Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Arthur Giannotti


JORNALISMO & AMORALIDADE

"O dedo em riste do jornalismo moral", copyright Folha de S. Paulo, 17/05/01

"Mais do que moral, acusar de imoral publicamente uma pessoa pública é ato político. Na medida em que a política, entre muitas coisas, consiste numa luta entre amigos e inimigos, ela pressupõe a manipulação do outro, desde logo suporta, portanto, certa dose de amoralidade. Não há política entre santos, mas já existe entre sábios, pois, embora devam discutir até o convencimento de todos, até chegar ao consenso e pronunciar uma verdade relativa, para isso precisam disputar recursos escassos, de sorte que alguns ficam privilegiados no processo de provar suas teses.

No entanto, é particularmente na democracia, quando os interesses gerais e comuns são discutidos até que se decida pela maioria, tornando legítima a ação executiva, que se percebe com nitidez sua zona cinzenta da amoralidade.

Na impossibilidade do consenso, a decisão se dá pelo voto. Isso implica obedecer a determinadas regras que asseguram a legitimidade do procedimento, tais como eleger representantes, garantir que a minoria possa vir a ser maioria, determinar prazos, ordem na apresentação das propostas, indicação de comissões e assim por diante.

Não há, porém, como impedir a manipulação desse regulamento, pois somente dessa maneira a regulamentação da criação de regras pode funcionar para regular a disputa entre amigos e adversários. Seria inútil se tudo pudesse ser decidido por consenso, mas no dissenso a regra que regula o exercício de outra regra necessariamente possui sua zona de indefinição.

O poder só se torna necessário quando se distribuem recursos escassos. Exerce poder o médico que, não tendo AZT suficiente, precisa eleger aqueles cujas vidas poderão ser prolongadas. Numa situação de abundância, isso seria desnecessário. Exerce poder quem distribui recursos escolhendo quais os primeiros e os últimos a receber verbas já aprovadas, mas que não podem ser liberadas no primeiro dia do ano orçamentário. Como não está administrando uma loja, mas exercendo o poder de contemplar alguns antes de outros (condição para que o benefício seja de fato distribuído), é insensato exercê-lo beneficiando o inimigo.

As leis guardiãs das leis que regem a ?polis?, para serem praticadas, requerem uma zona de amoralidade sem a qual não poderiam funcionar. Isso já no seu princípio, pois seus executores só podem existir a partir de uma particularidade. O deputado ou senador, prefeito ou governador, enfim o representante político encarregado de tomar decisões gerais, ele é um ser social particular cujas necessidades devem ser satisfeitas.

Por isso, se um indivíduo só vem a ser político mediante uma votação, não existiria política se os políticos não tratassem de vencer eleições, usando recursos disponíveis, inclusive manipulando as indecisões e falhas do regulamento. A efetivação de qualquer jogo competitivo sempre requer um espaço de tolerância para certas faltas.

Essa indeterminação é condição para o exercício de qualquer regra. Lembrando uma imagem usada por Wittgenstein: se o êmbolo fosse rigorosamente ajustado ao oco do pistão, não haveria movimento possível. Isso faz com que, na política, não se possa regulamentar um órgão qualquer do Executivo, do Legislativo e do Judiciário sem que se arme um sistema de regras cujas zonas indefinidas não sejam usadas na luta pelo poder. São conhecidas as manobras de pedido de vistas, a disputa pela ordenação da pauta, as pressões para nomear um relator e assim por diante.

Numa democracia o eleitor está diante do dilema: ou deixa para outro escolher seu representante, que vai se imiscuir no jogo do poder, ou aceita a escolha com os riscos a ela inerentes. Mas ambos estão praticando a democracia como processo de decisão aceito pela maioria.

Sabe-se o preço a ser pago pela tentativa de abolir essa zona de indefinição, ela resulta na ditadura ou no jacobinismo. Ser democrático é, pois, conviver com esse risco. Mas querer a democracia implica admitir que o jogo democrático é tanto deliberativo quanto decisionista; de um lado, reconhecer a necessidade da discussão procurando o consenso, de outro, o exercício do poder antes do saber, correr o risco de que o representado como sendo válido e bom para todos se mostre inválido e prejudicial.

