Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bernardo Ajzenberg

A VOZ DOS OUVIDORES



FOLHA DE S. PAULO

"Você por fora da coisa", copyright Folha de S. Paulo, 20/5/01

"É preciso ser muito caradura para isentar o governo federal -em seus diversos escalões- da maior e principal responsabilidade pela tragédia que levou ao racionamento de energia e seu tarifaço.

Como disse o empresário Antonio Ermírio em entrevista à Folha no último dia 10, ?o governo dormiu no ponto… Teve tempo de sobra para resolver essa crise, que se anunciava há tempos, mas não fez nada?.

Não é ainda certo que pagará um preço arrasa-quarteirão em termos eleitorais – afinal, com perdão pelo trocadilho, muitas águas ainda vão passar debaixo da ponte até 2002-, mas ninguém duvida que FHC já está golpeado, politicamente, com intensidade.

A verdade, acrescente-se, é que a imprensa, como um todo, também não desempenhou um papel dos mais dignificantes nessa história de águas e quilowatts.

No caso específico da Folha, o desempenho deixou a desejar em dois níveis, um macro e um micro. Quanto ao primeiro:

É verdade que o jornal publicou em 31 de maio de 2000, com manchete de capa, que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) negociava então racionamento de energia com grandes empresas.

Também é verdade que deu em agosto outro texto, com o título ?Energia vai faltar ou subir, diz Fiesp?, reportando o alerta feito pelo presidente daquela entidade a empresários.

A pergunta que se coloca, porém, é a seguinte: por que o jornal não foi atrás do caso? Por que não deslocou repórteres para averiguar a situação energética do país, havia já muito tempo situada próxima de um curto-circuito? Por que não colocou o tema como prioridade em sua agenda?

?Os jornalistas somos imbatíveis na hora de informar coisas como ?os apagões começaram ontem?, escreveu o colunista Clóvis Rossi no domingo passado, para concluir: ?Mas perdemos o hábito de lidar com tendências, de olhar consumo, demanda e investimento e dizer: olha, se tudo ficar assim, os apagões serão inevitáveis?.

É preciso, no entanto, ir mais longe. E, aí, duas explicações se impõem.

Primeiramente, o jornal -e vale para o conjunto da mídia- perdeu a iniciativa investigatória no que se refere aos setores privatizados da economia e sua atuação. Permaneceu durante bom tempo petrificado, talvez pelo fato de que em editorial tivesse sido uma das vozes mais fortes a favor, justamente, da desestatização.

O segundo motivo -mais comezinho- está no descaso com que o jornalismo costuma encarar assuntos chatos e técnicos como esse da energia, como se eles fossem menos relevantes para a vida do país do que qualquer querela parlamentar.

Com a eclosão da crise, semanas atrás, a Folha tentou recuperar terreno. Na primeira quinzena deste mês, publicou três editoriais sobre o drama. Trouxe, embora com atraso, a voz de especialistas que demonstraram a incúria e a falta de planejamento do governo no trato da questão. Vários de seus colunistas opinaram ou analizaram o caso.

Nada disso, creio, apaga (para usar a palavra em voga) a omissão acima mencionada -tem razão Gilberto Dimenstein quando escreve (em 13 de maio) que ?sejamos honestos: se os governantes foram incompetentes (e foram), a imprensa estava refém da desinformação, não investigou como deveria e não fez o barulho que poderia?-, mas reflete uma tentativa de firmar algo no terreno.

O outro nível em que se deu o desempenho negativo do jornal na cobertura da crise energética foi o ?micro?.

Ele também se evidenciou nas últimas semanas, em meio ao cipoal de especulações e polêmicas referentes a quais seriam as medidas do governo e como elas seriam aplicadas.

De início falou-se no ?racionamento por cotas? -sem explicar no primeiro momento o que isso significava. Depois surgiu o fantasma dos ?apagões?, sucedendo-se uma série de informações e cálculos desencontrados. Toda a imprensa participou do jogo, diga-se, dos jornais às revistas, passando pelo rádio e pela TV.

Tudo bem que o governo tampouco sabia ao certo o que fazer. Só que, em vez de aguardar definições ou de apurá-las, a mídia passou a constituir uma espécie de onda perversa, um festival de chutes, no qual os leitores só poderiam se perder.

Há quem diga que os meios de comunicação embarcaram no jogo do Planalto, que teria exagerado na avaliação, pintado o quadro com cores mais carregadas do que a realidade, numa ação ?terrorista? e diversionista, visando a desviar a atenção da população e da própria mídia da operação ?suja? por ele realizada no Congresso para impedir a CPI da corrupção.

Não acredito nisso. Tudo indica que a crise é mesmo de extrema gravidade.

Por trás dessa onda perversa de desinformação e alarmismo, está, mais, a expressão da concorrência cega e selvagem entre os órgãos de imprensa, cada qual tentando trazer na frente dos demais a definição daquilo que, de fato, ainda não se definira.

Tudo bem, até, se as informações publicadas fossem sempre corretas. Mas o problema é que esse frenesi, em especial no caso da Folha, combinou-se com um vício antigo do jornal, qual seja: sair-se bem nas ?grandes causas?, escorregar nas ?pequenas?.

Pois a Folha tem ao longo dos anos se credenciado, e merecidamente angariado prestígio ao apontar irregularidades nos poderes e corrupção, ao revelar bastidores de batalhas políticas. É campeã nas coberturas ?nobres?.

No entanto, diante de uma questão menos glamourosa -um assunto plebeu, digamos, como a conta de luz da patuléia-, a performance do jornal murcha.

Quando se trata de ?questiúnculas? do dia-a-dia, conquanto cruciais para o bolso ou o lazer do leitor -esse ser disperso, que simplesmente sustenta direta e indiretamente, com seu dinheiro, a própria independência de que o jornal desfruta para ?estourar? nas ?grandes causas?-, quando se trata do ?arroz com feijão?, o ânimo e a precisão refluem nos textos e nas investigações.

O auge da desinformação, no caso aqui em pauta, se verificou justamente no ?dia D?: na edição desta sexta-feira, dia em que o ?ministro do apagão?, Pedro Parente, anunciaria as medidas mais relevantes do plano de racionamento.

De modo taxativo, sem hesitar, a Folha arriscou forte -e, à luz (de novo perdão pelo trocadilho) das decisões anunciadas, errou feio:

  • Afirmou que a ?sobretaxa? só seria aplicada aos consumidores que não cumprissem as suas metas (errado: o aumento tarifário independe disso);
  • Não conseguiu adiantar que haverá suspensão de três dias (seis em caso de reincidência) no fornecimento para quem não cumprir a meta;
  • Falou em ?multa? de até 200%, quando claramente se trata de aumento direto e automático da tarifa nos níveis mais elevados de consumo e não de multa;
  • Além disso, uma arte que trazia ?Os exemplos de cálculo?, na capa do caderno Dinheiro, confundia ainda mais as coisas, ao propor contas nas quais estava ausente o tal redutor de 20% que, segundo o texto da reportagem, teria de ser aplicado para a definição da meta e, por consequência, da ?multa? a ser então aplicada. Uau!

Claro, como sempre, há tempo para desfazer os erros -e este fim de semana deve estar servindo para isso- e dar uma chance ao bom serviço.

Os leitores, mais uma vez, e apesar de tudo, agradecerão (até quando?). Afinal, ?alguém tem que ir atrás da coisa?, ?não pode deixar a coisa correr solta?, ?às vezes você pensa que é uma coisa e é outra?."


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