Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S. PAULO

"O outro lado na lua", copyright Folha de S. Paulo, 10/6/01

"É difícil entender como um jornal consegue desrespeitar na prática, de forma explícita e concentrada, um de seus princípios mais caros.

Pois a Folha cometeu esse feito, nos oito primeiros dias deste mês de junho, com a questão do ?outro lado?.

Para que o leitor entenda do que se trata, peço licença para citar o ?Manual da Redação? do jornal (pág. 26): ?Quando o repórter dispõe de uma informação que possa ser considerada prejudicial a uma pessoa ou entidade, é obrigatório que ele ouça e publique com destaque proporcional a versão da parte atingida?.

Apenas neste mês, nove reportagens, de diferentes seções, atropelaram essa regra.
O ex-secretário da Presidência da República Eduardo Jorge Caldas Pereira foi vítima duas vezes na semana passada.

A primeira aconteceu no dia 6, quarta-feira, na reportagem ?Relatório aponta ?divergências? em IR de EJ?, a qual informava, com exclusividade, que investigação da Receita Federal encontrou ?indícios de montagem? e de ?atos nebulosos? em declarações de renda de EJ.Em cima de um texto no qual este rebatia tais acusações específicas (procedimento correto da reportagem), editou-se, no entanto, um quadro ilustrado, com resumo do suposto envolvimento do ex-secretário em outros nove casos, em diversas áreas de atuação, do escândalo da obra do TRT-SP à defesa de interesses em licitação para o Denatran.
No quadro, nenhuma linha sobre o que EJ tem alegado, em defesa de sua pessoa, nesses casos.

No dia seguinte, novo rol de acusações contra o empresário é publicado, no texto ?Comissão do Senado vai reabrir caso EJ?. Mais uma vez, nenhuma linha do ?outro lado?.

As nove reportagens a que me referi foram inauguradas com texto publicado no dia 1? intitulado ?Ministros condenam ataque a presidente no STF?.

Tratou-se da reação do governo às críticas políticas feitas a FHC pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Rubens Approbato Machado, em discurso na posse do novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello.

No texto, membros do governo o acusam de oportunismo, deselegância, desrespeito e covardia – sem que ele seja ouvido.

Deve-se deixar claro que a lista de reportagens de junho que afirmo omitirem a versão dos acusados exclui os casos de publicação tecnocrática do ?outro lado?, procedimento também desaconselhado pelo ?Manual?. Segundo o seu texto, ?isso (ouvir o ?outro lado’) não deve ser feito de forma mecânica, apenas para cumprir uma praxe técnica ou burocrática?.
O que dizer, então, do último parágrafo da retranca ?Outro lado? da reportagem ?Resíduo tóxico contamina área rural?, publicada quinta-feira?

Depois de, adequadamente, informar a posição de várias empresas que negam haver depositado resíduos numa área rural em Santo Antônio de Posse (SP), o texto conclui: ?A reportagem não conseguiu contatar ou obter resposta em algumas delas porque as empresas encerram expediente às 17h?. Ora, os jornalistas só trabalham depois das 17h?

Tratamento semelhante recebeu o material sobre a prisão do ex-presidente da Argentina Carlos Menem na edição de sexta-feira. Em duas páginas sobre o assunto, o único ?momento? em que se dá chance ao ?outro lado? está num quadro (chamado ?Relações perigosas?) no qual, entre outras informações, se resume a denúncia que pesa sobre o político. E o que se apresenta ao leitor como ?outro lado?? ?Ele nega as acusações?.

Para o jornalismo, o princípio do ?outro lado? não é uma questão menor. Ao contrário, diz respeito à credibilidade do jornal, do repórter, do editor.

Se encontra definição e regulamentação tão explícitas, é porque atende à idéia de que o leitor não apenas é capaz de tecer o seu próprio juízo sobre possíveis versões divergentes de um fato como também tem o direito de conhecê-las.

Mais do que isso: conforme adverte, novamente (perdoe, leitor), o ?Manual? da Folha, ?o outro lado também pode levar o jornalista a refazer sua apuração, ou mesmo abandonar a notícia, se trouxer uma informação procedente que desminta a perspectiva inicial da reportagem?.

