Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paulo Roberto Pires

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

ASPAS

"Razão esfarrapada", copyright no. <www.no.com.br>, 13/5/01

"Não se fala outra coisa em Nueva Königsberg: a edição de semana passada da ?Veja? esgotou na cidade paraguaia. Também pudera. Como o no. mostrou na segunda-feira (7), a revista semanal brasileira tornou reais a colônia de alemães admiradores de Kant e o filósofo Jean-Baptiste Botul, até então produtos da imaginação de Frédéric Pagès, jornalista e escritor francês cansado da arrogância intelectual de seu país que situou naquela cidade improvável uma série de conferências de um típico intelectual obscuro, editadas como verídicas em ?A vida sexual de Immanuel Kant? (Unesp). Ou seja, para a criteriosa publicação paulista, o 1? de abril caiu em maio, quase 20 anos depois de a revista ter revelado ao mundo a existência do boimate, transgênico do boi com o tomate que também foi tomado como perfeitamente factível.

Em sua edição desta semana, ?Veja? faz Kant revirar na tumba ? em Könisberg, a velha, bem entendido ? ao maltratar a velha e boa razão de que tanto se ocupou o filósofo em sua ânsia de provar desesperadamente que não foi acometida outra vez pela terrível síndrome do boimate. Em nota na seção cartas, a revista admite que ?não procede? a existência do autor analisado e, candidamente, defende que isso é um detalhe que não compromete de forma alguma as quase duas páginas dedicadas ao livro publicado pela Unesp ? que, aliás, em carta à revista, lamenta ter editado ?involuntariamente um livro sob autoria incorreta?. Tudo não passou, segundo a revista, de ?comentários tolinhos? publicados pela ?imprensa amadora brasileira?. Sejamos kantianos e tentemos entender: a ?Veja? compra gato por lebre e tolo e amador é quem percebe a batatada monumental e escreve sobre ela. Perfeitamente lógico, não?

No episódio do boimate, é bom que se lembre, ?Veja? deu a cara a tapa e admitiu o erro. Hoje prefere publicar o que Jean-Baptiste Botul chama em vários de seus escritos inéditos de ?crítica da razão esfarrapada?, pérola do humor involuntário que infelizmente não vem assinada ? pois seu autor é certamente um botulista de primeira ordem. ?O trabalho foi avaliado pela revista como ?curioso? e ?impagável?. ?Veja? não entrou no mérito das interpretações de Botul-Pagès?, argumenta a nota. Mentira. Está lá no artigo de semana passada, para que quiser ler: ?O lance mais ousado de Botul, no entanto, é afirmar que a atividade sexual (ou falta dela) de Kant é fundamental para compreender obras praticamente impenetráveis como Crítica da Razão Pura?. E, mais adiante: ?o que importa é que, na opinião de Botul, ?Crítica da Razão Pura? é expressão dos instintos voyeurísticos de Kant?. Ou seja, o que ?importa? é o raciocínio fino e intricado de Botul.

Ao se defender, ?Veja? quer ainda desqualificar quem lhe critica afirmando que todas as informações sobre Kant são verídicas ? o que, aliás, não foi em nenhum momento contestado ou mencionado pois não é disso que se trata – e que ?os dados e anedotas citados na resenha podem ser conferidos em obras do próprio Kant, como ?Metafísica dos Costumes? e ?Reflexões sobre a Educação?, em sua correspondência e em biografias como ?Kant Intime??. Todas estas obras teriam sido lidas ?diligentemente pelo resenhista de ?Veja? e, segundo insinua a revista, se eu tivesse feito o mesmo teria evitado meus comentários tolinhos.

Só posso concluir que o diligente resenhista leu milhares de páginas em três dias e certamente sob os gritos de seus superiores. Quando me telefonou na tarde de quarta-feira (9), certamente ainda não o havia feito ? ou escondia bem sua cultura kantiana. No diligente telefonema, o tom era soturno e perplexo, em busca do telefone de Pagès, que sabiamente se recusa a estabelecer verdades e mentiras em torno do livro. Curiosamente, em seu texto original, o diligente resenhista referia-se a Kant no melhor estilo anti-intelectualista da revista, qualificando sua obra como ?praticamente impenetrável?, avaliando a ?Crítica? como ?uma das mais áridas já escritas? (o que não quer dizer rigorosamente nada além do clichê) e, finalmente, referindo-se às teses de Kant como ?filosofices?. Das duas uma: ou nenhuma destas leituras havia sido feita (e aí a nota do redator botulista mente deslavadamente) ou deu-se diante de nossos olhos o mais espantoso caso já visto de conversão filosófica, talvez produto de um método revolucionário de imersão no mundo kantiano. No tempo dos diligentes é assim.

À crítica da razão esfarrapada falta ainda uma informação tolinha: na ânsia de defesa, revista e editora invocam como álibi o fato de o livro ser publicado pela vetusta Fayard, o que lhes livraria a cara. Ambos desconhecem ou preferem não dizer que o livro foi publicado originalmente pelo selo Mille et Une Nuits, uma editora pequena que tinha em catálogo uma mistura de textos clássicos, atualidades e divertimentos como este. A Mille et Une Nuits foi comprada pela Fayard há pouco tempo e acabou incorporando a seus títulos delícias como o ?Descartes e a maconha?, uma outra brincadeira de Frédéric Pagès.

