Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O batismo de fogo dos Bush

MÍDIA E CASA BRANCA

A inesperada lua-de-mel entre George W. Bush e a imprensa americana parece ter acabado tão subitamente quanto começou. Pouco mais de quatro meses após a posse do presidente, a troca de olhares apaixonados entre os que ocupam e os que reportam as incessantes maquinações da Casa Branca já não mais exibe aquele brilho típico de um novo romance. Ao contrário: os encontros entre o assessor de imprensa Ari Fleisher e o corpo de correspondentes, antes pontilhados por gentilezas e trocadilhos de ambas as partes, exibem agora sinais da tensão conjugal reinante na nova realidade política de Washington.

Uma indicação deste novo status quo é a transcrição publicada na edição de 5 de junho do jornal St. Petersburg Times, da Flórida, descrevendo um confronto entre esses "ex-amantes" logo após a divulgação de que Jenna e Barbara Bush, as filhas gêmeas de 19 anos do presidente, foram mais uma vez autuadas pela polícia por uso de identificação falsa para a compra e consumo de bebidas alcóolicas. Em resposta ao bombardeio inquisidor, principalmente por parte de Helen Thomas da Hearst Newspapers, uma das mais experientes correspondentes na Casa Branca, e de Major Garret, da CNN, sobre a possibilidade do presidente fazer um pronunciamento a nação sobre o assunto, Fleisher primeiro negou-se a responder alegando ser este um assunto pessoal do presidente; e, depois, reiterou uma advertência feita anteriormente de que o corpo de correspondentes na Casa Branca deveria pensar duas vezes antes de fazer perguntas adicionais referentes a Jenna e Barbara.

Esse tipo de autoritarismo paternalista para com a imprensa pegou de surpresa os jornalistas presentes, desacostumados pelas tradições democráticas do país a serem advertidos, ou ameaçados, por um porta-voz do governo. A situação se torna ainda mais contraditória vinda de uma administração republicana, já que o partido republicano foi o responsável pelo engajamento do Congresso e particulamente do Senado no processo de impeachment do Bill Clinton, motivado justamente por questões da vida pessoal do ex-presidente.

O fato é que, como em qualquer casamento de conveniência, esse esfriamento entre o primeiro e o quarto poder era de se esperar. Mas, no caso específico, a superficialidade do relacionamento com a administração de George Bush expõe à luz do dia a alienação da cobertura jornalística, aparentemente seduzida até então pelo monopólio do poder republicano sobre a Casa Branca, o Senado e o Congresso. Prova disso é o aparente descaso da imprensa ao seqüestro da política ecológica dos Estados Unidos, a começar pela rejeição ao pacto mundial assinado em Kyoto (Japão), em 1997, para o controle do chamado efeito estufa na atmosfera, seguida pela abandono das promessas feitas durante a campanha presidencial para limites nas emissões industriais de dióxido de carbono; e, por último, pelo adiamento na passagem de uma lei limitando a quantidade de arsênico presente nas reservas de água potável do país, aprovada no final do governo de Clinton.

O trágico ? ou o cômico ? da questão é que, apesar das possíveis conseqüências dessas medidas para o futuro dos Estados Unidos e do resto do mundo, o assunto só voltou recentemente aos noticiários graças à divulgação dos resultados de uma comissão do próprio governo realçando a conexão entre atividades industriais e o efeito estufa na atmosfera.

Um outro evento que passou quase despercebido da imprensa foi a revelação da falsidade das acusações de que membros da administração democrata teriam vandalizado instalações da Casa Branca e do avião presidencial antes da troca de governo [veja remissão abaixo]. Mas enquanto as acusações foram devidamente disseminadas e reportadas com destaque nas redes de televisão, jornais e revistas, ainda na primeira semana do governo Bush, o desmascaramento da farsa ? descoberta em uma investigação conduzida por Robert Barr, um membro republicano do Congresso ? recebeu tão pouca atenção que chegou a constranger Michael Getler, ombudsman do Washington Post. Ele criticou, em artigo publicado em 3 de junho, a falta de destaque concedida à notícia, resumida em uma nota de nove frases enterrada no interior do primeiro caderno do jornal.

