Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo

MEM?RIA

ASPAS

RÉQUIEM PARA UM ARTISTA

"Liberdade na criação marcou obra de Carlos Scliar", copyright O Estado de S. Paulo, 30/04/01

"O corpo do pintor gaúcho Carlos Scliar será cremado hoje, às 9 horas, no crematório do cemitério São Francisco Xavier, no Caju, no Rio de Janeiro .

Meia hora antes, acontecerá um velório reunindo parentes e amigos do pintor que morreu na madrudaga de sábado, aos 80 anos, às 5 horas, no Hospital Adventista Silvestre, com um quadro de falência múltipla dos órgãos em decorrência de hapatite, diabetes e hipertensão. Scliar estava internado desde o dia 15 de abril no Hospital Silvestre, no bairro de Santa Teresa.

Em respeito ao próprio pedido do pintor, as cinzas serão lançadas nas praias de Cabo Frio, onde Scliar mantinha seu ateliê desde a década de 60. Sua casa naquela cidade, que pertenceu antes ao pai de Santos Dumont, e outro ateliê em Ouro Preto, uma edificação do século 18 restaurada, serão transformadas em institutos culturais para abrigar as 300 obras que o pintor colecionava, suas e de amigos.

Figura central da história da arte moderna brasileira, Scliar exibia uma formação que combinava elementos clássicos do modernismo, como o cubismo, lições importantes oriundas de sua experiência como artista gráfico (é dele o projeto da revista Senhor, um dos mais bem-sucedidos da história da imprensa brasileira), com um perpétuo e inesgotável interesse pelo que o cercava. ?Acho que eu represento o mundo que eu vivo?, afirmou, em recente entrevista ao Estado, antes da abertura da exposição de obras recentes, na Pinacoteca.

A afirmação não soou gratuita, como provam os desenhos que fez na Itália durante a 2.? Guerra Mundial, onde serviu na Força Expedicionária Brasileira, ou seu trabalho à frente do Clube da Gravura de Porto Alegre. Ou ainda as obras de juventude, em que sofreu influência decisiva do realismo social de Portinari e Segall, mas é a partir de uma ótica construtiva rigorosa, de uma necessidade de desconstruir o espaço em elementos geométricos, que ele construiu suas paisagens e naturezas-mortas.

Também se destacam as serigrafias que Scliar fez no ano passado para o álbum sobre os 500 anos do Brasil: é o momento em que se revelou um artista crítico, fazendo comentários sobre diferentes épocas da história, como a chacina em Vigário Geral.

?Sua obra sempre foi marcada por um rigor formal, por uma inquietação de gestos e, sobretudo, por uma redução de meios de expressão?, comentou, no final do ano passado, Emanoel Araujo, diretor da Pinacoteca, por ocasião da abertura da exposição de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, artistas que influenciaram e praticamente adotaram Carlos Scliar – em obras como Mercado de Dakar, um guache pintado por ele em 1947 na viagem à França, acompahando Maria Helena, nota-se o desejo de Scliar de pintar à maneira da amiga. O desenho exibe também o mesmo traço ligeiro e preciso de Szenes.

Apesar das diversas influências, o pintor gostava de afirmar que o cubismo foi o movimento que mais mexeu com seu estilo. ?Um quadro nada mais é do que uma composição geométrica, cheia de problemas?, explicava. ?Normalmente, começo o quadro sabendo o que quero, mas ele termina completamente diferente.?

Símbolos – Era notória também a influência de seu trabalho como designer. Usando elementos repletos de símbolos e sinais gráficos, como partituras musicais e caligrafias caprichadas, ele intensificava a carga dramática do trabalho, quase não deixando ao olhar um único campo em que possa repousar por alguns instantes.

Scliar, aliás, não negava as diversas marcas que recebeu em sua obra, visitando at&eeacute; os artistas que mais admirava, como fez com Morandi, quando esteve na Itália. ?Quero mostrar que, aos 80 anos, estou renovando a pintura; em qualquer idade você é outro, enriquecido?, gostava de afirmar, lembrando que buscava a síntese não pela limpeza, pela depuração dos vários elementos plásticos, mas pelo excesso. O resultado não era uma obra desigual, mas audaciosa, marcada pela liberdade em lidar com as cores."

