ASPAS
MEMÓRIAS
"Correio da Manhã", copyright O Globo,
16/06/01
"O ?Correio da Manhã? foi, durante 50 anos, num tempo em que não existiam rádio e TV, o jornal político mais influente do Brasil. Era mais que um jornal. Era uma escola de jornalismo, uma fortaleza política, uma trincheira de combate, quase sempre na oposição. Fundado pelo gaúcho Edmundo Bittencourt e desenvolvido por seu filho Paulo, comemoraria hoje o seu centenário. Faliu em 1974.
Entrei para o ?Correio da Manhã? em 1953, aos 17 anos, como repórter, primeiro de polícia, depois de artes plásticas, em seguida na política, de onde nunca mais saí, embora promovido a editorialista. Ia de bonde da casa de meus pais, em Laranjeiras, e saltava em frente ao jornal, na Rua Gomes Freire. Infelizmente, quando cheguei, o chefe da revisão, que fazia o mesmo trajeto, acabara de se aposentar. Foi por isso que só conheci Graciliano Ramos pelas histórias de seus hábitos e ranzinzices que dele contavam os mais antigos, como a parada obrigatória no Bar Marialva, para uma talagada de cachaça ao chegar e outra ao sair, já tarde da noite, e os recados mal-humorados que mandava aos redatores que tomavam liberdades com a língua portuguesa.
Edmundo Bittencourt, maragato, trouxe dos pampas as rixas com o infindável governo chimango de Borges de Medeiros e a tendência oposicionista que exerceu contra os presidentes Campos Sales, Rodrigues Alves e, sobretudo, Hermes da Fonseca, no qual a influência de Pinheiro Machado, representante de Borges de Medeiros na capital, era muito grande. Chegaram ao ponto de travar um duelo na Praia do Leme, do qual Edmundo saiu com um desmoralizante ferimento nas nádegas.
O ?Correio? nunca deixou de tomar posição nos debates nacionais, muitas vezes de forma injusta. Foi assim que se opôs a Oswaldo Cruz e à vacinação obrigatória contra a varíola. Duvidava até da validade científica da vacina, que qualificava de pus das vacas. Na campanha contra a eleição de Arthur Bernardes publicou as famosas cartas ofensivas às Forças Armadas, que eram falsas. Apoiou a Revolução de 1930 para, em seguida, opor-se a Getúlio Vargas. Defendeu a candidatura de José Américo contra Armando Salles e, logo no pós-guerra, usou uma entrevista do ex-candidato, crítico de Vargas, concedida ao repórter Carlos Lacerda, para acabar com a censura à imprensa.
Hoje, os grandes jornais descobriram que seus leitores são de todos os partidos e, em épocas eleitorais, procuram manter neutralidade. No passado, eram abertamente partidários, adotando candidatos. O ?Correio?, como os demais grandes jornais, foi declaradamente favorável às candidaturas do Brigadeiro Eduardo Gomes, tanto contra o general Dutra como contra Getúlio Vargas. Foi, também, favorável a Juscelino Kubitschek mas, como não conseguia ser governista muito tempo, com ele rompeu quando anunciou a intenção de mudar a capital para Brasília. Violentamente contra João Goulart, publicou dois editoriais de primeira página às vésperas do golpe militar: ?Basta? e ? Fora?. Dias mais tarde passava a criticar a revolução. A oposição que fez ao regime, inclusive abrindo espaço para as denúncias de torturas a presos políticos que Hermano Alves e eu fazíamos, acabou por provocar um boicote à publicidade empresarial no jornal. Hermano e eu fomos eleitos deputados federais pelos nossos leitores, em 1966, mas o jornal acabou falindo.
