MÍDIA E ACM
(*)
Alberto Dines
Se crise é a combinação de desafio com oportunidade, como pretendem os orientalistas, o clima de emergência já produziu o primeiro resultado: a velocidade substituiu o marasmo. Sem apagões, fez-se a luz. As coisas começaram a acontecer. Inclusive no calendário: esticou-se a semana brasileira até então condicionada à curta semana brasiliense. No lugar do blablablá e nhenhenhém entoados pela oposição e situação percebemos que há outras vozes no coro nacional. E também os silêncios dos gerenciadores de crises, ofício praticamente ignorado no país do "dá-se-um-jeito".
No turbilhão dos fatos, um monte de figuras, nomes e histórias cruzados. Plutarco, talvez o mais popular dos autores clássicos, deve ter vivido situação semelhante em meados do primeiro século, quando engendrou suas Vidas Paralelas. Conjunto de pares de biografias de soldados, filósofos e estadistas que pretendia comparar os valores gregos e romanos.
Para um Plutarco contemporâneo impõe-se o perfil de Antonio Carlos Magalhães. Como na fábula do aprendiz de feiticeiro, o senador ACM está colhendo agora tudo o que semeou nos últimos anos. Fez o que quis, soltou as bruxas, acionou feitiços, açulou diabinhos, escorado em dois pressupostos que considerava eternos: a) quem ousa, ganha; b) quem tem amigos, tem tudo.
Pensou e jogou como as velhas raposas políticas, pragmaticamente. E à medida que o esquema dava certo, foi aumentando o valor das apostas. Inebriado pelos êxitos, justo no lance final, esqueceu-se da física, da dialética e até do comezinho bumerangue ? tudo que vai, volta.
ACM levou o maior tranco da sua vida. Não foi fatalidade, derrubou-o a própria força ? mal empregada, como no judô. Está na lona, experimentando de uma só vez tudo aquilo que impôs aos adversários ao longo de anos de perseguições. Pode até levantar-se se surtir o esquema da tripla renúncia (dele e dos suplentes) para criar a vacância da cadeira. Jamais será o mesmo: não ousará tanto nem confiará no poder dos validos. Nem estes confiarão na sua invencibilidade. Magia desfeita, terá que inventar novos truques, esquemas, começar do zero. Leva tempo mas nunca é tarde para recomeçar.
Como a História é caprichosa, ACM está experimentando o inesperado sabor da derrota no exato instante em que desaparece aos 95 anos seu primeiro padrinho e mentor, Juracy Magalhães. O último dos tenentes foi um autêntico coronel da política baiana e também vice-rei do Brasil. Por mais tempo do que o afilhado-depois-desafeto, o ainda senador ACM. Na mesma semana perde a Bahia os dois caciques que dominaram sua vida ao longo de mais de 70 anos.
Conservadores, ambos foram governadores e senadores do seu estado. Juracy, embora tenha sido o primeiro presidente da Petrobras (também da Vale do Rio Doce), não pode ser considerado nacionalista. Era um convicto admirador dos Estados Unidos (onde serviu três vezes) e ferrenho anticomunista. ACM é apenas reacionário, pode aderir ao maoísmo ou ao PT com a mesma naturalidade com que no passado transitou entre a UDN e JK.
As semelhanças, além do sobrenome Magalhães, param aqui. Suas visões foram radicalmente opostas em matéria de projeto nacional e atuação pessoal. Juracy representou o reformismo de viés militar e, como a maioria dos companheiros das duas safras de tenentes, acreditava na função e missão do Estado. Revolucionário duas vezes (1930 e 1964), legalista outras duas: quando opôs-se ao golpe do Estado Novo (1937) e à tentativa de impedir a posse de Jango (1961).
ACM jamais foi reformista ou legalista. Para ele, o Estado não precisa ser reformado, o Estado existe para ser tomado de assalto. A legalidade, uma abstração. Usa o poder público para o seu projeto de poder pessoal, como demonstram suas passagens pela Eletrobrás e o Ministério das Comunicações. No seu estado fez obras, magníficas, sobretudo em lugares de grande visibilidade, mas sua atenção e atuação estão sempre fixadas no próximo pleito. A começar pela cruzada iniciada quando foi deputado estadual (1954), visando a multiplicar o número de municípios baianos. Em cinco anos criou 30. Municípios ou currais eleitorais.
Roberto Saturnino Braga (PSB-RJ) já foi à Bahia, certamente. Mas nada tem a ver com a política baiana. No entanto, o relatório que apresentou ao Conselho de Ética do Senado equivale, senão ao enterro, pelo menos a uma internação, numa UTI, do colega ACM.
Engenheiro com especialização em economia, funcionário do [então] BNDE, prefeito do Rio (1986-1988), apesar do nome não sofre a influência de Saturno ? nada tem de saturnino e melancólico. Foi criterioso e sóbrio nesse episódio. Corretíssima a reprimenda que fez à mídia: queriam extorquir-lhe um voto antecipado para garantir a manchete do dia seguinte. Recusou. Mas enquanto examinava documentos e depoimentos ofereceu candidamente à opinião pública reflexões em voz alta que mantiveram a questão acesa sem, contudo, ceder à tentação do comício.
Nas audiências recusou o papel de inquisidor tão ao gosto das figuras paroquiais subitamente alçadas à ribalta nacional. Senador, comportou-se como perito em questões ético-políticas e, nessa condição, num conselho expressamente criado para examinar o decoro parlamentar, ofereceu um parecer técnico, sem veleidades bacharelescas.
Roberto Saturnino estabeleceu novo paradigma de comportamento para comissões parlamentares no exato momento em que esses foros especiais converteram-se em tema de uma discórdia apocalíptica. Não podem descambar em circo, palanque, delegacia ou tribunal, sob pena de comprometerem a função parlamentar, mas não devem ser diabolizadas como ameaças à governabilidade ou ao regime.
Oposicionista histórico, conterrâneo e, a contragosto, correligionário do eterno Garotinho, Saturnino está no pólo oposto ao governador fluminense: compenetrado, responsável, incapaz de malandragens.
Plutarco sabia escolher seus personagens, as emergências ajudam.
(*) Copyright Jornal do Brasil, 19/5/01
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