Somente assim a decisão é tomada e o adversário, derrotado, pois, se a política é jogo, a partida não está determinada de antemão. Daí ser preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois são diferentes suas zonas de indefinição. No primeiro caso, o juízo moral se torna inevitavelmente arma política para acuar o adversário e enaltecer o aliado, de tal modo que a investigação da verdade fica determinada por essa luta visando a vitória de um sobre o outro.

Desde Platão o político é acusado de ser camaleão, de viver da aparência, de precisar mais aparecer do que ser. Quando o aparecer é mero reflexo do ser, não existe política possível. Por isso Platão, adversário da democracia, imaginava a ?polis? sendo regida por um filósofo. Mas é totalmente imoral ao mesmo tempo querer a democracia e igualmente querer a transparência de todas as manifestações da ação coletiva, posto que age imoralmente quem, sabendo que a ação resulta em consequências indesejáveis, acusa o outro como responsável por essa situação.

É possível, todavia, contra-argumentar: o político precisa ser crível, não posso votar em quem vai me enganar. Essa contradição se resolve no processo da democracia, em primeiro lugar porque a aparência de credibilidade vai sendo testada pela coerência da ação do político e da reação do representado. A mulher de César há de ser e de aparecer honesta, mas se não for honesta do ponto de vista da aparência não terá credibilidade política; vale dizer, deixará de ser representante política.

Em segundo lugar, porque acusar o inimigo de imoral é arma política, instrumento para anular o ser político do adversário. Mas a moeda política se gasta caso usada indiscriminadamente; também ela deixa de ser crível. Daí a importância da mobilização da opinião pública na determinação da linha de tolerância entre o que o político deve e não deve fazer.

No Brasil, tempos atrás, era possível aceitar um político que roubava mas fazia. Graças à melhoria de nossa democracia isso não é mais possível. Cada vez mais tendemos a aceitar a regra de que o político, devendo se aventurar na zona da amoralidade, pague quando ultrapasse os limites sociais da tolerância.

Compreende-se a responsabilidade da mídia nesse processo. Ela deve enunciar os fatos do ponto de vista de sua diferença e de sua verdade. Mas, como isso se faz por meio de empresas capitalistas, cuja existência depende da obtenção de lucros, deve ainda corresponder a certas expectativas de seus leitores.

Sob esse aspecto, a função crítica do jornalista também é contraditória, pois visa o público necessitando garantir o interesse privado. Mas, enquanto o político se arrisca para fazer da matéria social amorfa um fato verdadeiro, o jornalista se arrisca para fazer da verdade uma crença social. A mídia, se de um lado é guardiã da moralidade pública, de outro, por ser empresa, tende a imaginar que seu ponto de vista privativo se identifique com o ponto de vista geral.

Um partido, ao negar-se como particular, é levado a minar a existência legítima de outros e, por isso, se identifica com o Estado; por sua vez, um órgão da mídia que se pensa como único instrumento da moralidade pública tende a virar partido. Na distância entre o que ela é empresa particular e guardiã da normatividade pública, entre sua particularidade e sua universalidade, infiltra-se uma contradição, que também se resolve no processo.

O leitor e o telespectador devem crer na possível universalidade da informação, isto é, sua capacidade de resistir a contraprovas. Se um jornal não mais aparecer crível deixará de existir como empresa, embora possa estar tão correto como uma revista científica. Em contrapartida, se tender a enunciar juízos morais fora da realidade de risco onde se move o objeto julgado, torna-se igreja, pois atos políticos lhe aparecem marcados pelo pecado original.

É obrigação da mídia informar os fatos no seu nível de realidade. Não cabe contar o enredo de uma peça como se fosse fato real, muito menos um fato político como se fosse obra de santos. Por certo, cabe-lhe o dever de zelar pela moralidade pública; deixa, porém, de ser democrática quando recusa ao fato político sua necessária aura de amoralidade. Quando um jornalista o expõe do ponto de vista de sua total transparência, destrói o caráter político desse fato e transforma sua informação em arma política a serviço de interesses totalitários.

