Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A morte ao vivo

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MONITOR DA IMPRENSA

SHOW DE HORRORES

Arnaldo Dines, de Nova York

Durante o julgamento em Nova York de quatro terroristas árabes acusados pelas explosões das embaixadas americanas em Dar Es Salaam, na Tanzânia e em Nairobi, no Quênia, em 1998, foi revelada a existência de um manual de terrorismo com o título de Estudos militares na Jihad contra os tiranos. Com 180 páginas divididas em 18 capítulos, o manual ? cuja publicação é atribuída ao líder terrorista Osama bin Laden ? ensina como cometer assassinatos e atos terroristas em países do mundo ocidental. Mas se o terrorismo já tem o seu manual para a execução de atentados, resta agora à imprensa americana desenvolver um manual com regras para a cobertura jornalística dos responsáveis por esses atos.

O problema é: enquanto a Constituição americana dita que todos são iguais perante a lei, a imprensa prefere caracterizar o grau de culpabilidade do terrorista em função da nacionalidade das vítimas. Aparentemente, na opinião dos jornais e das redes de televisão nos Estados Unidos, um terrorista ? seja qual for a sua nacionalidade ? é mais culpado quando as vítimas são americanas, e menos culpado quando as vítimas são estrangeiras.

O terrorista americano Timothy McVeigh, por exemplo, conseguiu estender os seus 15 minutos de fama por 7 anos por meio do contraste da brutalidade de seu crime com a frieza de sua personalidade. Responsável único pelo massacre de 168 vítimas inocentes na explosão de um prédio público em Oklahoma, em 1995, e com execução marcada para 16 de maio, ele é justificadamente caracterizado como um monstro de sangue-frio tanto nas primeiras paginas do jornais como nos primeiros minutos dos noticiários de TV. E é esta imagem que alimenta a sede coletiva por vingança, a ser saciada em parte com a transmissão ao vivo da execução através de um circuito fechado de televisão. Ainda que limitada apenas aos familiares das vítimas, a transmissão é uma espécie de versão modernizada e digitalizada de um velho espetáculo francês: a execução por guilhotina em praça pública.

"Involuntário e acidental"

O frenesi jornalístico com essa seqüência de eventos chegou a tal ponto que John Ashcroft, chefe do Departamento de Justiça, ao informar a imposição de limites no acesso da imprensa a McVeigh, antes da execução, fez também um apelo nacional para que a mídia não se torne uma "co-conspiradora" (palavras dele) involuntária na propagação das visões fanáticas de McVeigh.

Por outro lado, os 15 minutos de fama dos terroristas nos casos das embaixadas americanas na África duraram pouco mais do que isso, em tempo real. Desde o início do julgamento, em fevereiro, a cobertura tem sido rotineira e ocasional no interior dos primeiros cadernos dos jornais, sendo raramente mencionada nos telejornais. Mesmo os nomes desses terroristas permanecem obscuros e impronunciavéis, substituídos por generalizações como "militantes muçulmanos", "discípulos de Osama bin Laden" ou pela simples alusão às suas nacionalidades e origens étnicas ? justamente como consta no início do primeiro parágrafo deste texto. Mas se esta despersonalização tem o efeito benéfico de desmistificar o terrorista como indivíduo, o efeito paralelo é uma banalização das tragédias humanas causadas por esses indivíduos. Nas explosões na África, a apatia da imprensa é ainda alimentada pelo fato de que somente 12 das 224 vítimas eram americanas. O restante dos mortos eram africanos.

A atuação da imprensa americana se revela ainda mais surpreendente no caso de Lori Berenson, que vai a julgamento pela segunda vez, no Peru, por seu comprovado envolvimento com o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), grupo marxista responsável por inúmeros assassinatos e seqüestros. Americana de 31 anos, ela já havia sido condenada por um tribunal militar secreto em 1996, em uma farsa de justiça montada no auge da farsa presidencial de Alberto Fujimori. Já cumpriu 5 anos de pena em condições deploráveis, num presídio no alto dos Andes. Se o seu envolvimento com o grupo terrorista foi involuntário e acidental, como ela clama ? ou voluntário e premeditado, como acusa o governo peruano ?, caberá ao novo tribunal civil decidir, desta vez em sessão pública.

Justificação moral

Todos esses detalhes, além de dados biográficos da vida de Lori, foram amplamente reportados para o público ? obviamente não com o destaque dado à McVeigh, mas ainda assim com uma cobertura desproporcional à importância do caso. E é justamente essa atenção especial, assim como uma ênfase na moralidade do novo julgamento, que revela uma forte dose de parcialidade num caso que, de certa maneira, bate perto do coração da imprensa americana.

O fato é que Lori Berenson é filha da um casal de intelectuais de Nova York e estudou no conceituado Massachusetts Institute of Technology. Ela é fruto do meio ambiente cultural do chamado northeastern corridor ? um corredor geográfico que vai de Washington a Boston, com Nova York no centro. Assim como ela, grande parte dos repórteres e editores dos principais órgãos de comunicação do país são produtos desse mesmo meio.

Para um editor do New York Times ou do Washington Post, por exemplo, Lori poderia ser sua própria colega ou parente. E é esta empatia emocional que resulta em uma simpatia editorial com o drama de Lori, seja ela realmente culpada ou inocente. Talvez por isso, a maioria dos artigos sobre o seu julgamento demonstra uma certa tendência conspiracional por parte do governo peruano, representado por um corpo judicial anônimo, contra o idealismo de uma jovem americana.

De outra parte, seria interessante imaginar a postura da imprensa perante um hipotético julgamento, em solo americano, de um jovem idealista peruano, envolvido com grupos terroristas ativos nos Estados Unidos. E, ainda hipoteticamente, qual seria a reação do establishment intelectual e político do país perante a publicação em algum grande jornal de matéria que tentasse justificar o réu (um estrangeiro) por razões sentimentais ou ideológicas?

Foi exatamente contra essa racionalização do terrorismo (e conseqüente justificação moral do terrorista) que investiu John Ashcroft, do Departamento de Justiça, quando levantou a questão da mídia como instrumento de propagação do fanatismo, no caso de Timothy McVeigh. Cabe agora à imprensa americana cobrar de si mesma uma cobertura compatível com a gravidade do ato terrorista, independente da nacionalidade dos perpetradores e das vítimas.

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