VIOLA??O NO SENADO
Cláudia Rodrigues (*)
Camadas e mais camadas. Cai a última, de verniz, do senador Antonio Carlos Magalhães com o caso da listinha rasgada. Surgem a Zélia Gattai e a Gal Costa, com tintas encontradas nos baús da narcocultura, e tentam fazer pátina na surrada carcaça do carlismo. Elas enxergam o lado bom do senhor pai da Bahia porque, ao contrário do que insistem as novelas da Globo em afirmar, ninguém é só bom ou só mau. E é preciso perdoar, flexibilizar, fazer concessões, usar de diplomacia nas relações, nas editorias, na manutenção do emprego, nas relações.
Acontece que senso ético exige certas posturas rígidas, uma tinta bem nítida, nada de pátinas para fingir que o novo é velho, o velho é novo. Postura rígida que a Dona Regina Célia Borges não teve, por exemplo, ao topar sujar as mãos em um trabalho obviamente brumoso. Deixemos o senador Arruda de fora, afinal o líder do Governo servir de pombo-correio para um serviço sórdido pedido pelo então presidente do Senado é de matar defunto. Sem comentários, até porque o assunto que proponho abordar não é a falta de ética no Senado, mas como ela se reproduziu lá tão naturalmente que nem o ACM, depois de toda a sua trajetória política e atos até mais nefastos, acredita em tudo o que está acontecendo. Ele já caducou de vez depois dessa. ?Patinado? ou in natura.
Agora eu pergunto aos engenheiros, aos biólogos, aos advogados e outros eiros, ólogos, agos e principalmente aos meus colegas jornalistas: quantos de nós questionam ordens? Quantos de nós se colocam diante de um chefe com a tal postura ética em primeiro lugar? Quantos de nós dão a cara a tapa, chutam um cargo para o alto, recusam-se a fazer concessões antiéticas? E quantas autoridades têm a lisura de não ultrapassar os umbrais de seus cargos com autoritarismo, sedução, indução, coação? Quantas Reginas Célias estão, nesse exato momento, engolindo mais um sapinho à provençal nas prefeituras, nas empresas, nas universidades, no serviço público, nas redações? Ah, nas redações!
E os que colocam a ética em primeiro plano, como são tratados?
"Jogatina civilizada"
No mundo da mídia a máxima é ser chamado de temperamental, acusado de ser bicho-grilo fora de época, hippie retardatário. E não há nada mais ofensivo, especialmente agora, com a novela das 6h na Globo.
A onda é ser flexível, usar a roupa certa, fazer o discurso correto, ser amável diante do pior déspota. Indignação é a coisa mais fora de propósito. É o cinismo em alta nas tribos civilizadas. Ser cínico é sinal de inteligência. Não importa o que se sente, o que se pensa; o fundamental é agir para se manter o emprego ou o poder, o cargo, as "boas" relações.
Como limpar tudo isso? Como Jack, o Estripador, por partes. Começa-se pela cassação dos senadores, depois as outras CPIs: Sudam, Sudene, do lixo. Mas como os que lá em cima estão, eleitos por aqueles que aqui debaixo vivem, convinha uma boa CPI na mídia, afinal, ela é formadora de opinião, é o meio de campo entre lixão e lixinhos. Exímia em fazer pátinas nas notícias, está necessitando de uma boa verificada nas bases de sua estrutura.
Logo após a CPI da mídia, estariam enroladas as empreiteiras, o cimento em geral, e suas primas em primeiros grau, as madeireiras, que continuam em alta nas ?reportagens?, levemente retocadas com adendos de preocupação ambiental. É pátina em tons róseos.
Uma matéria de várias páginas sobre Florianópolis, publicada na IstoÉ no auge do último verão, por exemplo, deu vontade de chorar, pelo menos para quem vive na cidade. Parecia um press release (será que não foi?) a propagandear os 40% de matas nativas, quando é visível a escalada dos morros, não por pobres e seus pequenos barracos adornados por pitangueiras, goiabeiras e bananeiras; mas por mansões e resorts gigantes, que desmatam áreas imensas, depois implantadas por árvores ornamentais. Esgoto não-tratado e um projeto que pretende urbanizar um dos bairros mais rurais da cidade, o Campeche, na tentativa de atrair 340 mil novos moradores para uma área em que passa um lençol freático, também é o rosto real de Florianópolis. Sem contar com a via expressa, entrecortada por rótulas de 200 metros quadrados, que pretende atravessar as dunas ? área de preservação ambiental ?, dando ao turista uma visão magnífica do mar. Lindo, se não fosse o preço de um impacto ambiental estúpido. É só um exemplo, são tantos, basta abrir os jornais, principalmente os de economia.
Enfim, nenhuma dessas informações estava na matéria da IstoÉ. Pelo contrário, a idéia de paraíso e preservação ambiental imperou do lide ao ponto final com pequenas concessões à realidade nua e crua.
E então demos a volta e chegamos ao ponto. As concessões à verdade é que são a regra do jogo. A maquilagem nas relações, o encontro de egos, é a ordem; o marketing ? ou ?mintiuri?, como inventou meu filho de 10 anos ? é o centro, o superego, a ação propriamente dita. O mercantilismo é a alma dessa jogatina civilizada em que estamos todos metidos. Está no inconsciente, implantado bem no fundo do córtex da civilização, uma espécie de sentimento comercial.
Como desvirar isso tudo?
Por partes, talvez, mas tudo o que posso lembrar nesse momento é da imagem de um amigo jornalista, muito querido e ético que, certa feita, literalmente pirado num manicômio, colocava suas roupas todas do avesso e me perguntava com olhos cheios de lágrimas: por que tudo está virado? Por que não se pode ser sem estar do avesso? Por que todos vêem a água transparente se ela é negra?
Feliz aniversário OI, e muitos anos de vida.
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