagando é programação. Se a base de assinantes no Brasil praticamente se estagnou nos últimos dois anos, a pasteurização da programação dificilmente contribuirá para aumentá-la. O que isso poderá fazer é desagradar a base já formada, que na melhor das hipóteses não pagou para ver sua escolha sendo loteada.
Resultados satisfatórios
Existem ainda complicadores técnicos e metodológicos importantes. O principal é o estabelecimento da natureza do que se está comparando, que já no primeiro grau as crianças aprendem no paradigma da comparação entre ovos e laranjas. Por mais nocivas que possam resultar, medições quantitativas em televisão aberta comparam unidades da mesma natureza. Já unidades segmentadas têm, por definição, naturezas diferentes. Quem assiste a um desenho animado no lugar de um noticiário em francês, não está optando; ambos os canais estão apenas sendo oferecidos pelo mesmo mecanismo, assim como tênis de jogging e sapatilhas de ballet podem eventualmente ser encontrados na mesma sapataria. Se a sapatilha for redesenhada para se parecer com o tênis que vende mais, então as conseqüências para o mundo da dança não demorarão a surgir.
É preciso entender também o que significam os números absolutos, pulverizados num universo tão grande. Com menos de 2% de audiência nos EUA, a CNN estaria liquidada se essas pesquisas fossem lidas com a linearidade com que o são na TV aberta. E no entanto é a rede de televisão mais influente no mundo. Sem ela, os operadores que brincam de Deus não durariam uma semana.
Mesmo com um conjunto gigantesco de distorções, as redes de TV por assinatura montadas ou distribuídas no Brasil têm apresentado resultados culturais satisfatórios. Algumas das melhores redes montadas no país (Superstation, Bravo Brasil) ficaram no meio do caminho, mas outras (GNT, Multishow, STV) têm trazido momentos de inteligência e qualidade aos assinantes brasileiros. Dessa conquista, já tão modesta, não se pode recuar, para que, sobre ela, a televisão por assinatura possa crescer.
No modelo monolítico da televisão aberta brasileira, o espectador tem que assistir a mesma novela para se sentir parte da sociedade. O que a televisão segmentada contempla é justamente o oposto, a individualidade do espectador. O fortalecimento da TV por assinatura passa pelo reforço, e não pela diluição, desta sua mais notável possibilidade.
(*) Jornalista, produtor e diretor de TV. Autor de TV em expansão ? novas tecnologias, segmentação, abrangência e acesso na televisão moderna (Editora Record) e A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes (Editora Relume Dumará)
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