O projeto de Lei Complementar 36, de 2006, proposto pelo deputado peemedebista Michel Temer, está no gabinete do presidente da República para ser sancionado ou vetado. Em torno dele se desenha um capítulo importante da história iniciada em 1988, com a promulgação da Constituição que colocou um ponto final nas duas décadas de regime de exceção. O projeto estabelece uma blindagem legal em torno de todos os advogados do Brasil, proibindo que a Justiça autorize a escuta, gravação ou violação de suas comunicações, sua correspondência e seus registros.
O projeto foi aprovado rápida e sutilmente no Senado, de madrugada, na véspera do recesso parlamentar. E a imprensa só veio a noticiar o fato três dias depois. Não deve ser mera coincidência que o texto tenha entrado em pauta no meio de uma das mais graves crises institucionais envolvendo a Polícia Federal, o Ministério Público, a base do Judiciário e o Supremo Tribunal Federal. A intenção do autor foi preservar advogados de abusos da polícia, mas, como tudo que pode causar controvérsias, as razões remetem a direitos sagrados e à própria defesa do Estado de Direito. As justificativas apresentadas pelo autor do projeto, entretanto, precisam de uma análise mais acurada da imprensa. Pelo menos, a imprensa deveria estar agora provocando um debate em torno do assunto.
Expressões do desequilíbrio
Como afirmou na semana passada o ministro da Justiça Tarso Genro, a quem cabe orientar a decisão presidencial, trata-se de convencionar se os escritórios de advogados podem receber um grau de inviolabilidade privilegiado em relação aos domicílios dos cidadãos comuns. Poderiam ser incluídos na comparação os escritórios de economistas, laboratórios de pesquisas de governos ou de universidades, centros de desenvolvimento de grandes empresas entre outras instalações às quais ninguém imaginou oferecer tal blindagem.
O projeto determina que os escritórios de advogados só podem ter sua inviolabilidade quebrada quando o próprio titular ou algum de seus associados estiver sendo investigado. Se a lei estivesse em vigor, o advogado petista Luiz Eduardo Greenhalgh não teria sido flagrado atuando como lobista em favor do banqueiro Daniel Dantas.
O caso é complexo e por essa razão não pode simplesmente ser noticiado. Entidades representativas dos magistrados e do Ministério Público já encaminharam ao Executivo uma nota técnica considerando inconstitucional o projeto. Entre seus argumentos está a possibilidade de que a inviolabilidade transforme escritórios de advocacia em sucursais do crime organizado. Por mais temerária que seja a afirmação, o fato de muitos advogados terem sido apanhados em flagrante delito participando da organização de atividades criminosas nos últimos tempos pode justificar o temor dos oponentes.
Certamente, a matéria exige a aplicação de conhecimento jurídico, e especialmente a participação de constitucionalistas. Mas a controvérsia também envolve elementos de outra natureza, como o tipo de sociedade que queremos ter. Muitos especialistas entendem que a Constituição de 1988 – e remendada seguidamente desde então – virou uma colcha de retalhos que representa os interesses de quem pode mais. E a ampla coleção de prerrogativas de advogados é uma das mais evidentes expressões desse desequilíbrio.
Caráter da exemplaridade
A questão também remete ao caso específico da Operação Satiagraha, que provocou protestos de juristas e advogados sobre o estilo da Polícia Federal, considerado por parte de alguns deles como prejudicada por abusos nas ações que resultaram na prisão de Daniel Dantas, do especulador Naji Nahas e do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, entre outros acusados.
É bastante razoável supor que, diante da longa sucessão de casos de corrupção revelados nos vinte anos de vigência da Constituição – com uma longa tradição de impunidade – toda uma geração de juízes, promotores e delegados de polícia esteja contaminada por certo voluntarismo pouco recomendável. Para estes, é essencial a preservação de todos os recursos disponíveis para a identificação dos delinqüentes, sejam eles quem forem. Por esse lado, é de se perguntar se não seria exatamente o caso de considerarmos que a lei também deve ter como princípio civilizatório o caráter da exemplaridade, razão pela qual se justificariam as exposições de banqueiros, políticos, milionários e executivos em situação execrável.
Prazo para lançar mais luzes
Também é razoável o argumento daqueles que defendem maior controle nas ações policiais, pelo risco de se quebrarem alguns princípios essenciais do processo civilizatório que fundamenta a Constituição. Entre estes se destaca o pressuposto de inocência até prova em contrário. Por mais que a realidade mostre que a lei não funciona de maneira igual para todos, a preservação do princípio interessa a todos.
O que destoa do debate é a facilidade com que a imprensa tem aceitado fazer parte do jogo que se articula quando informações colhidas por meio de instrumentos excepcionais, como a quebra do sigilo das comunicações pessoais, são usadas para romper a barreira que certos privilégios levantam contra a prestação da Justiça. Uma coisa é a informação ser colhida através de gravações autorizadas por um magistrado e mantida no corpo de um relatório policial; outra coisa é sua exibição pelos jornais, em contexto inapropriado e sem o contraditório do acusado.
O tema, como se vê, é bastante complexo e não ajuda nada o fato de o projeto ter sido aprovado praticamente escondido da sociedade, quase clandestinamente. Mas até 12 de agosto, data-limite para a decisão presidencial, a imprensa tem tempo bastante para lançar mais luzes sobre a questão.
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Jornalista