[Esta matéria foi publicada na edição de 18 de maio do Los Angeles Times, um dos mais importantes jornais americanos. É reproduzida praticamente na íntegra. Eu podia fazer algumas retificações e complementos ou adaptar o estilo americano ao brasileiro – no uso do pronome, por exemplo. Faço apenas uma observação: que Ronaldo Maiorana indique qual a confidência que seu pai me fez e que eu tornei pública. Foi essa a justificativa que apresentou ao jornalista americano para me agredir, três anos e meio atrás. Sem pretender cometer vitupério, gostaria de propor ao distinto leitor a seguinte questão, a propósito da matéria a seguir: por que o jornal de maior prestígio da costa oeste dos Estados Unidos deu tanto espaço para uma publicação de aparência tão humilde quanto o Jornal Pessoal e ignorou os jornais poderosos, de aparência tão faustosa? (Lúcio Flávio Pinto)]
Belém, Brasil – Em 42 anos de reportagens sobre a Amazônia, Lúcio Flávio Pinto tem sido amaldiçoado, chutado, machucado, repetidamente ameaçado de morte e processado 33 vezes. Mais da metade desses processos foram impetrados pelo seu antigo empregador, O Liberal, o maior e mais importante veículo de comunicação da região, cujo patriarca da família foi um dos melhores amigos de Pinto.
Com ex-amigos como O Liberal, Pinto dificilmente precisa de inimigos, apesar de tê-los bastante. Políticos têm tentado calá-lo ou comprá-lo por anos, sem sucesso. Os militares brasileiros têm sido alvo da caneta afiada de Pinto. Criadores de gado, fazendeiros e madeireiros, que pretendem devastar a bacia de rio Amazonas e convertê-la em pastagem e área para cultivo da soja, um processo que poderia ajudar a alimentar o planeta com fome de proteínas, mas que, segundo cientistas, causaria a emissão de toneladas de gases na atmosfera.
No momento, há uma empresa estatal de energia, a Eletronorte, impulsionando a construção de mais barragens que iriam aumentar a oferta de empregos, mas alagariam terras e prejudicariam a forma de subsistência de colonos e pescadores. E um conglomerado de multinacionais sugando ricos veios de alumínio, carvão e aço da maior floresta tropical do mundo.
Durante sua longa carreira, o repórter – aos 58 anos de idade, ele se compara ao antigo personagem mitológico grego Prometeu, mas ainda se recusa a carregar um telefone celular – tem enfrentado todos eles. Com isso, ganhou reputação como uma criatura até mesmo mais rara que o peixe-boi amazônico, em extinção: um jornalista autoritário e teimoso, que não se amedronta ao confrontar alguns dos mais poderosos interesses do Brasil
‘As pessoas sabem, quando começam uma briga comigo, que eu nunca irei me submeter a seus poderes’, disse Pinto com sua voz medida e suave. ‘Somente as pessoas que dizem a verdade me impressionam.’
Nem o seu isolamento nem suas contendas legais o têm impedido de escrever e publicar o Jornal Pessoal, uma publicação bimestral de 2.000 exemplares, com 12 páginas. A produção do jornal tem sido feita a partir de sua modesta casa, ao longo de 20 anos, depois que desistiu de trabalhar para O Liberal, em 1987. O jornal vive de sua renda para cobrir seus custos. Não traz comerciais porque Pinto, autor de muitos livros, acredita que, aceitando até mesmo um centavo de promoção comercial, mancharia a integridade de sua publicação.
Terra abençoada
Separado de sua esposa, com três dos quatro filhos adultos morando em outros lugares, Pinto demonstra uma devoção monástica ao seu trabalho solitário. Inspirado pelo lendário jornalista investigativo americano I. F. Stone (que também publicou um jornal pessoal), Pinto estuda relatórios obscuros do governo, a contabilidade da companhia de alumínio e outras minúcias em busca de detalhes, com resultados significativos. Ele publica toda carta que recebe, mesmo que tenham 10 páginas, cheias de ameaças.
Entre os desafetos de Pinto, há um grupo atualmente em relação ao qual ele se acautela: juízes locais, que, ele acredita, irão colocá-lo na cadeia se ele não comparecer ao tribunal por conta de suas inúmeras disputas legais. Há dois anos e meio, Pinto deixou de ir a Nova York receber um prêmio da Imprensa Internacional do Comitê de Proteção dos Jornalistas, porque temia que se deixasse Belém, mesmo por um dia, seus inimigos, imediatamente, anunciariam uma nova data de julgamento e o condenariam enquanto estivesse fora da cidade.
