Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sérgio Amaral

CABRIÃO

"O humor paulistano que incomodava os poderosos do Império", copyright Jornal da Tarde, 9/06/01

"Cabrião, segundo o Aurélio, é ?indivíduo que importuna ou molesta sem parar?. O nome deriva de Cabrion, personagem do romance Os Mistérios de Paris, do francês Eugène Sue (1804-1857), popularíssimo em sua época. Com base nessa mesma história, originalmente publicada em folhetins, Machado de Assis traduziu uma opereta que estreou no Rio de Janeiro em 1860.

Hoje a palavra, quase desconhecida, soa até estranha. Mas há pouco mais de um século designava um famoso semanário humorístico e de caricatura editado em São Paulo.

Embora tenha desaparecido na véspera do primeiro aniversário (circulou entre 30 de setembro de 1866 e 29 de setembro de 1867), o Cabrião cumpriu sua função de incomodar os poderosos durante essa curta existência, sendo um dos principais periódicos de humor e sátira feitos na capital paulista, no Império.

Este Cabrião paulista acaba de ser relançado num volume fac-similar pela Editora Unesp e Imprensa Oficial. Trata-se de uma segunda edição, sendo que a primeira saiu há quase 20 anos e está esgotada no mercado editorial. O livro tem uma introdução revista e ampliada de autoria do pesquisador Délio Freire dos Santos, que traça um interessante painel sobre a evolução da caricatura e da imprensa humorística paulistana no período imperial.

É desse texto uma saborosa citação do escritor António de Alcântara Machado (1901-1935). Referindo-se aos jornais paulistas como tristes e graves, a indicar a ?tristeza hereditária e incurável do paulista?, o cronista exemplifica: ?Não é preciso mais nada: o primeiro jornal pornográfico de São Paulo, sabem como é que se chamava? O Nu Piratiningano? Não. São Paulo em camisinha de meia? Também não. O gemido do Ipiranga? Também não. Chamava-se O Pensador. Formidável. E muitíssimo significativo.?

Dando crédito à divertida observação do autor de Brás, Bexiga e Barra Funda, podemos concluir que fazer jornalismo humorístico numa Paulicéia tão sisuda era mesmo um grande desafio. Tarefa para autênticos craques, como o trio de responsáveis pelo Cabrião: o ilustrador Ângelo Agostini (mais tarde auxiliado pelo pintor e desenhista Nicoláo Huascar de Vergara) e os redatores Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis. E se Alcântara Machado escreveu aquele comentário aos 26 anos, ?com sua irreverência de moço?, como destaca Délio Freire dos Santos, aí pode estar uma pista do sucesso do Cabrião: quando ele foi lançado, Agostini tinha apenas 23 anos, Antônio Manoel, 26 e Américo, 31.

Mas a ironia própria da juventude estava longe de ser a única credencial de seus autores, que desenvolveriam sólidas carreiras na imprensa brasileira.

Ângelo Agostini (1843-1910), com seu traço requintado e contundente, foi um dos mais importantes críticos da vida social e política brasileira através da imprensa no final do século 19. Nascido na Itália, estudou nos melhores centros de belas-artes de Paris, especializando-se em pintura. Chegou ao Brasil por volta de 1860 (há controvérsias sobre a data exata), fixando-se em São Paulo. Depois de fundar os periódicos O Diabo Coxo (1864) e Cabrião, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde colaborou em O Arlequim (1867), Vida Fluminense (1868) e O Mosquito (1869). Fundou e manteve, de 1876 a 1891, a Revista Ilustrada, publicação de desenho humorístico de grande prestígio e popularidade. Foi ainda pioneiro das histórias em quadrinhos com As aventuras de Zé caipora. Fundou Dom Quixote (1898) e está entre os criadores da primeira revista infantil brasileira, a célebre O Tico-Tico (1905). Seus últimos trabalhos foram em O Malho.

Américo de Campos (1835-1900), advogado formado pela Faculdade do Largo de São Francisco e promotor público, fez da imprensa uma tribuna para defender seus ideais abolicionistas e republicanos, os mesmos de Agostini. De 1865 a 1874 foi diretor e redator do Correio Paulistano, de onde saiu para fundar em 1875, com Francisco Rangel Pestana, A Província de São Paulo, que, com o advento da República, passou a chamar-se O Estado de S. Paulo. Em 1884, com José Maria Lisboa, fundou o Diário Popular. Proclamada a República, foi nomeado cônsul do Brasil em Nápoles, onde faleceu.

