MEM?RIA
RÉQUIEM PARA UM ARTISTA
Nahum Sirotsky, de Jerusalém
Scliar se foi. E os seus mais intimos amigos sabiam que vinha morrendo havia 20 anos. Ele, claro, também. Numa cirurgia para salvá-lo de um enfarte infectaram-no com uma hepatite mortal, contraída por meio de transfusão de sangue. Quando soube que ia morrer, passou a trabalhar com o ritmo de quem tinha pressa.
Ele era um artista, bem mais do que um pintor. Os talentosos que conseguem adquirir técnica e se profissionalizam são os profissionais. É expressão que se aplica a tudo. O artista sempre expressa o que sente, sua visão, seus sonhos. Ele comunica seu amor, sua necessidade de ser compreendido e correspondido. O artista cria beleza. É um deus.
Assim era Carlos Scliar ? ou Carlito, como preferiam seus amigos. Conheci-o quando eu era guri. Nunca mais deixou de me chamar por outro nome: Guri.
? Guri ? dizia ele.
E eu atendia. Foi assim, sempre. Eu dirigia a revista Visão com o menino Alberto Dines ao meu lado, outro artista. Outra figura mais que querida. Carlos me apareceu com exemplares de trabalhos do Clube de Gravura, que lançara em Porto Alegre.
? Vale uma matéria ? eu lhe disse.
? Guri, olhe bem. Examine. Você continua o ignorantão, ô guasca. Minha sugestão é você dar gravuras para quem assinar a revista. Ganharão os gravadores e o público.
? Não, nunca ninguém fez… ? fui respondendo.
Fiz e foi um sucesso.
Scliar encaminhou-me talentos quando eu dirigia Manchete. E com Glauco Rodrigues, Bia Feitler, Jaguar e outros criamos a revista Senhor.
Carlito, Glauco (que ele dizia ser o melhor desenhista da história das artes no Brasil) e a equipe fizeram de cada exemplar de Senhor uma pequena obra-prima artística. Sobre a qual se escreve que nunca mais haverá outra revista igual [veja Próximo Texto].
Eu, o chamado diretor, vinha palpitar na mesa dele. Carlito usava uma régua de madeira para me expulsar. Batia mesmo, não é, Glauco? Mas tinha esse direito.
Amor especial
Eu era o Guri, depois de décadas de uma amizade que era mais que amor. Ele fez a melhor cobertura da II Guerra Mundial a qual ? como pracinha, servindo por 11 meses na Itália ? enxergava com seus olhos de artista. Cada desenho tem sua preocupação com a garotada que morria em combate. Amor do artista pelo ser humano.
Foi um obcecado e determinado, jamais se dobrou-se a modas e modismos. Quando todos se entregavam ao abstracionismo, permaneceu com seus temas e modelos. O dinheiro era pouco. Pintava as maçãs e os tomates que lhe serviam de modelo. E deles se alimentava. "Quitanda do Scliar", era como os amigos chamavam seu estúdio.
Os artistas que se entregaram à moda, desapareceram. Mesmo os críticos que negavam reconhecimento à obra de Scliar. Pobres mentalidades colonizadas pelo que Paris considerava importante…
? O Brasil é das cores vindas do sol, das chuvas e do que é concreto: sua terra e seus
rios. Flores, frutas, gente de todas as origens. O abstrato nega a realidade brasileira, a não ser em raros casos de grandeza artística ? dizia.
Tentava fazer de mim um individuo de gosto apurado. Foi ele quem me indicou os Goyas do Museu do Prado. Os Van Goghs. Algo deve ter me passado.
Tinha um texto magnífico, cultura ampla e profunda. Um coração vastíssimo; ajudava a quem podia. Judeu não-praticante, praticava os Mandamentos inconscientemente (?). Não era vingativo. Não sei de ter feito mal a alguém. Talvez eu não tenha visto nada de maléfico pelo amor que lhe dedicava e dedico. Amor entre amigos é muito especial e indescritível.
O homem e o cavalo
Cada obra sua é como ele foi. Cada pincelada. Um homem sempre em tensão ? uma tensão que controlova. Um aflito e agitado que projetava imagem de tranqüilidade aos que não o conheciam. Sua obra comunica a serenidade que queria para o mundo. É olhar e sentir a paz, sem luzes violentas nem cores agressivas. Flores que se querem eternas mas, sabe-se, vão fenecer logo, logo…
As frutas como alimento. Nada de estimular a gula. O azul do canal de Cabo Frio. Cores delicadas que não cansam jamais a vista. Ele não gostava de retratar. Mas "viu" Beyla Genauer, minha companheira e mulher, como ninguém. Outro quadro, de uns muitos anos atrás, é de um filho menino enfatizando olhar para o vago, antecipando o que ele viria a ser, um praticante e crente. E há um cavalo branco, galopando, esticado, correndo para lugar nenhum. Ele fez o cavalo quando reclamei:
? E eu, não mereço um retrato.
Fez o o cavalo e disse que era meu.
Estado irresponsável
Ele foi assassinado. No Brasil, não se atenta o suficiente para a higiene nos hospitais, para a qualidade do sangue. E isto a mídia deveria estar denunciando e defendendo o direito do pobre e miserável que entra num hospital para curar-se e morre por falta de recursos. O porquê de viver em sobressalto, sem confiança, num Estado incompetente, desonesto, egoísta e egocêntrico. Injusto. São tão-somente números de assassinatos legais cometidos num país rico para os ricos, apenas.
Scliar, um dos grandes artistas gráficos do Brasil, cuja obra de pintor será fatalmente revista e engrandecida, vai nos fazer falta. Lamentavelmente, muitos e muitos outros vão ser assassinados por hepatites e outras enfermidades evitáveis fosse o Estado mais responsavel.
Memória ? próximo texto