Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carlos Heitor Cony

ASPAS

OS CASOS CATÃO E LINS

"Deslumbrados de ontem e de hoje", copyright Folha de S. Paulo, 21/04/01

"Dois casos que estouraram na mídia devem obrigar os profissionais do setor a refletir sobre as imagens que ajudam a criar. O chamado ?café-society? dos anos 50 e os subprodutos que apareceram nas décadas seguintes foram exaltados como um padrão de comportamento da elite que conta.

Tanto a novelesca investigação de paternidade de uma família badalada naquele tempo como o desfecho fatal, em Búzios, de uma briga entre um caseiro e um homem da sociedade mostram que alguns valores criados pela mídia são, além de equivocados, ridículos.

Afinal, quem criou aquela fauna de gente ?bem? foram, em linhas gerais, os jornalistas de amenidades. Como mariposas rodeando a luz e o calor de personagens fosforescentes, eles exaltaram mitos duvidosos na essência e nas circunstâncias.

Nos dois casos que agora vieram a público, o dinheiro foi o móvel -e não se tratava de tanto dinheiro assim. Em geral, ficamos escandalizados quando um jovem excluído mata outro por causa de um tênis importado. Ou quando alguém é sequestrado em nome de um resgate de R$ 50 mil.

Questão de escala. A morte do advogado Lins, em Búzios, foi por causa de R$ 2.000 que o patrão estaria devendo ao empregado. No caso da família Catão, uma sepultura será remexida não para investigar uma paternidade que até então não incomodava aos interessados, mas para a habilitação de um espólio que não chega a ser tão vultoso assim.

A mesma mídia que se equivocou ao criar personagens lendários da sociedade é a mesma que, agora, mete o malho nos emergentes, os novos-ricos que surgem em toda a parte. É possível, até, que a turma de hoje seja melhor do que a de ontem.

O que continua pior é o deslumbramento da mídia diante dos bem-sucedidos no poder ou na sociedade."

RECEITAS DE FELICIDADE

"Felicidade e facilidade na capa", copyright Folha de S. Paulo, 19/04/01

"A partir dos anos 70, as tribulações e as esperanças de cada dia pararam de ser assuntos frívolos. Na imprensa, cresceu o número de artigos sobre comportamento, sociedade e vida cotidiana. Talvez os novos temas distraíssem os leitores de afazeres mais sérios, mas, pelo menos, a maioria das reportagens indagava os objetos escolhidos. Imagine uma capa sobre o elixir de longa vida: os artigos relatariam os entusiasmos populares, mas logo exporiam os interesses econômicos em jogo e questionariam a credulidade das massas.

Algo mudou. As páginas de comportamento e de vida cotidiana são cada vez mais importantes na imprensa, mas muitas reportagens parecem sobretudo alimentar ilusões.

Acontece em todos os jornais e revistas. Esta semana foi a vez de ?Istoé?. Matéria de capa: ?A Receita da Felicidade?. Bravamente o artigo tenta mostrar a complexidade da questão, mas títulos e subtítulos desmentem o esforço dos repórteres. Por exemplo, é citada inicialmente, no texto, uma pesquisa americana insossa que acha possível nos ensinar a sermos felizes. No fim do parágrafo, os jornalistas comentam, justamente irônicos: ?Simples assim?. Mas o subtítulo da matéria contradiz qualquer ironia: ?Cientistas comprovam que a felicidade etc?. O mesmo vale para as ?janelas? que acompanham o texto: são os ?truques? dietéticos ?para levantar o astral? e a própria ?receita da felicidade?.

Na semana passada, foi a vez de ?Época?. Nesse caso, o título da matéria de capa -?A Reconstrução do Corpo?- concordava plenamente com a reportagem: os leitores aprendiam que ?técnicas arrojadas permitem o encontro das formas perfeitas?. Parece-me que, poucos anos atrás, uma reportagem sobre esse tema desmascararia os lucros da indústria da aparência física, exporia os riscos das cirurgias e enumeraria as patologias do desejo de modificação corporal.

Enfim, indicaria que a insatisfação com o próprio corpo expressa quase sempre um sentimento de inadequação que se origina em outras áreas da vida, mais fundamentais e perniciosas (inadequação no amor, nos relacionamentos etc).

Mas nossa época prefere que a beleza seja fácil. E que a felicidade seja receitável.

O fenômeno não é só brasileiro. A capa de ?U.S. News?, de poucas semanas atrás, prometia revelar enfim ?os segredos da gagueira?. Ora, a reportagem propunha uma versão apenas melhorada da pedagogia da palavra de apoio que, há décadas, permite que os gagos falem. Na mesma data, a capa de ?Time? convidava o leitor a descobrir ?as novas curas prometedoras para centenas de fobias?. De fato, do Paxil às terapias do comportamento, a única coisa nova no artigo era o otimismo de seu subtítulo.

Esse jornalismo sorridente, para festejar soluções, está disposto a inventar de maneira radical. Recentemente foi divulgada uma pesquisa sobre a localização cerebral do amor: a paixão parece ativar zonas diferentes da ternura. Isso não tem nenhuma implicação para a vida da gente. Mas o ?Boston Globe?, em vez de perguntar, sei lá, se a pesquisa valia o dinheiro que custou, prometeu a todos, no futuro, paixões como a de Brad Pitt por Jennifer Aniston, logo transformadas na tranquila felicidade de Paul Newman com Joanne Woodward.

O que está acontecendo? Há a hipótese paranóica: o Matrix está apoderando-se do planeta, começando pelas editorias de comportamento e de sociedade. Os extraterrestres nos preparam assim para que aceitemos a pílula da felicidade que distribuirão numa próxima invasão.

Fora essa eventualidade, resta considerar que o jornalismo da boa notícia seja um porta-voz privilegiado do momento cultural. E alguém já disse que hoje a qualquer problemática prefere-se a ?solucionática?.

Mas cuidado: é quase natural para nós debochar da facilidade. O romantismo nos inculcou a idéia de que as interrogações atormentadas são a nobre substância de verdade e de autenticidade. Durante muito tempo, o que não fosse triste, sombrio e difícil era considerado piegas e ridículo. O direito à felicidade, que, no começo da modernidade, foi proclamado como a nova pretensão do homem moderno, aparece hoje como uma ingenuidade para almas simplórias.

Ganhou força, sobretudo na cultura européia, a fascinação pelos impasses radicais. O impossível tornou-se sinal de elegância e de alta cultura, enquanto o possível e o realizável seriam preocupações de baixo nível. Ora, é possível que essa disposição romântica esteja se esgotando. E que, na coluna de hoje, eu seja apenas um velho rabugento que chora sobre os cacos do romantismo.

Por que não parar com isso e festejar a facilidade da felicidade? Pois é. Antes de entrar na dança, uma última pergunta: será que o sucesso da ?solucionática? é o sinal de uma nova disposição de espírito mais alegre diante da tarefa de viver? Ou será que essa pretensa leveza do ser é uma vassoura com a qual empurramos furiosamente nossos problemas para baixo do tapete?"

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