Foi inclusive um outro membro do Washington Post, John Harris, principal correspondente do jornal na Casa Branca, quem melhor definiu o relacionamento entre o ainda novo presidente e a imprensa. "A verdade é que as coisas que este novo presidente tem feito, com relativa impunidade, teriam causado um turbilhão se tivessem ocorrido à época de Clinton", disse ele.

Ao menos superficialmente, foram então as aventuras das filhas adolescente de George W. Bush que finalmente conseguiram quebrar o encanto. Mas justiça seja feita: existem precedentes no resguardo da privacidade de familiares de políticos e personalidades importantes dos olhares intrusos da imprensa. Na Inglaterra, por exemplo, existe um acordo com a família real limitando o acesso da imprensa aos príncipes William e Henry. Nos Estados Unidos, Chelsea Clinton, apesar das incessantes desventuras de seus pais, conseguiu ter uma adolescência relativamente protegida. A diferença é que a ausência dos jovens príncipes e de Chelsea das manchetes dos noticiários se deve principalmente ao fato de que o comportamento destes não gerou nada de substancial a ser reportado, além das fofocas habituais, o que nitidamente não é o caso de Jenna e Barbara Bush.

A questão ainda não resolvida é por que só agora a imprensa resolveu apertar o cerco aos problemas familiares do presidente, já que este não foi o primeiro encontro de Jenna com a polícia. Apenas duas semanas antes desta sua última aventura policial, ela havia admitido perante um juiz sua culpa pelo envolvimento em um incidente similar, em fevereiro. Mesmo com a agravante de ela, naquela ocasião, ter chegado a usar agentes do serviço secreto para retirar da cadeia um amigo também envolvido, o assunto não resultou em nenhum grande escândalo nos noticiários além de algumas matérias perdidas nos tablóides de supermercado.

Uma possível explicação para essa mudança de comportamento é que a imprensa sentiu o cheiro de uma presa ferida e, como uma matilha de lobos, partiu para o ataque. O fator decisivo para o câmbio de atitude foi a deserção de James Jeffords, senador pelo estado de Vermont, do Partido Republicano ? passando o controle do Senado aos democratas e conseqüentemente, removendo a aura de onipotência do castelo presidencial. Com a troca de comando do Congresso, a condução da agenda política da nação passou do presidente para os 50 senadores democratas, que até então tinham por única opção encenar uma resistência passiva ao ataque legislativo republicano. É um reflexo invertido da situação durante a maior parte do governo de Clinton. E com o Senado marcando agora o presidente de perto, a imprensa aparentemente sentiu-se mais protegida e tomou coragem para dar pequenas mordidas em uma presa que antes lhe era inacessível.

A maior indicação do fim da lua-de-mel (e possivelmente o início de um processo de divórcio) entre a Casa Branca e a imprensa foi a edição de 18 de junho da revista People ? a de maior circulação dentre as revistas da AOL Time Warner, inclusive mais do que a própria Time. Com uma matéria de capa expondo os problemas das gêmeas e o confronto com os pais, People saiu com o título sarcástico "Oops, They Did It Again" (Oops, elas o fizeram mais uma vez). Mas a manchete definitiva pertenceu ao New York Post: "Jenna and Tonic", em uma referência a popular combinação alcoólica gin e tônica.

Para o casal George W. e Laura, e as filhas Jenna e Barbara, esta nova realidade é uma espécie de batismo de fogo marcando sua entrada no seleto clube reservado à famílias famosas e escandalosas, cujos membros mais ilustres são os Clintons, os Kennedys e os campeões mundiais dos tablóides, a família real inglesa.


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