ARMAZÉM LITERÁRIO
Autores, idéias e tudo o que cabe num livro
RESENHA
Vitor Sznejder
Trilogia suja de Havana e O rei de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez, Companhia das Letras, 1998 e 1999, tradução de José Rubens Siqueira.
Cuba, década de 90. As cidades, inclusive a capital, estão destruídas fisica e moralmente: as pessoas se amontoam às dezenas em cubículos e vivem de expedientes que preencheriam todo um código penal. Prostituição, roubo, pequenas e grandes violências contra vizinhos, ex-amigos e os muito eventuais turistas ? tudo se justifica porque é preciso sobreviver. E ainda assim prevalece na narrativa uma sensualidade que nos faz lembrar do Brasil, principalmente o país negro e mulato que tanto se assemelha a Cuba.
Pedro Juan Gutiérrez manipula uma navalha no lugar da caneta; seu texto objetiva estripar e deixar as vísceras à mostra. As informações da editora sobre o autor dão conta de um jornalista nascido em 1950 que trabalhou como soldado, cortador de cana e em uma miríade de outros ofícios. Ele os menciona, em ambos os livros.
Num dos raríssimos momentos em que alguém faz algo semelhante a crítica ou denúncia política, temos o seguinte diálogo:
? Eles não podem esquecer o povo desse jeito. O edifício está caindo aos pedaços e nunca tem água, nem gás, nem comida. (…) O governo tem de tomar conta da gente. Você não é jornalista? Por que não escreve alguma coisa sobre este edifício? (…)
E a resposta de Pedro:
? Hortensia, não viu que estou vendendo balde? Nem varredor eu sou! Um dia desses venho com mais tempo e conversamos. (…)
Em outro trecho o personagem conta que havia trabalhado numa emissora de rádio, "só para escrever umas notas que intercalavam na programação. Bobagens para que as pessoas parem de fumar, não dirijam embriagadas, evitem acidentes domésticos com os filhos".
O Rei de Havana, seu segundo livro em prosa, é um romance aterrador que não se consegue abandonar. O protagonista, ironicamente chamado de Rey(naldo), é fruto da mesma realidade social decomposta; além disso, é desequilibrado psiquicamente. Não consegue distinguir entre o bem e o mal e luta pela satisfação das necessidades físicas, começando pelo alimento e pelo sexo. É uma obra literariamente mais bem resolvida e enxuta que a Trilogia suja de Havana, do mesmo autor, cujos contos a certa altura ficam repetitivos.
Pedro Juan Gutiérrez lembra os nossos "especialistas" em deserdados e desvalidos João Antônio e Plínio Marcos. Mas o autor que Gutiérrez escolheu para usar numa epígrafe foi Italo Calvino:
As cidades, como os sonhos, são construídas de desejos e medos, não obstante o fio de seu discurso ser secreto, suas regras absurdas, as perspectivas enganosas e cada coisa esconder outra. [As cidades invisíveis]
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