Tudo o que sei de jornalismo foi no ?Correio da Manhã? que aprendi. Naquele tempo, os chefes de reportagem tinham tempo e paciência para desasnar os jovens repórteres. No ?Globo? era famoso o Alves Pinheiro, baiano acariocado, que fumava imensos charutos e tratava os repórteres com paternal rigor. No ?Diário Carioca?, o domador de focas era Pompeu de Souza, que se mudou para Brasília e acabou eleito senador. No ?Correio?, os mestres eram Luiz Alberto Bahia, secretário da redação, e Maurício Caminha de Lacerda, meio irmão de Carlos, com quem não se dava. Maurício lia os meus textos com um lápis vermelho na mão. Dizia:
– Um repórter tem de responder no texto a algumas perguntas simples: o que aconteceu, onde, como, quem praticou o ato e, se possível, por que razões. E tem de escrever com o máximo de simplicidade. Se não sabe escrever claro, leia Machado de Assis.
Procurei consumir uma dose dupla de Machado. A aplicação não me salvou de o Maurício muitas vezes dizer que eu tinha miolo de tamanduá bandeira, animal por cuja capacidade intelectual tinha particular desprezo.
No ? Correio? aprendia-se também pelo exemplo. Quando fui baleado em Alagoas, o redator-chefe, Antonio Callado, foi me substituir. Explicou-me que um chefe não pode mandar um repórter correr perigo se não está disposto a substituí-lo. É uma regra da Marinha Britânica. Callado foi o único inglês que conheci na vida real. Saído direto de um livro de Rudyard Kipling. No entanto, ninguém foi mais brasileiro do que ele."
"A volta do
Cabrião, o jornal que fez rir o Império", copyright O
Estado de S. Paulo, 12/06/01
"A rotina não era muito agradável na cidade de São Paulo em 1866: com uma indústria ainda incipiente, os pouco mais de 10 mil habitantes dispunham de recursos limitados e não havia iluminação suficiente, nem sistema de canalização de águas, serviço de esgotos ou calçamento regular. Também faltava à capital um abastecimento estabilizado de água potável. Mesmo assim, São Paulo era sobretudo um burgo de estudantes, os únicos a arrancar a capital da província de seu sono colonial, promovendo uma agitação cultural. Foi esse grupo de acadêmicos que motivou o lançamento do Cabrião, o mais antigo e conhecido periódico humorístico e de caricaturas editado em São Paulo, durante o Império.
Foram apenas 51 edições, lançadas aos domingos, entre 1866 e 67. Um período em que nenhum político ou cidadão deixava de consultar suas páginas, em busca de uma análise crítica e irônica da atualidade brasileira. Abolicionista, republicano e anticlerical, o Cabrião investia contra os principais atos do imperador Pedro II, especialmente a participação brasileira na Guerra do Paraguai – em 51 números, o conflito foi tema de 55 citações.
À frente do projeto, o cartunista Ângelo Agostini (para muitos, o mais importante do Brasil no século 19) e seus desenhos adaptados à litografia, além dos jornalistas Manoel dos Reis e Américo de Campos que, em 1875 e ao lado de Francisco Rangel Pestana, participou da fundação do jornal A Província de São Paulo que, com o advento da República, passou a se chamar O Estado de S.Paulo.
?Eles retrataram não apenas um partido, mas uma sociedade num momento crucial, como foi o da segunda fase da guerra contra o Paraguai e da constatação de que o regime imperial, particularmente pelos reflexos lançados à província, facilitava a chegada da República. Tudo se chocava, da moda à fidelidade ao regime, do transporte – trem versus cangalha de burro -, divertimentos, convenções, práticas sociais?, observa o escritor Hernâni Donato, na apresentação da nova edição fac-similar, lançada agora pela Editora Unesp e a Imprensa Oficial (408 páginas, R$ 60).
O trabalho só foi possível, porém, graças à pertinência do advogado Délio Freire dos Santos – profundo conhecedor da história paulistana e pesquisador autodidata, ele descobriu, na biblioteca herdada do pai, uma bem conservada coleção completa do Cabrião. ?Foi um grande achado, pois, além da minha, sei da existência de apenas outras três?, comenta Santos que, entusiasmado, estudou os exemplares do semanário e, para a nova reedição, escreveu um ensaio sobre o humor presente na política e nos jornais do País, chamado ?Primórdios da Imprensa Caricata Paulistana: o Cabrião?.
