VIOLA??O NO SENADO
José Antonio Palhano
Mais densa, ampla e dramática é a cobertura da imprensa à crise do Senado, mais se desobriga de estabelecer vínculos e afinidades entre a mesma ? de caráter essencialmente agudo, sazonal ? e uma outra, cuja natureza estrutural a torna várias vezes mais grave e preocupante: a crise social. Nossa miséria, com efeito, possui traços e características que a tornam única no planeta. Não exatamente em razão da sua respeitável magnitude, mas sim por historicamente se revestir da condição de um processo, ativo e eficiente não só o bastante para fazê-la evoluir ao ritmo a ao compasso com que a própria nação se movimenta, mas também por capacitá-la a grudar como craca em nossa moral e em nossos costumes.
Observe-se que esta assimilação ativa da miséria não depende em absoluto de critérios e variáveis econômicos. Fosse assim, ela própria se reduziria a mera seqüela de períodos recessivos e estagnantes, passível de aferições estatísticas que deságuam nos chamados indicadores sociais. Bem mais que isto, a miséria nacional se faz na conta de autêntico, portentoso e irrefreável fenômeno antropológico e amoral. Tanto assim é que, na medida que explodem os escândalos oriundos da rapinagem pública, mais se cristaliza a percepção pela qual aqueles que os antecederam eram coisa de amadores.
Em outras palavras, não é possível registrar qualquer ganho moral e/ou institucional a partir da defenestração de Collor ou da cassação daqueles anões. Bem pelo contrário, quanto mais cresce a ordem de grandeza da roubalheira, mais esta assume uma identidade carreirista e vocacional, própria de indivíduos empreendedores, ousados e criativos. A essas alturas é dispensável mais um aceno à nossa proverbial hipocrisia para reconhecer com todas as letras que estes mesmos indivíduos (e suas respectivas corporações) despertam interesse e fascínio a ponto de a mídia, em geral, sucumbir a retratá-los e a seus feitos e realizações com indisfarçável morbidez.
Apartheid social
Não é por outro motivo que um bandido como Fernandinho Beira-Mar passa a merecer tratamento vip e superlativo, algo que o alça a instâncias que jamais fez por merecer em seu ofício. Precisamos urgentemente aposentar a tese segundo a qual traficantes exercem poder e influência apenas nos morros. Basta de clichês aborrecidos tipo "os traficantes ocupam os espaços abandonados por poder público e pelas instituições". O tráfico já está urbana e moralmente adaptado a extensões geográficas bem maiores e cosmopolitas. Tentar contê-lo nas favelas e junto "aos pobres" é de uma burrice e de uma alienação extremas.
Esta obsessão em cercar a miséria em espaços definidos ? que acaba por viabilizar na nossa mundialmente famosa discriminação ? é que nos induz a tratar a crise do Senado sob uma ótica exclusivamente curativa, tão inócua quanto inutilmente contaminada por pruridos moralizantes e purgativos. Bobagem esconder que emprestamos à cruzada pela cassação dos senadores uma expectativa a partir da qual doravante as coisas jamais serão como dantes. Isto de demonstrar diuturnamente espanto e horror frente ao que ACM foi ou é capaz de fazer aponta para a monumental incompetência exercida lá atrás (se o baiano é muito antigo, Jader Barbalho representa uma geração atualizada tão farta quanto virulenta). O papel fiscalizador, e portanto profilático, da imprensa ? e por extensão de toda a sociedade ? é esquecido em nome do formalismo (e da flacidez cívica) pelo qual basta "cobrir" Barbalho & Cia. Uma tortuosa e vergonhosa submissão ao poder bem ao gosto do nosso sempiterno paternalismo.
Nossa leitura das charges cujo elenco é composto por Barbalho, ACM e Beira-Mar é sintomaticamente zarolha. Imbuídos por um moralismo besta, tendemos a interpretá-las na conta de um "rebaixamento punitivo" daqueles à dimensão deste. A verdade, bem mais dura, está a sinalizar, isto sim, que já somos uma sociedade capaz de misturar senadores com traficantes com um realismo que, mais que fantástico, é cruel, cínico e deteriorante.
A conta da miséria secularmente consentida e assimilada chega mais rápido na modernidade. Barbalho é o fruto mais exuberante de árvores e lavouras que por tanto tempo andamos a cultivar. Se a péssima reputação é dele, a promiscuidade é toda nossa. Tanto estamos escravizados ao formalismo e ao ritualismo vigentes que caso um dos jornalões saísse com editorial de capa pregando explicitamente a derrubada do paraense o mundo desabaria na sua redação, a trovejar pressupostos éticos pelos quais "este não é o papel da imprensa". E que diabos é o papel do senador, ou da sua mulher espertinha, ou dos seus amigos e sócios bandidos?
Outro exemplo da nossa complacência com a sujeira: Newton Cardoso, que tão impunemente desvirginou as tradições políticas de Minas, é objeto da mais cara prioridade de Itamar Franco. Especialistas apontam que é justamente a probidade deste que o alça ao poleiro superior das pesquisas eleitorais, o que não o impede de se aliar não apenas a Newton Cardoso como também a Renan Calheiros. Ao se amolecar com tamanho desassombro, Itamar apenas ganha linhas e laudas que o reportam como sagaz profissional político em busca de espaços ? tudo perfeitamente moral.
Precisamos aprender que nosso apartheid social não produz apenas traficantes e crianças que se prostituem. Gera também gente mais escolada e preparada como Jader Barbalho e quejandos. Quem sabe assim aprendemos também que já é hora de parar de apenas "cobri-los".
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