Tudo isso mostra que falta à ?Veja? o que sobra a Frédéric Pagés: inteligência e bom humor. Mas de tão preocupado em não admitir o erro e manter sua arrogância de sabe-tudo, o círculo neokantiano da revista confere a Jean-Baptiste Botul uma existência ainda mais saborosa. Pensando bem, o melhor mesmo é fazer as malas e se mudar para Nueva Königsberg, onde boimates madurinhos pastam bucolicamente no campo."

***

Crítica da razão ?fake?, copyright no. <www.no.com.br>, 7/5/01

"É fato que Emmanuel Kant levou uma vidinha besta: escrevia, comia, dormia, meditava e caminhava todos os dias em Königsberg, cidadezinha onde nasceu, viveu e morreu. É possível que a ausência de sexo tenha influenciado de alguma forma sua obra. É ainda aceitável que um filósofo francês obscuro (e eles existem aos montes) chamado Jean-Baptiste Botul tenha investigado a vida sexual do autor da ?Crítica da razão pura? nas conferências publicadas agora pela Unesp em ?A vida sexual de Emmanuel Kant?. Mas o que dizer quando se é informado que estas conferências foram proferidas no Paraguai, em 1946, em Nueva Königsberg, vilarejo também obscuro onde ?alemães se vestiam com Kant, comiam, dormiam como ele, e faziam a cada tarde o mesmo passeio lendário num cenário reconstituído que evocava as ruas de Königsberg??

A ?Veja? do último fim de semana achou a história perfeitamente normal e verossímil. O ?Le Monde Diplomatique? também. Afinal, Botul teve uma vida venturosa: conheceu Baden-Powell; teve um affaire com a princesa Marie Bonaparte, patrocinadora de Freud na França; manteve uma correspondência amorosa com Lou Andréas-Salomé quando ela tinha 69 anos; conheceu Zapata e Pancho Villa no México. As informações estão na cronologia, de responsabilidade do editor e tradutor do texto, o jornalista e escritor francês Frédéric Pagès, colaborador de no. que é um tradicional investigador da vida privada de filósofos: em ?Descartes e a maconha? (Pazulin, 1999) ele mostrava como o autor que também é símbolo da razão costumava fumar unzinho em Amsterdã para se inspirar.

?Estes textos do Botul foram descobertos agora?, despista Pagès, às gargalhadas, falando por telefone de sua casa em Paris. ?O botulismo foi prejudicado porque se confunde com a doença de mesmo nome que você pode pegar e morrer se comer, por exemplo, um enlatado com a validade vencida. Mas o ensino acadêmico às vezes é assim, está estragado e é muito perigoso?.

As informações não batem nem no próprio livro. Botul teria morrido em 1947, aos 49 anos. Mas segundo a cronologia de Pagès, a morte teria sido aos 47 anos, em 1945 ? ano em que teriam sido proferidas as conferências na hilária Nueva Königsberg. A cidade estaria fadada a desaparecer pela mais pura lógica: se seus moradores são convictos neokantianos, eles jamais se reproduzirão, pois levariam a vida dedicada à casta contemplação no Paraguai, país que abrigou diversos exilados alemães no fim da Segunda Guerra Mundial ? em sua maioria nazistas e não kantianos.

Com solenidade, Botul declara: ?a vida sexual de Kant é uma das mais graves questões da metafísica ocidental?. E desenvolve sua tese baseado em indicações mais ou menos precisas dos escritos do filósofo. Uma estratégia parecida com a de ?Descartes e a maconha?, em que os dados factuais partem de uma leitura atenta ? e galhofeira ? da correspondência e das obras do autor de ?O discurso do método?.

O idéia diabólica de maquiar mentiras como verdades jornalísticas e acadêmicas já é um filão de diversas formas. Joey Skaggs, artista plástico de formação, faz isso desde os anos 70 e cada vez com maior sofisticação: já enganou a grande imprensa americana e provocou ?barrigas? em todo o mundo (inclusive na Rede Globo).

Há inclusive quem faça disso uma forma de aparecer: Alan Sokal e Jean Bricmont eram obscuros professores de física até submeterem à prestigiada revista acadêmica Língua Franca um texto fake que foi aceito e publicado como uma séria meditação acadêmica. Depois, ambos denunciaram o fato no escandaloso ?Imposturas intelectuais? (Record) e aproveitaram para descascar todo o establishment acadêmico francês.

Mas a universidade americana também sofre por seu linguajar por vezes incompreensível. Um divertidíssimo Gerador de Textos Pós-Modernos produz a cada reload um ensaio perfeitamente coerente, significando nada. ?Obscuridade lacaniana e socialismo?, ?Desconstruindo Bataille: leitura derridiana, objetivismo e construtivismo? e ?Teoria subdialética e discurso capitalista? foram três textos que consegui produzir seguidos. É melhor andar rápido, antes que alguém publique suas resenhas."

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