Trata-se de um curioso inventário das publicações que adotaram a ironia para retratar a sua época, desde os diversos pseudônimos adotados por D. Pedro I até a citação do romance História do Brasil, de Robert Southey, que simplesmente começa no 7?. capítulo e exibe sua dedicatória na página 31. O melhor do ensaio, porém, está concentrado no Cabrião.
Apesar da periodicidade efêmera, o semanário, que era liberal, atacava com freqüência o Diário de São Paulo, jornal conservador e católico. A religião, aliás, era um dos alvos preferidos – a atenção dos redatores do Cabrião voltava-se contra frades e jesuítas, principalmente os do recém-fundado Colégio São Luís, de Itu. Em uma das caricaturas, intitulada ?Caridade Cristã?, um padre espanta aos pontapés um grupo de pessoas. A legenda justifica: ?perdida a eleição, o santo levita mete os pés nos pobres votantes a pretexto de não poder mais com tanta pobreza?. Por conta dessa e de outras investidas, os jornalistas foram processados por atentado à moral e aos bons costumes.
?O curioso é que, apesar de não poupar críticas, os jornalistas tinham hábitos religiosos?, comenta Délio Santos. ?O Américo de Campos, por exemplo, cantava no coro dos padres.? O Cabrião também não perdoava seus principais leitores, como os estudantes, criticados pela constante desordem que promoviam na cidade.
Apesar de admirado, o semanário não conseguiu resistir mais um ano por causa de problemas econômicos. O preço de 500 réis para cada número avulso transformava o periódico no mais caro publicado em São Paulo, durante o Império. O último número, aliás, de 29 de setembro de 1867, termina com um pedido aos assinantes que estavam com os pagamentos atrasados para acertarem suas contas. ?A ameça de não mais ser publicado não sensibilizou os leitores, pois o Cabrião nunca mais voltou a circular?, conta Santos.
"Folhetim era amolador e impertinente", copyright
O Estado de S. Paulo, 12/06/01
"Pirracento, amolador, impertinente – assim era Cabrion, um personagem dos Mistérios de Paris, de Eugène Sue – uma história típica do gênero conhecido como folhetim, assim designado inicialmente porque não ocupava a página inteira dos jornais. Precedendo certo sensacionalismo que só viria mais tarde, com a reportagem policial, o folhetim começou a aparecer nos jornais semanais que eram, na metade do século 19, ainda excessivamente doutrinários, cheios de artigos pesados e bem diferentes do noticiário temperado, leve e variado dos jornais mais modernos.
Foi mais ou menos assim com o Cabrião, um semanário humorístico publicado em São Paulo durante os anos de 1866 e 1867. Respondendo à intrínseca vocação paródica do humor brasileiro, o nome escolhido foi facilmente reconhecido pelo seleto público leitor da época, pois o famoso folhetim de Sue já havia sido publicado no Brasil 20 anos atrás. Cabrião não era um folhetim, mas possuía seções que guardavam uma certa semelhança do gênero, adotando narrativas que terminavam, invariavelmente, como o clássico ?continua no número seguinte?, mantendo algum suspense no leitor, como A História do Cabrião, Sobre a Romã Encantada, O Penúltimo Cavaco, etc. – colunas que se repetiam em vários números. A difusa estrutura folhetinesca também pode ser vista na própria dupla de calungas desenhada por Agostini – Cabrião – impertinente e gozador – e Pipelet – sistemático, regrado e ortodoxo – que se repetiam em todos os números, comentando a vida política na província ou retratando episódios da Guerra do Paraguai. Eram oito páginas, sendo quatro de textos e quatro de caricaturas e desenhos – as pitorescas litografias de Ângelo Agostini – que convidavam os leitores para cabrionar, literalmente, para brincar ou, encher a paciência dos outros, induzindo-os a uma espécie de lúdica cumplicidade na celebração da trapaça e da ambigüidade.
Ambigüidade muito mais presente no humor visual, já que foi exatamente uma referência à morte que gerou um processo contra o jornal, por ?atentar contra a moral e a religião?: uma cena que mostrava um regabofe entre mortos e vivos alcoolizados, confraternizando-se em frente do Cemitério da Consolação. O processo, articulado pela facção católica dos conservadores, acabou não dando em nada, mas recebeu uma ferina resposta visual: uma caricatura de página inteira, com um grande baile de esqueletos e o Cabrião no trono, sob o dístico inspirador do comediante, ridendo castigat mores.
