Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Uma frase sem autor

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PETER ARNETT

Quando voltei a Saigon, em 1998, 30 anos depois de cobrir a guerra do Vietnam como correspondente, fiz um longo passeio de barco no rio Mekong com um bando de turistas japoneses e australianos. Antes de chegar a My Tho, na região do Delta, nosso guia apontou para a margem direita, de passagem, num gesto de rotina: "Estão vendo aquela cidade ali? É Ben Tre, capital da província de Kien Hoa". Foi uma emoção inesperada. Não pode ser, pensei comigo, mas estava escrito em letras bem grandes no embarcadouro: Ben Tre.

Lembro-me de que Ben Tre era uma cidade tranqüila à beira do rio, no lugar onde o Mekong faz uma curva, antes de desaguar no Mar da China. Ela ficou famosa, sem querer, em 1968, por causa da frase que foi dita por um major americano, durante a ofensiva do Tet. Os vietcongs tinham ocupado Ben Tre, nos feriados do Ano Novo lunar, junto com outras 34 capitais de província. Uma semana mais tarde, retomada pelos americanos, Ben Tre estava em ruínas. Mais de mil civis morreram no bombardeio. No dia 7 de fevereiro de 1968, o major que comandou a operação deu esta desculpa ao repórter Peter Arnett, da agência Associated Press: "Tivemos de destruir Ben Tre para salvá-la".

A frase do major fez a volta ao mundo em 24 horas. Foi notícia, no dia seguinte, em toda parte. O serviço de imprensa dos Estados Unidos no Vietnam pediu ao escritório da AP em Saigon que o jovem jornalista revelasse o nome do seu entrevistado. Em vão. O presidente Johnson, em Washington, mandou que o autor da frase fosse punido. Um helicóptero cheio de funcionários desceu em Ben Tre à procura do infeliz, mas até hoje não se sabe quem era o major. Na ocasião, dois editorialistas americanos, Bill Tuhoy, do Los Angeles Times, e Joseph Alsop, do Washington Post, puseram em dúvida a autenticidade da declaração. Apesar da polêmica, Peter Arnett jamais identificou a fonte misteriosa. Nem nas suas memórias, publicadas após a guerra do Golfo e traduzidas em português com o título Ao Vivo do Campo de Batalha (Editora Rocco, 513 páginas, 1994).

Lembrei-me de Ben Tre, mais uma vez, na quarta-feira, 23/5, ao me encontrar com Peter Arnett, que veio ao Rio de Janeiro a convite da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá para uma série de encontros com estudantes de jornalismo. No seminário de que participamos, na Barra da Tijuca, perguntei-lhe se ainda se lembra do major de Ben Tre. Afinal de contas, names make news. Mesmo off record, ele se recusou a revelar o nome, alegando o compromisso de preservar o anonimato de sua fonte, mas garantiu que o major existe e mora em Chicago.

"Tivemos de destruir Ben Tre para salvá-la" ficará, de qualquer maneira, na história do século 20, como a frase que resume a estupidez de todas as guerras. Apesar das bombas, Ben Tre está viva, a exemplo de Lídice, na Tchescoslováquia, destruída por Hitler, e de Guernica, na Espanha, imortalizada por Picasso. Quando vi, em 1998, as crianças de Ben Tre indo para a escola, passou-me pela cabeça a velha pergunta de São Paulo: "Onde está, ó morte, a tua vitória?"

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