Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A premência de reforma

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REPENSAR O JORNALISMO

Muniz Sodré (*)

De tudo que venho lendo nos jornais sobre a crise no Senado, apenas um artigo (Janio de Freitas, Folha de S.Paulo, 29/4/01) coloca em questão o papel da imprensa no desenrolar dos acontecimentos. Da falta de decoro ou das inversões morais no Congresso, o público já está farto de saber. Corre-se até mesmo o risco de ver esfumar-se o sentido ético-político das denúncias por sua excessiva repetição. Como se sabe, além de uma certa medida, a repetição extermina o sentido das coisas e passa a produzir apenas efeitos de êxtase.

E qual é mesmo o sentido em pauta? O canibalismo das nossas elites políticas. Alguém já caracterizou o modelo de governo atual como um "presidencialismo canibal", porque devora as funções do Legislativo por meio das Medidas Provisórias.

Mas não se trata apenas de um Executivo autotélico e auto-referente, executando as leis que ele mesmo fabrica. As elites nacionais, políticas e tecnocráticas, perderam de vez o pejo frente à dignidade dos mandatos e do cuidado com o dinheiro público, deixando à mostra as raízes do cartorialismo patrimonialista que aqui atua desde as capitanias hereditárias. Como diz uma velha e popular canção portuguesa de crítica à voracidade dos clérigos: "Eles comem tudo/ Eles comem tudo/ Eles comem tudo/ E não deixam nada".

"Ágil e tecnológico"

Claro que a reforma do Estado ? sua visceral refundação ? poderia ser o ponto de partida para a tentativa de restabelecimento do sentido político (delegação da soberania popular, representatividade) do atual Estado de direito. Nesse movimento, seria imperioso cortar na carne do Executivo, Legislativo e Judiciário, em busca de outro público "estado de saúde" (em alemão, a palavra Verfassung diz tanto estado de saúde como Constituição), a partir do qual se pudesse garantir a efetiva independência dos poderes. O Executivo atual, o estranho governo do professor Cardoso, está tão fora da Lei quanto o Legislativo anda fora da lei e da ética.

Até aqui, nada que não se tenha falado ? e muito. A reiteração fez-se necessária para abordar o tópico levantado por Janio de Freitas sobre a perda progressiva, na mídia, do significado da violação do sistema eleitoral do Senado em função do inchamento sensacionalista de questiúnculas ligadas ao senador Antonio Carlos Magalhães, o que acabaria levando à deformação de fatos. Ressentimentos pessoais, desejo exacerbado de mostrar uma independência que antes não aparecia, interesses superiores ? tudo isto faz parte de um jornalismo que, não raro, evoca o mesmo satirizado por Lima Barreto (em Recordações do Escrivão Isaías Caminha) no início do século: primitivismo dos debates em meio à sofisticação das técnicas de produção do jornal.

A sofisticação, hoje cada vez maior e visível, chegou ao plano da inteligência artificial (computadores, internet, multimídia), mas parece em descenso no tocante à inteligência emocional e criativa da produção jornalística. Em certas escolas, alguns vetustos jornalistas feitos professores saltitam alegremente das técnicas do velho "lead" para as dos novos equipamentos, sem se perguntarem sobre o sentido do jornalismo hoje. Nas redações, o jornalismo "ágil e tecnológico", de matriz norte-americana como sempre, limita-se a reiterar a hegemonia da simplificação.

Impasses e descaminhos

A questão é que a imprensa escrita sempre esteve no centro do processo representativo típico das democracias ocidentais, embora variando o seu modo de inserção, segundo as particularidades das diversas sociedades. Numa perspectiva diacrônica, pode-se formular para ela modelos diversos de comunicação, correspondentes a diferentes etapas históricas nas sociedades liberais-democráticas.

O belga Bernard Miège, por exemplo, distingue quatro modelos: (1) imprensa de opinião ? caracterizada pela produção artesanal, tiragens reduzidas, estilo polêmico e manifestação de idéias; foi o tipo de imprensa que introduziu no espaço público a razão argumentativa cara à burguesia ascendente; (2) imprensa comercial ? organizada em bases industriais/mercantis, com prioridade para a publicidade e a difusão informativa (notícia), politicamente ligada à democracia parlamentar; (3) mídia de massa ? produção dependente de investimentos publicitários e técnicas de marketing, predomínio das tecnologias audiovisuais e grande valorização do espetáculo; (4) comunicação generalizada ? a reboque do Estado, das grandes organizações comerciais e industriais, dos partidos políticos, a informação insinua-se nas clássicas estruturas socioculturais e permeia as relações intersubjetivas; trata-se aqui do que também se vem chamando de realidade virtual.

Na contemporaneidade, dá-se progressivamente primazia ao quarto modelo, mas sem recusar os anteriores. Podem todos coexistir sincronicamente, num mesmo espaço social, desde que se integrem num mesmo plano tecnológico e econômico. E aqui surge o grande problema: como reavivar a responsabilidade social do jornalismo da antiga tradição liberal-comercial-opinativa frente às injunções da comunicação generalizada, mais voltada para a "massagem" sensorial do que para a mensagem argumentativa? Mais ainda: como conseguir dissociar jornalismo responsável dos vícios empresariais e profissionais de prática do ressentimento e deformação de fatos?

A resposta tende a conduzir ao mesmo ponto que se tem levantado para os impasses e os descaminhos atuais do Estado liberal: a premência de reforma. Em outras palavras, parece impor-se como necessária, tanto como a reforma política, uma reforma da prática jornalística.

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