Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Do ótimo ao péssimo", extraído de A imprensa e o dever da verdade

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ESPECIAL 3+5

OBSERVADORES DE CARTEIRINHA
Rui Barbosa

"Do ótimo ao péssimo", extraído de A imprensa e o dever da verdade, Edusp, 1990

O ótimo facilmente desanda, aqui, no péssimo. Quanto maior o bem, maior o mal, que da sua inversão procede. Nada mais útil às nações do que a imprensa na lisura da sua missão. Nada mais nefasto do que ela mesma na transposição do seu papel. Se o fiel der em ladrão, não haverá, neste mundo, ladrão tão perigoso. Porque bem poucos são os que dos seus guardas se guardam. Quis custodiet custodes? Sendo eles os a quem se confia a chave ou vigilância da caixa, em se lhes inclinando o ânimo à prevaricação, o remédio já chegará tarde, quando a malversação já houver levado os malversadores ao senhorio, e reduzido a sujeição os enganados.

Todo o bem que se haja dito, e se disser da imprensa, ainda será pouco, se a considerarmos livre, isenta e moralizada. Moralizada, não transige com os abusos. Isenta, não cede às seduções. Livre, não teme os potentados.

Na sua liberdade, já em 1688, via o Parlamento de Inglaterra "o único recurso pronto e certo contra os maus". E não exagerava. Como não exagerou Sieyès, dizendo que "não há liberdade sem a imprensa". Como não exagerou Royer-Collard em dizer que "a imprensa, ainda, mais que necessidade política, é uma necessidade social". Como não exagerou quem disse que a imprensa é a garantia de todas as garantias. Como não me parece Ter exagerado quem escreveu que a civilização, extinto o jornalismo, nos daria a impressão de um como fim do mundo.

Mas, se não há demasia em tantas e tais homenagens (nem lhas terá ninguém rendido mais do que eu) e se os direitos dessa instituição providencial vão ao ponto de entenderem, num país de bom senso como a Grã-Bretanha, estadistas do gênio de Pitt que "a imprensa deve tocar o encargo de se corrigir a si própria", – por isso mesmo não há, para qualquer sociedade, maior desgraça que a de uma imprensa deteriorada, servilizada, ou mercantilizada.

Tampouco haverá bem mais arriscado a depravar-se em mal do que esse bem dos bens, numa nação como a nossa, cujo governo, de relações ordinariamente extintas com os seus deveres, busca apagar as luzes e correr os reposteiros sobre as cenas da sua habitual imoralidade.

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"Mau governo, má imprensa", "A imprensa", extraído de A imprensa e o dever da verdade,

Todos os regimes que descaem para o absolutismo vão entrando logo a contrair amizades suspeitas entre os jornais. Bem se sabe, por exemplo, o que, a tal respeito, foi o império de Napoleão III Mas na Alemanha, debaixo da influência bismarckiana, é que se requintou, em proporções desmedidas e com inconcebível generalidade, essa anexação da publicidade ao governo.

Vai por cerca de cinquenta anos que um historiador prussiano, dos mais notáveis de sua terra, o professor Wuttke, lente na Universidade de Leipzig, escrevia o seu célebre livro sobre a verba dos reptis (Reptilienfoind), livro clássico no assunto.

Por ele se veio a saber que, com o nome de Repartição da imprensa, Bismarck estabelecera, às margens do Spree, a mais vasta fábrica de opinião pública até então conhecida, e lhe derramara as filiais pelo mundo inteiro.

É um depoimento estupendo acerca desse terrível mecanismo, graças ao qual, há mais de meio século, j&aacuteaacute; o gabinete de Berlim se considerava "senhor de toda a imprensa". Foi por esse meio que se aparelhou a vitória alemã contra a Áustria, em 1866, se vingou o triunfo alemão contra a França, em 1871, e estava organizada para 1914 a inundação do mundo pela Alemanha.

Por meio desses recursos diabólicos é que, desde a falsificação da ordem do dia de Benedeck, no primeiro desses assaltos, e a do telegrama de Sem no segundo, até as monstruosas fábulas que caracterizam o terceiro, se maleou, nas forjas da mentira, para a execução das vontades da casta militar, essa nacionalidade enganada e alucinada, que desperta agora aturdida entre as decepções da mais inesperada realidade.

A surpresa desse acordar entre ruínas tais, desse cair de tão virtiginosa altura em tão incomensurável abismo, lampeja com uma claridade sinistra sobre o regímen, que ora se vai introduzindo no Brasil, de apagamento da Consciência das nações pela imersão habitual do seu espírito e costumes na cultura da mentira.

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