Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

"SOS Brasil", copyright Folha de S. Paulo, 13/05/01


ASPAS

VERDADES NO ESCURO ? I

"Neste ano, mas ainda quando a imprensa quase não falava em racionamento de energia, viajei de avião ao lado do empresário Antônio Ermírio de Moraes e considerei-o levemente desequilibrado.

Desde São Paulo até Salvador, onde estrearia sua peça ?SOS Brasil? -precisamente, da sala de embarque no aeroporto até o hotel-, foram quase cinco horas de uma conversa repetitiva e, na minha visão de ignorante assumido em questões energéticas, desinteressante.

?Vai ser um caos. Estou avisando há muito tempo o presidente e seus ministros, ninguém parece consciente do perigo?, reclamava. Em meio a termos técnicos e críticas à legislação e ao modelo de privatização, fazia e refazia contas, lamentava que medidas ?óbvias? fossem postergadas e apostava que o racionamento fosse inevitável. Vislumbrava a população revoltada, aumento da inflação, fábricas ameaçadas de paralisação, crescimento do desemprego -e um presidente a tal ponto abatido que a sucessão ao Palácio do Planalto tenderia a favorecer a oposição.

Como costumo olhar com desconfiança visões catastróficas sobre o Brasil -em especial quando partem de empresários- , acomodei-me na minha ignorância energética e não escrevi uma única linha sobre o assunto. Minha proficiência no tema limita-se ao ato de acionar o interruptor para acender ou apagar a luz.

Raras vezes se produziu uma crise tão elucidativa sobre os efeitos do casamento de desinformação com incompetência pública. É daqueles casos que merecem ser estudados em sala de aula, exemplar que é do modo como o cidadão pode ser vítima de problemas previsíveis.

Apenas na semana passada altos escalões oficiais e a imprensa expuseram, de fato, como o racionamento vai alterar o cotidiano dos brasileiros.

Em clima de desespero, especulava-se sobre o impacto nas salas de cirurgia de hospitais sem geradores. A Fundação Getúlio Vargas estimou a perda de 800 mil empregos.

Teme-se que os semáforos não funcionem; se o trânsito de São Paulo já está como está, imagine como ficaria com a sinalização interrompida. Com sistemas de alarme desativados, teme-se também a eclosão da criminalidade nas regiões afetadas pela falta de energia elétrica.

Os shoppings fechariam aos domingos, o que, para o paulistano de classe média, significaria a redu&ccediccedil;ão de 50% dos espaços de lazer. Até mesmo os jogos de futebol noturnos estariam ameaçados.

Tantas notícias fizeram com que a população voltasse a prestar atenção às lições elementares sobre a importância da energia. Enquanto girava em torno dos impactos da balança comercial, o debate era difícil de entender, mas fica muito fácil quando se imagina um shopping fechado no domingo ou um jogo de futebol suspenso.

A grande lição, no entanto, é que a falta de percepção de um problema tão grave pode levar a consequências catastróficas; poucos têm o direito de atirar a primeira pedra.

Vários artigos de especialistas alertavam, há anos, sobre os riscos de racionamento, mas o tema não subiu ao topo da agenda da imprensa.

Sejamos honestos: se os governantes foram incompetentes (e foram), a imprensa estava refém da desinformação, não investigou como deveria e não fez o barulho que poderia.

Agora, quando os especialistas ganham mais espaço, vemos como a crise estava anunciada, resultado de tantos erros e de tantas omissões de diferentes governos nas mais variadas dimensões.

O efeito do apagão é tão forte e vai absorver tanta atenção da opinião pública que tende a proteger, colocando no escuro os escândalos do presidente do Senado, Jader Barbalho, os empréstimos do ex-ministro Fernando Bezerra e as tramóias criminosas dos senadores Antonio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda durante a votação que cassou Luiz Estevão.

Há uma boa e uma má notícia para o presidente Fernando Hen- rique Cardoso. A boa: com os transtornos provocados pela escassez de energia, pouca gente vai se importar com o bombardeio em torno da CPI da corrupção.

A má: não adianta ele culpar Collor ou Itamar Franco, usando até argumentos técnicos. Diante da maioria dos brasileiros, o presidente é o responsável; no mínimo, porque ele e os ministros não fizeram o barulho que poderiam fazer, advertindo o país dos riscos de racionamento. Vai apanhar mais, bem mais, do que apanharia da CPI da corrupção, cuja credibilidade estava afetada por ser uma evidente manobra eleitoral.

Se achávamos que a corrupção sai caro – e sai- ao país, é pouco diante do custo econômico e social da redução do crescimento causada pela escassez energética.

Nada custa mais que a incompetência e a desinformação, os maiores desperdícios nacionais.

PS – A propósito, a peça ?SOS Brasil?, de Antônio Ermírio, trata justamente dos perigos da desinformação e da incompetência pública na vida dos cidadãos."

"A imprensa, a exemplo do governo, demorou a ligar a tomada da crise de energia. Mas também quando descobriu o assunto pegou pesado. As revistas Veja, IstoÉ e Época traçaram um cenário apocalíptico. Nos jornais, o clima de baixo astral lembrava a perda da Copa de 50. Até o equilibrado Valor falou do aumento de vendas no Dia das Mães, mas alertou que as perspectivas daqui para frente ?são sombrias? devido ao racionamento. O tom parece exagerado. Mas a situação é grave."

"A julgar pelo que disse na quinta-feira o novo ministro do apagão, Pedro Parente, até então chefe do Gabinete Civil, é zero o grau de informação do governo a respeito de problemas brasileiros, como a crise no setor energético.

Disse Parente: ?Nunca se soube que o problema era desse tamanho. O quadro era pior do que nos tinha sido informado?.

Se é assim que o país é governado, seria melhor privatizar o Palácio do Planalto. Pena que nem essa solução resolva, como o demonstra, de resto, a própria crise de energia. Todas as fichas foram apostadas na capacidade mágica da privatização para atrair investimentos e, por extensão, resolver problemas, mas nem por isso o problema desapareceu.

O diabo é que quase todo o país estava distraído. Fica até a impressão de que, da noite para o dia, secaram os rios e o racionamento tornou-se obrigatório. Mais ou menos como aconteceu, anos atrás, com o Banespa: de repente, descobrimos que o banco quebrara, como se alguém, na calada da noite anterior, houvesse invadido e raspado seus cofres.

No caso do Banespa, o Sindicato dos Bancários até que vinha denunciando a tempestade que se armava. No caso da energia, um ou outro profeta (Luiz Pinguelli Rosa, Antônio Ermírio de Moraes) também. Mas ninguém deu muita bola.

Culpa, em parte, da mídia. Os jornalistas somos imbatíveis na hora de informar coisas como ?os apagões começaram ontem?. Mas perdemos o hábito de lidar com tendências, de olhar consumo, demanda e investimento e dizer: olha, se tudo ficar assim, os apagões serão inevitáveis.

Mas a outra parte da culpa é dos governos e dos especialistas, que teimam em tratar o público como criança, incapaz de entender que bebês não são trazidos pelas cegonhas ou que o racionamento não é culpa exclusiva de são Pedro."

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