MEMÓRIA / CARLOS SCLIAR

"Morre o mestre da pintura poética e política", copyright Jornal do Brasil, 29/04/01

"Carlos Scliar 1920 – 2001 – Feroz na militância por transformações na sociedade e doce no trato pessoal e no apoio a artistas mais jovens, Carlos Scliar viveu até os 80 anos criando uma obra que bebia na fonte do cubismo, mas tratava esta referência de uma forma absolutamente pessoal. Nascido na gaúcha Santa Maria em 1920, o pintor morreu ontem, às 5h, no Hospital Silvestre, no Rio, de falência múltipla dos órgãos, em conseqüência de hepatite, diabetes e hipertensão.

?Scliar foi um exemplo de persistência ética, um batalhador pela arte e a cultura?, exaltou o artista plástico Luiz Ernesto, diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, instituição que teve em Scliar um aguerrido presidente da Associação de Amigos. Para Luiz Ernesto, a arte de Scliar era facilmente identificável, com uma marca forte, mas ainda assim surpreendente. ?Ele tinha um olhar poético sobre o cotidiano. Nunca fez uma arte panfletária, nunca seu trabalho foi ilustrativo de uma ideologia?.

?A fase inicial da obra dele é muito boa, e todo o trabalho de arte gráfica, também?, ressalta Lauro Cavalcanti, diretor do Paço Imperial. ?Scliar foi um grande artista e uma pessoa adorável, representante perfeito de uma época em que o cinismo era menor e em que o espírito de classe era maior?. Lauro lembra que, nos anos 70, Scliar costumava comprar desenhos de artistas jovens como Cildo Meireles, Artur Barrio e Luiz Alphonsus, praticamente viabilizando a carreira deles.

Pode-se dizer que Carlos Scliar descobriu os primeiros traços da arte ainda na infância. ?A pintura entrou na minha vida a reboque da literatura. Eu escrevia histórias infantis e, na falta de alguém para ilustrar, fazia eu mesmo os desenhos. Acabei descobrindo que desenhava melhor do que escrevia?, contou em uma entrevista. Aos 11 anos começou a colaborar nos cadernos juvenis e infantis dos jornais gaúchos Diário de Notícias e Correio do Povo . Aos 15 anos, já participava da sua primeira exposição.

Em 1944, quando já tinha relativa fama como artista plástico, Scliar foi convocado pela Força Expedicionária Brasileira para lutar na Itália. Muita gente foi contra, mas lutar ao lado dos aliados era ?uma questão de dignidade?. Nos 11 meses em que permaneceu na Itália, produziu cerca de 700 desenhos. ?Teria ficado maluco se não desenhasse durante a guerra. E os desenhos acabaram se tornando importantes porque marcaram uma virada. Antes, meu trabalho era muito social, influenciado por Segall e Portinari. Depois da FEB, passei a me concentrar nos objetos, na paisagem que nos cerca?, analisou ele, um especialista em naturezas-mortas.

Depois da Guerra, Scliar voltou ao Brasil, deparou-se com a redemocratização pós-Vargas e inscreveu-se no Partido Comunista. Em 1947, seguiu para Paris. Além da intenção de estudar pintura, levava na bagagem uma carta de Luís Carlos Prestes como passaporte para ingressar no PC. O pintor chegou a morar com o escritor Jorge Amado.

A intenção era ficar lá para sempre, mas voltou ao Brasil em 1950, quando percebeu que, apesar de ser filho de imigrantes, sua arte era brasileira. Sempre combativo, em 1954 participou do Salão em Preto-e-branco, protesto contra os altos impostos sobre a importação de tintas que chegou às paginas da revista Time. Dois anos depois, foi convidado por Vinicius de Moraes para ser consultor plástico de Orfeu da Conceição.

Ainda nas artes gráficas, tornou-se, em 1958, diretor de arte da revista Senhor. ?Foi a chave de ouro do meu trabalho de artista gráfico. E neste momento, 1960, depois de 20 anos de trabalho, eu pude viver apenas dele?, ressaltou em uma entrevista. Parte da segunda geração de modernistas – um pouco mais jovem que Guignard e Cícero Dias -, só em 1960 Scliar passou a se dedicar apenas à pintura, também montando ateliês em Cabo Frio e Ouro Preto. Ativista, engajou-se na defesa da preservação das dunas das praias e do casario da cidade histórica mineira.

Scliar começou a enfrentar problemas de saúde em 1980, quando fez uma cirurgia para colocação de pontes de safena e contraiu hepatite em uma transfusão de sangue. No ano passado, o pintor chegou a ficar um mês internado em um hospital depois do lançamento do álbum 1500/2000. A redescoberta do Brasil, produto que reuniu fotos, documentos, pinturas e gravuras de Scliar nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento.