O poder desproporcional que a mídia possui, sua potencial capacidade para ?assassinar? reputações ou levá-las para bem perto do fundo do poço têm de ser compreendidos plenamente por quem exerce o ofício.

Descartada a má-fé, pode-se concluir, com base na irregularidade jornalística sobre o ?outro lado? deste início de mês na Folha, que tal entendimento nem sempre vigora – o que faz gente bem-intencionada descambar, desastrosamente, para a absoluta irresponsabilidade."

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"Mágica de ACM", copyright Folha de S. Paulo, 10/6/01

"Virou lugar-comum dizer que o ex-senador Antonio Carlos Magalhães é figura que desperta ódios ou paixões, sem meio-termo. Isso talvez se justifique pela sua radicalidade verbal e comportamental.

O que não parece justificável, porém, é o espaço que a mídia deu nos últimos meses para o ex-parlamentar baiano – e, pior, continuou a dar depois de sua renúncia, de modo acrítico, sem questionamentos à altura do seu ?trombone?.

De novo, na última semana, o líder político frequentou, mais do que qualquer membro do ?ministério do apagão?, as páginas dos jornais.

Houve entrevistas na TV, repercussão ampla para acusações sem provas (a mais pesada, sem dúvida, sendo a feita contra o presidente da República, apontado como ladrão pelo seu ex-aliado).

Houve espaço, inclusive, para apreciações de cunho ?psicológico? do ex-senador, que chamou o compositor Caetano Veloso de ?egocêntrico?. E por aí afora.

Reconheça-se em ACM um talento midiático excepcional. De modo realista, porém, o que ele de fato representa que seja proporcional a essa difusão?

Em artigo publicado no ?Correio Braziliense? no dia seguinte à renúncia, o cientista político Joviniano Neto trazia dados relevantes sobre o poderio eleitoral carlista na Bahia.

A última eleição a governador em que um candidato obteve maioria, na Bahia, foi a de 1986, na qual Waldir Pires, adversário do carlismo, ficou com o apoio de 55,5% dos votantes. Quando ACM se elegeu, em 1990, foi com o correspondente a 27,3% do eleitorado. Nesse pleito, acrescenta o professor, o traço mais destacado foi que as abstenções, os votos brancos e os nulos representaram 46,2% dos eleitores. Em 1994 esse total subiu para 53%.
Afirma ainda o interessante artigo que, em 1998, o candidato do carlismo, César Borges, venceu com 30,5% do eleitorado, enquanto a soma de abstenções, brancos e nulos atingiu 56%.

O jornalista Clóvis Rossi, colunista da Folha, lembra, além disso, que ACM obteve a cadeira no Senado com pouco menos de 2 milhões de votos, em um eleitorado de pouco mais de 7 milhões (ou seja: 27,4%). ?É um bom número?, comenta Rossi, ?mas daí a ser o ?rei da Bahia?, como o tratamos, vai a distância que separa jornalismo de propaganda?.

Outro elemento: ACM perdeu muito cacife com a renúncia. É inegável que, hoje, quem representa o PFL não é ele.

Como político, por sua história e atuação no nível do poder durante décadas, por sua liderança regional, ACM deve ser ouvido, sim. Embora golpeado, não se enterrou politicamente.

Como qualquer outro cacique, tem direito, no jornal, a expor o seu ?outro lado?.Mas tudo isso deveria acontecer dentro de seu verdadeiro e atual escopo.

Em vez disso, por que a mídia, a Folha inclusive, tem cedido tanto e tão visivelmente ao espetáculo vazio?

Especula-se sobre eventuais relações promíscuas entre ACM e setores do jornalismo. Pode ser verdade, mas isso ainda precisaria ser provado – como, aliás, as acusações feitas por ele contra adversários.

No caso da Folha, a única forma de resolver a questão é recolocar as coisas – no caso, o político ACM de hoje – no seu devido lugar."

    
    
                     

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