Os exageros dos redatores em parodiar Os Mistérios de Paris aparecem no renitente anticlericalismo das charges e das anedotas, sobretudo aquelas destinadas a satirizar o poder de jesuítas e clérigos já que, numa época em que não havia autonomia da Igreja em relação ao Estado – a política e os negócios não eram incompatíveis com o sacerdócio. Na verdade, o antijesuitismo de Sue vinha a calhar, transformando-se em instrumento para o jornal satirizar o estado de coisas existente na província, estigmatizando sobretudo os políticos conservadores – aqueles para os quais, na curta definição de Nabuco, ?a conservação principal era a do governo em suas próprias mãos?.
Editado pelos jovens Américo de Campos, Ângelo Agostini e Antônio Manoel dos Reis, o pequeno tablóide filiava-se à linguagem dos liberais do Império que, nesses anos, já começavam a administrar dissidências e cisões (incluindo as dos abolicionistas) em suas fileiras. O Cabrião pode mesmo ser considerado uma espécie de antecessor da fundação dos ?clubes radicais? que, nas diversas províncias, reuniram as facções de liberais insatisfeitos com as intervenções do Imperador, particularmente com aquela última, em 1868, que dissolveu o gabinete liberal e manteve Caxias no comando do Exército. Muitas das sátiras e ironias do Cabrião possuem essas peculiaridades políticas, com chaves mais difíceis para o leitor decifrar.
Mas grande parte do humor do pequeno semanário dirigia-se também para a moda, os costumes e os comportamentos cotidianos, além, naturalmente, de referências irônicas – sempre atuais – à Guerra do Paraguai e aos perversos efeitos do recrutamento militar sobre a população em geral. A moda feminina – com os famosos sonetos dedicados à ?saia-balão?; a festa do entrudo, com a condenação dos ?lançadores de água? que provocavam defluxos e resfriados nos foliões; assim como os impagáveis ?Mandamentos do homem de tretas?, ?Decálogo de um Bêbado? ou ?Regras de Economia? são temas recorrentes nas divertidas páginas do Cabrião. Algumas vezes envergonhado – tapando o rosto com as mãos para não ver a corrupção na venda de títulos monárquicos – noutras vezes abobalhado, com um monte de medalhas e condecorações alfinetando seu peito nu – o Brasil é sempre representado, pelo desenho notável de Agostini, como um pobre índio – um Tibiriçá humilhado, transformado num títere nas mãos de Pipelet ou do próprio Cabrião.
Mas não há nada de agressivo nem de ressentimento explícito no humor de Cabrião. Ainda sob forte impacto de um iluminismo civilizador, que procurava fazer proselitismo de alguns códigos de comportamento, o humor dessa época acreditava, ainda, que o riso persuasivo era, por princípio, um riso decente e não ofensivo. Quando convidava os leitores para cabrionar, o pequeno jornal parecia insistir que o simples ato de compartilhar o riso era até mais importante do que o conteúdo específico ou o impacto imediato de qualquer piada ou caricatura. Rir junto significava participar de uma cultura comum, uma forma de comunicação sobre assuntos de interesse mútuo. O humor ajudava assim, ainda que timidamente, a levantar interdições, a construir um espaço público – um campo onde poderiam ser discutidos todos os tipos de idéias, fossem elas políticas, sociais ou morais.
O Cabrião representou um momento importante – e pouquíssimo conhecido – da construção de uma possível linguagem, verbal e visual, do humorismo brasileiro. Com uma introdução enciclopédica de Délio Freire dos Santos, o leitor pode ter em mãos um registro precioso e divertido, de uma publicação que catalisou, ao mesmo tempo, o prestígio do folhetim entre o seleto circuito de leitores da época e o clima de ebulição política, que começou a jogar mais lenha na fogueira do caldeirão do fim do Império. (Elias Thomé Saliba é historiador, professor associado do Departamento de História da USP e autor de ?As Utopias Românticas?)"