A representação do país em sua obra é ampla. Há desde uma tela dedicada à Batalha dos Guararapes aos favelados mortos na chacina de Vigário Geral, no Rio – obra feita a partir de uma primeira página do Jornal do Brasil.

A última exposição de Scliar foi no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio, em dezembro do ano passado. Batizada de Carlos Scliar 80 anos, ela retomava, na opinião do poeta e crítico Ferreira Gullar, o melhor caminho estético do pintor, aquele que descendia do cubismo e trabalhava com colagens de uma forma bem própria. ?Ele fez desse momento do cubismo uma linguagem muito pessoal, criou toda a sua obra a partir daí. Sua última exposição era excelente?, diz Gullar.

Scliar – que tem um filho adotivo, três netos e dois bisnetos – será cremado amanhã, às 9h. O velório acontecerá no mesmo dia, meia hora antes, no crematório São Francisco Xavier, no Caju."

RICHARD MORSE

"O americano intranqüilo", copyright O Estado de S. Paulo, 25/04/01

"Semana passada, morreu Richard Morse, no Haiti, terra de sua mulher, Emerante de Pradines. Era um amigo do Brasil e se considerava meio paulistano: aqui fez teatro, história e cultivou admirações e amizades. E aqui deixou um discípulo, Matthew Shirts.

Estudioso da história de São Paulo, do Brasil e da América Ibérica, sobretudo pelo flanco da urbanização, escreveu um livro que se tornaria um clássico dos estudos sobre esta cidade, From Community to Metropolis (1954), depois traduzido, ampliado e publicado com o título Formação Histórica de São Paulo (SP, Difel, 1970).

Como já escrevi alhures, ele não se considerava propriamente um brazilianist, nem desavisado latino-americanista. Numa época em que tanto ?os deserdados como os executivos? vêem seus sonhos evanescer, em que as ?elites têm de se proteger atrás de burocracias labirínticas contra as massas inoportunas?, Morse propôs uma revisão profunda dos conceitos de civilização, de cultura, de atraso, de modernidade, de centro, de periferia, de história (Um Americano Intranqüilo, RJ, Editora da FGV-CPDOC, 1992, com textos de A. Cândido, F. Falcón, Haroldo de Campos, José Murilo de Carvalho, Roberto Da Matta e Wanderley Guilherme. Apresentação de Helena Bomeny e apoio de José Mindlin). Como afirmou certa vez esse universitário controverso e antiacadêmico: ?Pretendo considerar as Américas do Sul não como vítimas, pacientes ou ‘problemas’, mas como uma imagem especular na qual a Anglo-América poderá reconhecer as suas próprias enfermidades e os seus problemas?.

Neste início da ?era Bush? nos Estados Unidos, com sua visão tacanha de relações com a América do Sul, e de afirmação da nova sociedade civil em muitos países da região (e, em particular, nesta metrópole), vale a pena revisitar algumas de suas teses.

Em seu conhecido livro O Espelho de Próspero, publicado em português em 1988, trouxe uma lufada de ar fresco para os viciados ambientes em que setores da ciência política, social e da historiografia latino-americanista promoviam discussões embaçadas naqueles anos de distensão e abertura, em que se debatia o processo que – hélas – desembocou nesta era de autoritarismo neoliberal. Livro que evocava a grande tradição ensaística, uma das alavancas do pensamento latino-americano contemporâneo, sugerindo a urgente reconsideração de grandes premissas culturais na apreciação das relações da América do Norte com a América do Sul. Ou, mais propriamente, do ?contraste entre Ibero-América e Anglo-América, em vez de América Latina e Estados Unidos?, dessa forma alcançando o pouco freqüentado patamar da reflexão em torno de civilizações, conforme a expressão de Antônio Cândido na apresentação desse livro pouco apreciado nos Estados Unidos.

