Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A estupidez conceitual da esquerda

Organizações de destaque no movimento social, a exemplo do Instituto Pólis e Instituto Paulo Freire, que apóiam várias iniciativas importantes para os excluídos, como o Fórum Social Mundial (FSM), bem como publicações tipo jornal Brasil de Fato e Le Monde Diplomatique Brasil, dão espaço a gigantes da luta contra a opressão, como João Pedro Stédile (MST), tal qual ocorreu em abril deste ano de 2008, no Diplô.

Por outro lado, podemos perceber que dizem tudo contra a democracia, mas jamais são objetivos o suficiente para afirmar que ela não existe de fato, e nem dizem também que temos, na prática, uma ditadura: ‘A democracia em que vivemos é hipocrisia‘.

Márcio Pochmann adota a mesma tática, afirmando que o Brasil é refém das grandes empresas e, ao mesmo tempo, considera que temos uma democracia (governo do povo, etc.)… [Ver aqui]

Meia boca

A veemência de minha crítica, aqui ou em qualquer outro lugar, visa a estimular o avanço na direção para a qual as pessoas e instituições citadas vêm caminhando, e não uma condenação ao bem que já realizam. Algo do tipo está bom, mas pode ser melhor. A prática ainda não alcançou a teoria. Nada de jogar a criança fora com a água do banho! Nem significa uma defesa da tese da direita em detrimento da esquerda. Apenas uma defesa da verdade, pura e simples, sobre este assunto.

Ora, se a democracia em que vivemos é falsa, o que temos então, como forma de governo? Por que também não deixarmos de lado a nossa própria hipocrisia de ficar blindando uma democracia que não existe e passamos a dar-lhe o nome que ela merece? Ditadura!

‘Lançado em 1954, na França, e publicado hoje em 23 idiomas e 34 países, Le Monde diplomatique tornou-se sinônimo de jornalismo crítico e sem concessões à superficialidade’ [ver aqui].

Este conceito, bem como o de ‘um novo olhar sobre o Brasil’ do veículo francês, longe de ser uma realidade, ainda é um sonho apenas. É meia boca. Ou meio olho. Meia Veja.

Peças para a engrenagem

Em 2004, participei do seminário ‘Os Sentidos da Democracia e da Participação‘, promovido pelo Instituto Polis e Fundação Ford, onde eles resistiram a toda e qualquer iniciativa de se atingir o objetivo proposto de se fazer uma análise crítica da democracia brasileira. ‘Democracia’ brasileira, para mim.

Como a premissa de todos ali era de que há uma democracia de fato no Brasil, apesar das inúmeras deficiências constatadas, minhas iniciativas de provar o contrário foram por água abaixo, o que registrei aqui.

A edição do Diplô de fevereiro de 2008 caiu-me em mãos durante o Enecom 2008 – Encontro Nacional dos Estudantes de Comunicação – que durou uma semana e terminou ontem (26/07/2008), em Niterói-RJ, contando com 800 inscritos. Utilizei-a durante minha fala sobre a Matrix em que vivemos hipnotizados, da qual fazem parte o Estado brasileiro e o império mundial, as universidades estatais ou privadas, a mídia etc., constituindo-se no verdadeiro e mais eficaz crime organizado a dominar sobre nós, ao contrário da propaganda mentirosa de que o Brasil seja um país de todos.

O objetivo desta sofisticada modalidade de crime altamente organizado é produzir lucro para a elite econômica que domina o país e o planeta, transformando leitores, eleitores, telespectadores, contribuintes, estudantes, operários e profissionais liberais de nível universitário, como jornalistas, por exemplo, em meras peças para a engrenagem do sistema de produção capitalista, impedindo-os de desfrutar sua plena humanidade, como pensar além destes limites.

‘Democracia popular’ e ‘burguesa’

Procurei ir ao último limite da ênfase verbal, ajudado pelo microfone e sistema de som ali instalado, visando maximizar a memorização de minha tese para aqueles jovens, com os quais convivi por uma semana e que talvez jamais veja em minha vida: ‘Não há democracia alguma neste país!!!’

Para demonstrar a contradição existente, apontei para Silvio Caccia Bava, que também participou do já citado seminário ‘Sentidos da Democracia e da Participação’, diretor do Diplô e coordenador-executivo geral do Pólis, em matéria de capa daquela edição. Infelizmente, não a encontrei disponível na edição publicada na rede [ver aqui].