Antônio Manoel dos Reis (1840-1889), desde que se matriculou em Direito, na mesma escola de Américo de Campos, até sua formatura, em 1864, colaborou ativamente em jornais e revistas de São Paulo. Foi, além de jornalista, poeta, romancista e biógrafo, sendo autor de vários livros, entusiasticamente acolhidos pela crítica e pelo público. Residiu por algum tempo em Paraibuna, onde foi diretor de um colégio. No Rio de Janeiro, fundou órgãos católicos da imprensa local e defendeu os bispos de Olinda e Belém na chamada ?questão religiosa?, entre 1873 e 1874. Publicou o Almanak Brazileiro Ilustrado para o ano de 1876 e outros idênticos, de 1877 a 1883.

Politicamente, o Cabrião se alinhava com o Partido Liberal e com as causas mais populares da época: era republicano e abolicionista. Por isso, um dos alvos principais de suas críticas era a nobreza: no número 15, de janeiro de 1867, por exemplo, o Ministro do Império é caricaturado atrás de um balcão, vendendo comendas e títulos de nobreza, enquanto d. Pedro II observa e o Brasil, na figura de um índio, esconde o rosto, com vergonha.

Diga-se que o Imperador tinha por princípio a condescendência com as críticas recebidas, que eram feitas sob ampla liberdade. Embora não lhe faltassem conselhos e pedidos para que desse fim aos ?abusos? da imprensa, d. Pedro sempre os repeliu.

Outro alvo preferencial das setas afiadas do semanário eram os padres, em especial os jesuítas. Numa charge bastante ferina, também de 1867, Satanás tenta vender uma assinatura do jornal a São Pedro. Este aceita, sob a condição de que o Cabrião ?há de sovar os beatos, hipócritas e jesuítas, que lá pelo mundo especulam com o povo à custa da religião e do santos?.

A tolerância dos religiosos era bem menor que a do monarca: como atacava com freqüência o Diário de São Paulo, jornal conservador e católico, o liberal Cabrião acabou sendo processado (e absolvido) por ?atentar contra a moral e a religião?.

Embora não existisse censura oficial, os responsáveis pelo semanário estavam sujeitos a outros percalços como o apedrejamento da casa do redator Antônio Manoel dos Reis, por estudantes descontentes com posições do jornal. Também a censura econômica fazia suas vítimas: o governo da Província cancelou o contrato de publicação dos atos oficiais com o Correio Paulistano, também dirigido por Américo de Campos, porque este publicou em sua seção livre um protesto do Cabrião contra o chefe de Polícia.

Naquela época, o Brasil estava em plena guerra contra o Paraguai. O conflito, em sua segunda fase, já expunha as fragilidades e mazelas do regime imperial, prenunciando a chegada da República. Por sua relevância, a guerra foi um assunto recorrente do Cabrião, tendo aparecido 55 vezes em seus 51 números. Um dos temas abordados eram as denúncias de irregularidades no recrutamento dos soldados que iriam para as frentes de batalha.

O jornal saía aos domingos e seu exemplar avulso custava 500 réis, o mesmo preço de uma passagem para Santos ou de um jantar no ?Antigo Hotel das 4 Nações?. A assinatura anual para o interior da província, lançada em setembro de 1866 por 14 contos de réis, já em janeiro do ano seguinte fora reajustada para 19 contos de réis. E foi justamente a falta de pagamento dos assinantes o motivo informado pelo Cabrião para deixar de circular. O jornal despediu-se dos leitores com a promessa de voltar assim que conseguisse recompor seu equilíbrio financeiro, o que não ocorreu.

Apesar de sua curta trajetória, o semanário paulistano fez escola. Anos depois de seu fim, surgiriam, tanto em São Paulo quanto em outras províncias, pelo menos cinco outros periódicos com o mesmo título, também de vida breve.

Da experiência do Cabrião ficou o exemplo de coragem de um jornalismo fiel a seus valores e capaz de exercer com firmeza críticas que, por sua fina ironia, eram ainda mais agudas e certeiras.

Por falar em ironia, o dicionário nos reserva uma última, digna das páginas do antigo jornal. O Cabrião, em seu editorial de estréia, dizia ter sido ?criado para enforcar todos os cascudos existentes e por existir?. ?Cascudo? era a forma pejorativa que os liberais da época usavam para referir-se a seus arquiinimigos do Partido Conservador. Sendo assim, é curioso observar que a palavra cabrião tem um segundo significado, mais usado no Sul do país, que é o de anfineuro, ou…caramujo-cascudo! Com toda a irreverência, poderíamos perguntar: será que no bipartidarismo imperial as diferenças políticas não eram assim tão marcantes?

Brincadeiras à parte, são muitas as histórias dos 51 exemplares do Cabrião. E sua reedição, mais que oportuna: por meio dela se preserva o testemunho de uma época, facilitando às gerações presentes e futuras conhecer em detalhes uma página significativa da história da imprensa paulistana: lições de pioneiros que já provavam, juntamente com o doce sabor da liberdade, as dificuldades do fazer jornalístico com dignidade e ética. (CABRIÃO, de Ângelo Agostini, Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis. Unesp, 414 págs., R$ 65,00)"

    
    
              

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