Ao defender o uso da expressão ?Ibero-América?, Morse atacava as ?prescrições geopolíticas que os governos do Primeiro e Segundo Mundos impõem a seus respectivos quadros acadêmicos e à própria região?. Morse foi também um protagonista desta história, pois, ao desembarcar em São Paulo em 1947, descobriu que intelectual e culturalmente não chegara à periferia, mas ao centro. Conheceu aqui um conjunto variado de intelectuais que não tinham (ainda) seu horizonte cultural fragmentado pelo modelo massificado da universidade e da vida norte-americanas. Ex-estudante de Princeton e Colúmbia, notou que, para os latino-americanos, os ?bárbaros? estão dentro, e não fora, diversamente das experiências do Império Romano ou dos japoneses do século 19, e que essa poderia ser uma pista interessante para se repensar o papel da civilização ibero-americana. Essa civilização – a nossa, aliás – possui identidade histórica, ?tem alguma mensagem para o nosso mundo moderno?, e sua tradição poderá ser útil na virada do milênio para o chamado ?resto do Ocidente?.

Numa memorável conferência em nosso Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, chegou a propor, com sua ironia feroz, a criação de um Instituto de Estudos Atrasados… Heresia? Não. Na gestão Goldemberg, o IEA foi criado extamente para agitar a embotada imaginação universitária e o conformismo (a que voltamos nos dias de hoje). O fato é que, segundo Dick Morse, a sociedade industrial moderna liquida as relações e valores interpressoais, alienando o indivíduo na massificação do dia-a-dia, anulando sua identidade.

Afinal, perguntava, que desenvolvimento é esse que leva à massificação e à loucura do cotidiano? Ou esse ?atraso?, que precisa ser reavaliado, ?pois os latino-americanos abrem-se mais aos meios de comunicação do mundo todo, enquanto os norte-americanos conhecem apenas os seus?? Ou de liberdade, visto que a noção de ?liberty? é estática e rígida, enquanto a de ?liberación? é dinâmica e em aberto? E assim por diante: a noção de andamento é mais profunda que a de ?timing?, e um ?intervalo para um cafezinho? é mais inteligente que o ?coffee break?…

A lição de Morse para São Paulo permanece atual. A crise se avolumou, os desafios são gigantescos, mas, em contrapartida, hoje temos maior consciência dos problemas e, portanto, de suas soluções. Inúmeros estudos de urbanistas, economistas, antropólogos, sociólogos, ambientalistas e historiadores demonstram como o fator ?conhecimento? (ou ?formação? cultural, empresarial, tecnológica, educacional) desempenha papel decisivo no desenvolvimento econômico e social. O historiador, nos anos 1960, escrevendo sobre a maior cidade da América do Sul, lamentava: ?Faltam conhecimentos, ou – o que é mais importante – os incentivos para dimensioná-los precisamente e ajustar de modo correspondente a produção.?

Em parte, isso mudou, pois já existem estudos sérios e competentes para o leitor que deseje aprofundar seus conhecimentos. Mas o historiador norte-americano, ex-professor das Universidades de Yale e Stanford, já detectara o verdadeira problemática contemporânea vivido pela sociedade em geral e pelas empresas neste Estado, considerada em suas m&uacutuacute;ltiplas dimensões, inclusive a ética. E ressaltou o consumidor, a má distribuição de riqueza, o ritmo espasmódico da produção e a influência dos interesses estrangeiros. Em suas palavras: ?Ao mesmo tempo que a maioria dos consumidores de São Paulo vive com recursos parcos, a grande desigualdade na distribuição da riqueza leva um pequeno, mas bem articulado grupo a pagar preços inflacionários por artigos de luxo que requerem as mais adiantadas técnicas industriais e desviam as forças produtivas dos artigos básicos.?

O que se aprende com essa História? Quarenta anos passados, o esforço coletivo para a afirmação, aqui, da nova sociedade civil deve-se concentrar, nessa perspectiva, no sentido de se mobilizar o Estado, a economia e a sociedade para que se ultrapassem os limites impostos pela história presente, ainda marcada por um modelo em que se combinam negativamente o ranço autoritário com a visão imediatista do lucro a qualquer preço. A globalização traz nova carga de desafios, alimentando a cultura da violência, do stress e a corrida, decerto exagerada, que ainda obedece ao ?ritmo espasmódico da produção, caraterístico de uma industrialização recente, exagerado pela influência dos interesses estrangeiros?, como advertia o professor Richard Morse, conservador de vanguarda. Esse americano intranqüilo nos alertava sobre as historicidades próprias de nossa civilização que deveriam ser valorizadas para a construção de uma outra História. (Carlos Guilherme Mota, historiador, professor-titular de História Contemporânea da FFLCHUSP, da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da PUC-SP, é responsável por orientação de pesquisas em regime de pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da USP, do qual foi seu primeiro diretor – gestão Goldemberg)"

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