MONITOR DA IMPRENSA
ITÁLIA
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Menos de uma semana depois de eleito, o tubarão da mídia italiana Sílvio Berlusconi já rosnava em direção dos três canais da televisão estatal. Não contente com o poderoso conglomerado onde brilham três redes de TV, quer exercer o controle político sobre o resto, sem importar-se que seja um bem público.
Estava no roteiro, era perfeitamente previsível. Umberto Eco advertiu o eleitorado italiano de que isso aconteceria fatalmente (artigo reproduzido no JB, domingo, 13/5). Mas o eleitorado italiano não se importou, eletrizado pela promessa berlusconista de converter a Itália numa grande empresa da qual todos os italianos serão sócios.
O caso Berlusconi pode ser estudado sob diferentes ângulos ? as sofisticadas conexões da máfia, a degradação em curso num dos pólos da civilização ocidental ou os múltiplos disfarces do neofascismo. Todos, de alguma forma, relacionados com a realidade brasileira.
Berlusconi nos interessa particularmente porque configura, comprova e magnifica tudo o que nos últimos 30 anos tem sido escrito sobre as disfunções do sistema mediático e a sua capacidade de corroer as entranhas da democracia. Sem deixar traços, os destroços só aparecem quando a situação é irremediável.
A questão da liberdade de imprensa só é resolvida quando, concomitantemente, cuida-se da questão da integridade da imprensa. A mídia italiana é formalmente livre mas porque sua integridade jamais foi questionada. Quando, em 1788, os patriarcas da República americana firmaram os princípios (hoje universais) que tornam inviolável a liberdade de expressão, não poderiam imaginar que aquela frágil instituição fiscalizadora encarnando o poder das idéias chegaria a tornar-se um fabuloso negócio com outros fins e outros meios.
O império Berlusconi, se observado sob o ângulo estritamente empresarial, acrítico, pode ser encarado como uma história de sucesso. No entanto, representa o fracasso do regime democrático na preservação da integridade do processo informativo. Resignando-se ao papel de testemunha de um gigantismo deformado e deformador, a sociedade italiana assinou o seu próprio atestado de incompetência ou inapetência como guardiã da liberdade de expressão. A perigosa concentração deveria ter sido atalhada antes, através de mecanismos reguladores legítimos. Agora, é tarde.
Ainda não foi inventado outro modelo organizacional para a atividade jornalística senão o da empresa comercial voltada para o lucro (não estamos falando da comunicação que pode ser produzida por partidos, governos, sindicatos, grêmios, corporações etc.). Assim sendo, espera-se que os veículos dessa empresa sejam bem-sucedidos e o conjunto se expanda. Mas há limites: monopólios, cartéis ou a concentração das fontes de informação corrompem a liberdade, liquidando o seu fundamento ? a pluralidade. A Itália com Berlusconi corre o risco de deixar de ser plural para tornar-se singular. Nos dois sentidos: monolítica e diferenciada dos padrões democráticos.
Mas é preciso refletir sobre a premissa de que a atividade jornalística só pode ser exercida por uma empresa comercial. E quem o fez, com a profundidade habitual, foi o filósofo José Arthur Gianotti (Folha, 17/5, p. A-3) ao duvidar do "jornalismo moral" praticado por empresas capitalistas. Gianotti, um dos nossos pensadores mais densos, não é um neófito na crítica da mídia. E com base nas suas pesquisas e observações sentencia que "…se por um lado a mídia é guardiã da moralidade pública, de outro, por ser empresa, tende a imaginar que seu ponto de vista privativo se identifique com o ponto de vista geral… um órgão da mídia que se pensa como único instrumento da moralidade pública tende a virar partido…". Ou igreja, como diz adiante.
Este artigo está sendo publicado enquanto regresso de um seminário promovido pelo Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford e organizado em torno do tema "Brasil e o Século 21". No programa, debates sobre governo, instituições políticas, economia, questões sociais, relações internacionais, cidadania, educação e saúde. No encerramento, a mesa redonda em torno do papel da mídia na preparação do Brasil para o novo século. Significa que a discussão sobre a mídia (ou a observação da mídia) deixou de ser disciplina secundária e particular, articulando-se ao conjunto dos grandes enfoques para avaliar situações e sociedades. Curioso que esses eventos anuais em Oxford são patrocinados pelas Organizações Globo.
Se, excetuando Umberto Eco, a Itália e os italianos tivessem se ocupado em discutir a sua mídia, Berlusconi não estaria fazendo o atual estrago.
(*) Copyright Jornal do Brasil, 26/5/01
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