Quem dá uma informação não é responsável pela imoralidade dela, mas se responsabiliza pelo tipo de realidade que empresta ao fato descrito. Perde credibilidade ao confundir os níveis do real. Comporta-se como o paciente que, depois de consultar seu urologista, ou a paciente seu ginecologista, se sentisse violado e saísse denunciando a imoralidade da medicina.

O sentido do gesto não reside no seu uso, por conseguinte, no foco visado por ele mas igualmente na zona cinzenta que permite a concentração da luz? A plenitude da luz não permite a visão. (José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autor de, entre outros, ?Certa Herança Marxista? (Companhia das Letras) e escreve mensalmente para o caderno Mais!)"

"Ética jornalística e ética política", Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 20/05/01

"A menos que endosse o princípio de que os fins justificam os meios, em nome do qual, para ficar apenas na História recente, oceanos de sangue foram derramados pelos totalitarismos de esquerda e de direita do século 20 e sob o qual, no plano rasteiro do cotidiano político, os cínicos de todas as tendências buscam arrimo para os seus delitos conscientemente praticados, a imprensa que não é venal nem considera que se deva limitar ao registro fidedigno dos acontecimentos tem um compromisso inabalável com a defesa dos valores que espera respeitados pelos governantes democraticamente eleitos.

Esse compromisso – o exercício de um ?jornalismo moral? – é a pedra de toque de seu contrato com os leitores e a opinião pública em geral. Não há apuro técnico, rigor na coleta e publicação das informações de interesse, agilidade editorial, linguagem apropriada, elegância gráfica, ou qualquer outro atributo exigido de um jornal ou revista de qualidade, que torne supérflua a sua função normativa: julgar, com equilíbrio e independência, as decisões e a conduta dos agentes públicos, tendo como parâmetro os legítimos interesses da sociedade, cuja coesão e senso ético se relacionam inextricavelmente com o ?norte moral? de seus órgãos de informação.

Em 121 anos de existência autônoma, este jornal encarou como ponto de honra externar sem subterfúgios a sua opinião não apenas sobre as iniciativas dos detentores do poder em matéria administrativa, de política econômica ou de relações exteriores – entre tantas outras ?questões de Estado? -, mas também sobre o padrão ético dos atos de governo e dos que lhe façam oposição. A determinação de não se desviar desse objetivo eliminou, a priori e desde sempre, qualquer possibilidade de alinhamento automático do Estado com governos, dirigentes e partidos políticos, por maiores que pudessem ser as simpatias e as afinidades doutrinárias envolvidas.

Simetricamente, por maiores que fossem as suas reservas, ou mesmo aversão, diante de determinadas figuras públicas, o jornal jamais se recusou a aplaudir medidas por elas tomadas, quando entendeu serem da conveniência do País. O Estado, vítima embora da violência da ditadura varguista e adversário implacável do getulismo, porque convencido de que tinha efeitos devastadores na evolução dos costumes políticos nacionais, retardando o processo de aperfeiçoamento das instituições que resultaria na consolidação do regime democrático, mais de uma vez elogiou decisões do presidente Vargas, que considerou benéficas para o Brasil. Pela simples e definitiva razão de que seria impatriótico, além de intelectualmente desonesto, deixar de reconhecer os eventuais acertos de um adversário político – como faz hoje a oposição em relação ao Planalto, mesmo em situações de acentuada convergência, como no caso das restrições de parte a parte ao projeto da Alca.

Ninguém ignora que este jornal considera o presidente Fernando Henrique um estadista e está convicto de que o seu governo mudou dramaticamente para melhor as perspectivas do País. Nem por isso o Estado se absteve de criticá-lo, às vezes com severidade, por atos ou omissões. E, talvez para a improcedente surpresa de alguns, acabamos de criticá-lo no plano da moralidade política, pela forma como ele conseguiu impedir que fosse criada a CPI da Corrupção – cujo caráter eleitoreiro e cujas intenções desestabilizadoras reiteradas vezes foram ressaltados neste espaço.

