MÍDIA & BELEZA
Por que queremos ser belas
Lara Deppe (*)
A recente badalação em torno da representante do Brasil no próximo concurso de Miss Universo levantou assombro, alívio e, com certeza, muita discussão. Assombro porque a Miss Brasil 2001 passou por nada mais nada menos do que 19 incisões cirúrgicas para consertar a estranha generosidade da Mãe-Natureza. Alívio pela situação funcionar como um atestado, no qual está escrito: "Meninas, agora vocês estão liberadas para ser tão bonitas quanto desejam!" E muita discussão entre aqueles que acham que a gaúcha Juliana Borges é a encarnação de toda a superficialidade do universo, aqueles que consideram importante a busca sem limites pelo corpo perfeito e alguns outros que tentam pesquisar e apontar os motivos para que se chegasse a tal situação.
Pois tais juízos de valor remetem a idéias sobre a mulher e a beleza de tempos imemoriais e cuja mudança começou a se insinuar a partir do movimento feminista das décadas de 60 e 70. Pelo menos, é isto que sugeriu a recente pesquisa sobre a revista Nova realizada pela autora deste artigo como parte do programa de pós-graduação do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tomando a revista como material de análise antropológica (a ciência que investiga as manifestações culturais em uma dada sociedade), a autora percebeu um caminho que pode ajudar a compreender, entre outros, o crescimento vertiginoso da indústria de cosméticos nos últimos trinta anos, a multiplicação de revistas especializadas sobre o tema beleza, a melhoria e o aumento da demanda no ramo da cirurgia plástica. Tudo isto está sob os auspícios de uma idéia central: a legitimação, socialmente construída, das preocupações com o corpo e a beleza, sobretudo a feminina. Em outras palavras, a gradual mudança na concepção de que cuidar da aparência é futilidade.
Mas o que se quer dizer com o termo legitimação? Que em um determinado momento uma outra visão sobre as preocupações com a aparência ganhou o carimbo da verdade, da validade. Esta visão, que respondia a mudanças engendradas na sociedade, que respondia a novos valores, novas reivindicações, acabou abrindo espaço para que as mulheres pensassem na possibilidade de conquistar a beleza desejada. Contudo, este "novo" discurso ganhou estatuto de problema relevante na vida das mulheres por intermédio de opiniões e pesquisas de médicos e cientistas que, nas páginas da revista, mostravam a importância dos cuidados com a beleza física para a sua saúde mental. Na década de 70, cuidar da aparência passou a ser cientificamente justificado, migrando do terreno da vaidade para o da necessidade física e mental. Bem diferente do que antes se pensava.
Se passearmos um pouco pela história do Brasil, veremos que vários trabalhos publicados sobre e no início do século apontam para a condenação do embelezamento feminino. Não que não existissem padrões de beleza (eles estão presente em todas as sociedades e em todas as épocas), nem que não existissem cuidados cotidianos com o corpo, só que eles eram restritos, limitados. Pois, naquela época, a beleza era considerada um "dom", algo da ordem do divino, espelho da pureza, da moral inabalável. O corpo feminino não deveria ser objeto de intervenções, e os "remédios", ou os produtos de beleza, eram permitidos apenas para tirar imperfeições, dentro dos tênues limites da não-vulgaridade. A arte da dissimulação, ou da maquiagem, ou de fingir-se bela, era específica de mulheres mundanas, sendo moralmente julgada. No Brasil do início do século, a beleza feminina era um atributo dado pela natureza, e não conquistado.
A beleza pós-movimento feminista
E eis que no pós-guerra as mulheres começam a sair em busca de trabalho, a reivindicar mais espaço. Surge o movimento feminista das décadas de 60 e 70, inserido em um contexto mais amplo de liberação. Pois, antes condenadas ao espaço privado, dedicadas ao lar, ao marido e aos filhos, neste momento as mulheres começam a advogar o direito de cada uma à vivência da própria sexualidade e do próprio corpo. Foi neste contexto de reformulação de valores que a editora Abril resolveu lançar, em outubro de 1973, em terras tupiniquins, a revista americana Cosmopolitan. Sob a alcunha de Nova, a motivação era atingir este novo público feminino que começava a se delinear.
Mas a revista Nova traduziu a proposta feminista de conquista do próprio corpo por conquista da própria beleza. E esta tradução foi feita por intermédio de psicólogos que praticamente resumiram os defeitos da aparência à infantilidade, a problemas emocionais e à incapacidade de se desligar de uma situação de conformidade, de dependência. Segundo os artigos publicados, tais defeitos eram sintomas de insatisfação consigo, sintomas de apego a um posicionamento feminino tradicional. Aceitar o desafio de mudá-lo significava aceitar o desafio de se tornar uma mulher segundo os novos valores acima esboçados, ao mesmo tempo em que dava subsídios emocionais para ajudar a mulher a enfrentar o mundo masculino. Em outras palavras, a revista Nova interpretou uma prática normalmente atribuída ao universo de preocupações femininas, o embelezamento (mesmo que com ressalvas), como uma questão imprescindível para a adesão a um novo projeto de vida. E esta narrativa foi construída graças à psicologia, a qual, ao atestar a aparência como um problema que dizia respeito à saúde mental, acabou legitimando as intervenções no corpo.
Mas faz-se necessária uma ressalva. Porque não se deve entender o discurso da revista Nova como uma mera construção cheia de segundas intenções. Na verdade, a questão da consciência dos mais variados discursos sociais é bastante complexa para a antropologia e não cabe neste artigo. O importante é perceber que as matérias da revista são uma das vozes passíveis de serem estudadas. Obviamente, existem discursos dissonantes, como é o caso da condenação à exacerbação das preocupações com a aparência, sob o argumento de que as mulheres não se libertam da condição de meros objetos sexuais a que foram historicamente reduzidas. Múltiplas vozes, a riqueza de uma análise no campo das humanidades é justamente pensá-las como elementos constitutivos de um processo que, ora o alimentam, ora não. No caso deste jogo complexo, do qual emergiu a idéia a cada dia mais aceita da "conquista da própria beleza", não se pode negar também os papéis da industrialização, do incentivo ao consumo, dos avanços científicos e tecnológicos, dentre outros. Atualmente, assistimos ao caso da Miss Brasil 2001, cujas cirurgias somam R$ 15 mil.
Toda uma indústria de consumo gira em torno da possibilidade de se adquirir o corpo dos sonhos. Mas ela não seria possível se pelo menos um dos seus entraves históricos não fosse eliminado: a validade das preocupações com a beleza, ou a eliminação do estigma que a rondava. Muito se discutiu a respeito da representante brasileira dever ser natural ou cheia de intervenções cirúrgicas. Estas discussões não fazem senão reproduzir idéias sobre a beleza que levam para além do início do século, mas que continuam vivas, e em permanente mudança, nas nossas cabeças.
(*) Antropóloga, e-mail <laradeppe@bol.com.br>
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