Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Dona Canô chamou? Então, não vá!

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SOS BAHIA

Sílvio Roberto dos Santos Oliveira (*)

Tenho um amigo, baiano também, que, por um feliz acidente, nasceu no Paraná. Um dia, disse-me, admirou-se de ver uma senhora na TV emitindo opinião a respeito de tudo. Era uma espécie de voz autorizada a falar pelo povo de Santo Amaro, na Bahia, prenhe de elogios a algumas personalidades. Mas qual povo? Mas quem era essa senhora? "Dona Canô, a mãe de Caetano, só fica aparecendo na TV!"

Por que o meu amigo sofreu um feliz acidente? É ruim nascer na Bahia ou no Paraná? Nasci na Bahia e não quero mudar. Meu amigo nasceu no Paraná, mudou geograficamente, mas seu coração continua lá. Entretanto, provavelmente por ser um baiano importado e ao mesmo tempo legítimo, ele se encontra em tremenda vantagem, e por isso sente-se feliz no acidente: possui um olhar bem de dentro, possui um olhar bem de fora. Certamente Dona Canô segue sua ética particular: se isto é bom ou não, não sei responder. Depois, porém, apareceram outros baianos na TV e outras reportagens ? e, meu amigo percebeu com destreza, os oportunismos de artistas e personalidades ávidos por lucros e por vantagens. Mas não são os principais. Certo é: não só eles embarcaram nessa há muito tempo: nessa de puxar-saco, louvar os homens, extrair dividendos do poder, tentar corromper outros e "lenhar", como dizemos os soteropolitanos, com boa parte da Bahia. Outros, escritores, engenheiros, baianas do acarajé e até cozinheiros.

Longe de mim pensá-los como os principais causadores. Longe de mim conduzir Dona Canô e sua ética pessoal a uma expiação. Além de existir uma outra senhora muito mais autorizada a falar pelo estereótipo que criaram do povo baiano e até pelos acadêmicos, existem alguns radialistas de AM e FM muito satisfeitos com as decisões políticas dominantes, muito mais capazes de mobilizar doentemente a população e ludibriá-la com seus prêmios, falsas denúncias, jogos de cena e elogios. Especialmente os do futebol. As resenhas do meio-dia de certas rádios são exemplos carcomidos do comprometimento de parcela da imprensa baiana com o poder em minha terra instalado. Fala-se menos de futebol e mais de certos políticos.

"E viva o prefeito (embaça aí), que consertou o esgoto a céu aberto da rua tal." E o povo comendo a corda. Escuta essas resenhas e os "programas da manhã" todo o povo da periferia, que não tem escolha (e às vezes nem escola), mas tem o arerê geral da Praça Arte Cultura e Memória, pirâmide achatada construída no Pelourinho. É preciso redizer aos de fora da Bahia, pois o meu amigo é de dentro (e João Carlos Teixeira Gomes já vem recordando faz algum tempo), que o senador Antonio Carlos Magalhães detém parte significativa do poderio econômico na Bahia e meios de comunicação, influenciando outros tantos catalisadores de opiniões populares como os próprios clubes de futebol. Joca, no livro Memórias das Trevas, fornece pormenores sobre a história do senador e de como este cresceu economicamente. Além do já dito, a respeito do exercício de poder sobre os medrosos ou fascinados por vantagens comezinhas: compositores e cantores (alguns recebendo grandes somas para participar de festas populares, conforme informou o jornal A Tarde em inúmeras edições de dezembro de 2000 e janeiro de 2001), cozinheiras famosas, alguns chefes comunitários exibindo brilhantes dentaduras novas, pastores e padres muito piedosos e outros agentes da paz, todos em seus shows ou espaços convencendo o povo de que o "lado do bem" tem a cabeça branca.

Mal nefando

Contudo, nem tanto: não é possível que o pessoal de outros estados, após tantas manifestações contrárias ao poder hegemônico na Bahia, inclusive a de Joca, creia mesmo ingenuamente que a Bahia em sua totalidade apóie ACM. Não é crível. Dá a impressão de que os outros brasileiros estão pouco se lixando para o fato de que, com uma possível renúncia, ACM retorne ao seu reduto. A Bahia é um tapete, joga-se o lixo para debaixo do tapete e pronto! A casa está limpa! Está certo: é da responsabilidade dos baianos contrários ao pensamento hegemônico mostrar que as coisas não são bem assim! Mas custa um pouco de solidariedade? Logo depois de ler um artigo inteligente, esquisito e indevidamente esquecido de uma articulista, durante esta semana, respirando aliviada com o possível "retorno" de ACM à Bahia, hoje, dia 4 de maio, sai Eliane Cantanhêde, na Folha de S.Paulo, com a seguinte frase: "Essas duas perguntinhas [referindo-se ao caso no Congresso: mandou? telefonou?] é que podem decidir a volta do homem mais poderoso do Congresso para a Bahia, onde ele ainda é rei…"

Acho que a idéia contida na frase só salta aos olhos se a reforçarmos com um outro texto, muito irônico e perspicaz, intitulado "Aos baianos", de João Mellão Neto, publicado no mesmo dia no Estado de S.Paulo, que diz:

Assim sendo, o que nós gostaríamos [nós brasileiros X vocês baianos] de lhes sugerir é o seguinte: demonstrem ao Toninho, coitado, que é aí o seu verdadeiro lar. Mostrem-lhe que é somente na Bahia que ele encontrará, finalmente, todo o carinho, o amor e a compreensão que vem procurando. [Façam qualquer coisa, mas ? por todos os santos e orixás! ? levem o ACM de volta pra casa!"]

Olha essa chamada, ainda na Folha de 4 de maio: "Os baianos estão em campanha eletrônica para salvar ACM". A imagem propagada é: todos os baianos apóiam ACM!

Imaginem os outros brasileiros a seguinte manchete em um jornal de Buenos Aires, decorrente de algum show de dupla sertaneja no Planalto: "Brasileiros estão em campanha para salvar o governo de Fernando Henrique". Certamente a frase é absurda por não preservar todos os pontos de vista.

Desconsiderando linhas editoriais e até ideológicas, parece-me haver um pensamento insistente em diversos veículos de comunicação a ser concluído sempre com piadinhas ou ironias a respeito do possível retorno do senador à Bahia, pois a Boa Terra seria o seu lugar, já que artistas e outras representações se manifestaram a favor do mesmo.

O certo é: muitos baianos contrários ao poder carlista sabem de seu poderio econômico e que, sentando ou não na poltrona do Senado, ele possui clones em número suficiente e, em termos regionais, "a luta continua". Mas nem todos concordam com Dona Canô e muitos têm a intenção de continuar desmascarando os desmandos internos. Pode até ser que o Brasil ? e comemoraremos juntos ? veja-se livre de políticos nefastos. Se os jornais nacionais divulgarem este alívio, entretanto, paradoxalmente irei certificar-me de que o Brasil desconsidera uma porção enorme de seu território, ainda presa hediondamente nas garras de mal nefando. O Brasil estará livre? A Bahia, escrava, que se forra. E entre pelo canô.

(*) Professor, mestre em Teoria Literária pela UFBa, doutorando em Teoria Literária pela Unicamp. E-mail: <srsoliveira@ig.com.br>


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