Bava continua defendendo sua tese de que uma democracia pode ser mutilada em todos os aspectos que a determinam, mas, mesmo assim, permaneceria sendo uma democracia. ‘Democratizar a democracia’, afirma ele.

Temos aqui uma contradição lógica de máxima grandeza: Fazer com que ‘A’ seja igual a ‘A’. Bem que poderia ser: democratizar a ‘democracia’ brasileira… Mas não é! Ou seja, para ele uma democracia pode não ser uma democracia.

Eu entendo que ele quer dizer que ‘a democracia existente hoje apenas para uma minoria deve ser estendida a toda população’. Mas, se democracia é o governo do povo, ela somente existiria se já fosse assim! Para toda a população. Termos como ‘democracia popular’ e ‘democracia burguesa’ são uma afronta a qualquer um que tenha superado a fase emocional, sentimental e passional do ser humano e assimilado um pouco do que entendemos por razão, lógica e coerência.

Plutocracia ou corporocracia

Lamentavelmente, nossos melhores quadros não têm capacidade, coragem, consciência ou sei lá o que para utilizar termos que realmente definam o que se tem em foco, como ditadura do poder econômico, plutocracia, cleptocracia e/ou corporocracia. Por que será?

Mais à frente, Bava defende, repercutindo professores da Unicamp que exigiam a ‘defesa da democracia’, como se ela fosse um fato existente e incontestável, apesar de constatarem que os corruptos dominam o Estado brasileiro, o que caracteriza uma cleptocracia (governo dos ladrões), de cujo termo eles fogem como o diabo da cruz.

Continua ainda: ‘O documento declarava que o tipo de democracia em que vivemos tem sido útil para preservar o modelo neoliberal, mas não para atender aos interesses da maioria da população brasileira.’

Como o modelo neoliberal atende a uma minoria da população brasileira, este ‘tipo de democracia’ é, na realidade, a ditadura de uma minoria rica, uma ditadura do poder econômico, mais exatamente, uma plutocracia (governo dos ricos) e/ou uma corporocracia (governo das corporações).

Representantes dos ricos

Os fatos isolados veiculados pela mídia escandalizam eventualmente as sensibilidades acadêmicas, semi e analfabetas de nosso povo. Mas ocorrem com uma freqüência tal que explicitam a existência de um processo contínuo, organizado e premeditado de desrespeito a tudo que uma democracia pode significar. Paradoxalmente, o Estado, governos, escolas e mídia insistem que houve uma redemocratização e que as instituições democráticas funcionam plenamente. É a Sociedade do Espetáculo! [ver aqui].

O que temos, então, é uma ditadura do poder econômico sobre o poder político, de tal forma a assegurar a satisfação de sua voracidade pelo lucro a qualquer custo, financiando campanhas políticas, para que seus legítimos representantes possam fazer uma propaganda suficiente a ponto de enganar a maioria dos eleitores, fazendo-se passar por legítimos representantes do povo.

Após eleitos, irão governar para quem? Para quem lhes deu apenas o voto, enganado pela propaganda mentirosa, ou para quem financiou sua campanha? É leilão ou eleição? Por que os ricos podem colocar fortunas no caixa 1 e 2 de seus paus-mandados e os pobres não têm este mesmo direito? São todos iguais perante a lei eleitoral, como deveria ser numa democracia de verdade? Numa democracia, de verdade, a população condenaria tão intensamente os políticos que ela mesma elegeu? Os legítimos representantes do povo seriam os legítimos representantes dos ricos? [ver aqui]

Ataque à organização sindical

Por que os iluminados intelectuais não dizem a verdade? Que estamos numa ditadura do poder econômico, plutocracia, cleptocracia e/ou corporocracia?

Certa vez, perguntei isto ao Stédile (Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, uns anos atrás) e ele disse tudo, inclusive que o presidente da República é o motorista da elite brasileira, mas não assumiu que se trata de uma ditadura. Na realidade, digo eu, o presidente é, então, presidente de uma Reparticular, já que é uma elite quem manda… César Queiroz Benjamim, da Consulta Popular, agiu de forma análoga, diante desta questão. Como tantos outros de menor brilho.