Por suas características, o sistema político brasileiro contém poderosos incentivos a práticas fisiológicas ou clientelísticas. Isso, no entanto, não absolve o presidente de se ter valido de recursos do gênero para livrar-se de uma dificuldade que ele próprio superestimou, barganhando com a liberação de verbas orçamentárias a retirada de assinaturas de parlamentares governistas do requerimento da CPI. Mesmo que se admita que o exercício do Poder possa ter uma dimensão amoral, seria trágico para a democracia se o ?jornalismo moral? a isso sucumbisse, relevando graves deslizes éticos, como o que o governo cometeu nesse episódio.

Os riscos morais inerentes à prática política são um problema dos políticos – nunca da imprensa séria que tem o direito e o dever de julgá-los por critérios com os quais não pode transigir. No limite, a idéia de que o zelo da mídia pela moralidade pública deve ser relativizado, levando-se em conta a ?zona de amoralidade? supostamente indissociável do âmbito do governo, equivale a advogar, para a imprensa que se dá ao respeito, uma atitude de condescendência diante do desrespeito a valores éticos – que é tudo que os leitores abominariam e é tudo que este jornal nunca fará. O mais é vã filosofia."

"Giannotti", copyright Folha de S. Paulo

20/5 – "O filósofo José Arthur Giannotti usa, com sua dialética magistral, toda a página 3 da Folha para justificar a ?inevitável? zona de imoralidade da política e acalmar a consciência daquela relevante parcela da imprensa brasileira que protege o desmonte neoliberal do país. Tudo é dito como se a política devesse se acantonar sempre num simples jogo de poder, afastando qualquer utopia humanista e social. Sugiro que amanhã esse mesmo espaço seja usado pela primeira frase, em letras garrafais, do oportuno artigo ?Os apagados? (Brasil, pág. A5, 17/5), de Janio de Freitas, jornalista cuja consciência não precisa ser acalmada. Diz ele: ?O aumento do custo para o consumidor (falando da energia elétrica, mas poderia ser também das passagens de ônibus em São Paulo), como querem o governo e parte da mídia, é a solução da prepotência e do discricionarismo social, logo a solução tipicamente de direita: punir quem se torna punível não por ter culpa, mas por ser a parte sem força de reação?. (José Aristodemo Pinotti, professor titular de ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP)

Dia 18/5 – No artigo ?O dedo em riste do jornalismo moral? (?Tendências/Debates?, pág. A3, 17/5), o professor José Arthur Giannotti vem a público para esclarecer que a crítica jornalística se envolve em contradição crucial -moralidade pública ou interesse privado?-, porque seu desdobramento se dá num lugar social preciso: as empresas capitalistas. No entanto, quando se refere à contradição análoga experimentada pelo ?político? -esse ser abstrato dividido entre a credibilidade e as ?zonas de indefinição? -, não aponta o ilustre filósofo para lugar social nenhum. Se o fizesse, talvez se desse conta de que, por estas bandas, há presidentes da República que têm os dois pés fincados nos interesses do mercado, dos grandes financistas e também de toda a sorte de ?coron&eeacute;is?, que sempre compactuaram com as formas arraigadas do autoritarismo brasileiro. Talvez percebesse também que tais presidentes, ao governarem por medidas provisórias, ao destruírem a autonomia dos poderes, ao destroçarem mecanismos legítimos de investigação e ao violentarem os movimentos sociais, fazem bem mais do que exercer qualquer ?zona de indefinição? -implodem as regras do jogo e solapam a democracia. Em suma, basta que o tom das denúncias aumente para que FHC chame seu intelectual de plantão e o mande, subserviente, sair em defesa do superior com palavras vãs e pomposas. Lamentável. (Marco Antonio Silveira, Belo Horizonte, MG)"

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