De sua cátedra na USP, e como fundadora do PT, Marilena Chauí avança, mas também não chega lá: ousa até dizer que ‘o Estado brasileiro é autoritário e oligárquico’, mas não passa disto.

Durante o Enecom 2008, o representante da Andes – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) cujo nome não anotei (Ives, Evson…) e que palestrou sobre ‘Conjuntura dos movimentos de educação hoje no país, propostas do governo, ataques à educação pública’, amplificou meu discurso, alegando que o fato do governo não autorizar o funcionamento deste sindicato demonstrava a ditadura que eu defendia, já que era um direito de associação previsto na Constituição que estava sendo desrespeitado.

Não obstante ter sido ratificado pelo STF, depois de longa disputa jurídica, seu registro sindical se acha hoje suspenso, em mais um claro ataque do Estado e do governo Lula à liberdade e autonomia de organização sindical dos trabalhadores’ [ver aqui

].

Pode ser qualquer coisa

Por outro lado, o expositor do tema ‘Educação popular, acessibilidade e políticas afirmativas’, professor Paulo Carrano (do Observatório Jovem, Projeto da Faculdade de Educação da UFF), preferiu discordar de minha posição, alegando que durante a ditadura militar (para mim, ditadura pseudo-militar) a coisa era muito pior e, agora, temos o direito de debater qualquer tema livremente, como fazíamos naquele momento. Para ele, pouco importa se o povo governa ou não governa o país.

Esta é a esquerda de que a direita gosta! Uma esquerda permitida, que jamais coloca o dedo na ferida da ditadura civil brasileira. Nada contra o atual motorista da elite nacional… Ele é apenas mais um na fila.

Sinceramente, não tenho uma resposta para tamanha contradição entre o discurso de nossos melhores quadros e a realidade. Pode ser que não seja estratégico, no momento, dizer a verdade completa… Afinal, ainda dá para negociar umas migalhas com as grandes empresas e seus tentáculos, como Fundação Ford, com o governo e em sua área da influência etc.

Pode ser que eles acreditem mesmo no que dizem… Pode ser que eu seja apenas um maníaco psico-depressivo, louco ou coisa pior… Pode ser qualquer outra coisa… Mas de uma coisa estou certo: em termos lógicos, racionais e científicos, é uma estupidez conceitual astronômica qualquer afirmação de que há uma democracia de verdade, por pior que seja e por mais adjetivada negativamente, tanto aqui, quanto nos EUA! [ver aqui]

Um outro ser humano é possível

Mas se fosse apenas eu a perceber isto, tudo bem! Deixo aqui o ponto de vista de alguém mais bem conceituado que este reles micróbio bacteriano que vos escreve:

‘A esquerda atual ‘deixou de ser esquerda’ e tornou-se estúpida’, afirmou ontem o escritor José Saramago, que acusou também os governos de estarem se tornando ‘comissários do poder econômico’. ‘Antes, gostávamos de dizer que a direita era estúpida, mas hoje em dia não conheço nada mais estúpido que a esquerda’, afirmou o octogenário escritor, militante histórico do Partido Comunista português. Fugindo do tema literário, Saramago acabou por dedicar grande parte da sua intervenção aos problemas das democracias (itálico meu) contemporâneas, que na sua opinião não passam de ‘plutocracias’, e apelou à insubmissão da população. ‘O mundo é dirigido por organismos que não são democráticos, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio’, disse o escritor. Para Saramago, ‘é hora de protestar porque se nos deixamos levar pelos poderes que nos governam e não fazemos nada para contestá-los, pode se dizer que merecemos o que temos’. [ver aqui]

Torçamos para que o FSM 2009, a ser realizado no estado do Pará, tenha a ousadia de encarar esta inexorável necessidade de renovação conceitual, como também defende Ivana Bentes, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ. Sem aperfeiçoarmos nossos conceitos, nada muda. Nossa insubmissão e qualquer mudança será estéril. Precisamos de novos paradigmas. Torçamos para que no FSM amplifiquemos a tese de que temos de fazer algo a mais para merecermos um mundo melhor. Sermos melhores do que temos sido até aqui.

Um outro ser humano é possível! Ano que vem, a gente se encontra em Belém!

******

Engenheiro civil, militante do movimento pela democratização da comunicação e membro do Conselho Consultor da Câmara Multidisciplinar de Qualidade de Vida (CMQV)