No Brasil, assim como em outras partes da América Latina, jornalistas são muito mais vulneráveis a processos legais do que seus colegas nos Estados Unidos. Mesmo que tudo que escrevam seja verdade, eles podem se deparar com acusações criminais e civis se alguém achar que isso pode denegrir sua reputação, prejudicar suas finanças ou ofendê-los de outra forma, às vezes definido vagamente. Além do mais, o país ainda vive sob a censura da Lei de Imprensa de 1967, baixada pelos militares que governaram o Brasil de 1964 a 1985 (26 dos processos contra Pinto são baseados nessa lei)
Apesar de Pinto ter sido condenado em quatro dos processos contra ele (três dos quais subseqüentemente expirados porque a corte de apelação não conseguiu cumprir prazos), ele diz: ‘Nunca provaram nada de errado em nenhum dos fatos essenciais’. Ele ainda pode ir preso por conta de um processo criminal no qual foi condenado, por referir-se a um empresário local (já falecido) como um ‘grileiro de terras’.
Pinto vê os processos, os quais consomem 80% de seu tempo, como uma tática para desviar sua atenção e dissuadi-lo da prática do jornalismo.
‘Eu não aceitarei mentiras e há um esforço para me calar usando o sistema judiciário, porque me matando teria um impacto muito grande’, diz. Ele não parece abater-se por esses riscos, mas admite uma preocupação diária. ‘Eu tenho tido muitos problemas porque esqueci de usar o protetor solar.’
A reportagem agressiva de Pinto impõe respeito nessa quentíssima cidade portuária de 1,6 milhões de habitante na costa atlântica. ‘Você pode não acreditar em tudo que ele diz, mas quem mais é o independente dos jornalistas locais?’, diz David Mc Grath, professor de geografia da Universidade Federal do Pará. ‘Eu acho que a Amazônia é abençoada por ter um jornalista desse tipo.’
Honestidade pode ser mortal
Mas no Pará aqueles que falam a verdade para o poder com freqüência pagam com suas próprias vidas. O Estado, um dos seis [oito] que formam a Amazônia brasileira, é notoriamente conhecido como sendo um dos mais violentos do país, atrasados e corruptos, uma percepção enfatizada pelo assassinato, em 2005, da missionária americana Dorothy Stang, que estava ajudando pobres agricultores em suas disputas com criadores de gado.
Parcialmente por causa desses escândalos, a área tem sido alvo de observação nesses últimos anos. Interesses internacionais (muitos brasileiros diriam ‘interferência internacional’) na região amazônica estão aumentando, ajudados pelo aumento da ansiedade pela biodiversidade e aquecimento global.
Ainda uma coisa de que esta superabundante região ainda carece é cobertura jornalística em detalhes de seu entrelaçado desafio humano e ambiental. Até mesmo o maior jornal diário do Brasil como Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo (para o qual Pinto trabalhou como correspondente), geralmente têm mandado somente um repórter para cobrir a vasta região, de acordo com Marcelo Beraba, presidente da Organização Brasileira de Jornalismo investigativo.
A voz mais poderosa da mídia na região pertence ao grupo O Liberal, o qual publica um influente jornal com o mesmo nome, com uma circulação diária de 35.000 exemplares. Também publica um jornal semelhante a um tablóide, Amazônia, recheado de notícias esportivas, fofocas e crimes e comumente mostrando uma mulher de biquíni na capa. Mas a maioria dos brasileiros obtém notícias pela televisão. Para muitas pessoas, jornais, apesar de relativamente baratos, ainda são caros.
Beraba diz que as áreas inacessíveis e de ocupação perigosa têm um número limitado de repórteres como Pinto, que cresceu numa família de classe média em Santarém, no meio do caminho entre as duas maiores cidades da Amazônia brasileira, Belém e Manaus. ‘Em Belém e no Pará é como se ele fosse o único’, diz Beraba. ‘Não há outra fonte diversificada e independente na cena jornalística.’
Apesar de Pinto ser bem conhecido na Amazônia Oriental, poucos brasileiros nas megacidades do Rio de Janeiro e São Paulo, centenas de milhas ao sul, reconheceriam seu nome. Ao invés de seus muitos contatos profissionais, ele é um autodidata, um único homem em operação, dependente, acima de tudo, de sua inteligência e vigor.
Profissionalmente, ele combina investigação científica de fatos mensuráveis com igual paixão da dinâmica humana (ele estudou sociologia na universidade). Evita gravadores e computadores, dependendo das anotações e de sua prodigiosa memória. Recusa-se a carregar o celular porque eles ‘brutalizam’ as pessoas.
Para lidar com o estresse, pratica exercícios respiratórios. ‘Eu sou uma pessoa muito controlada’, ele diz, ‘mas quando estou só extravaso dou murros na parede, grito e danço. Especialmente com música. Música é minha terapia.’ Requiem, de Mozart, é seu favorito em particular.
Quem poderia imaginar que Pinto quase teve o seu Mozart a todo volume há três anos, quando foi fisicamente atacado pelo diretor editorial do jornal O Liberal, Ronaldo Maiorana, e dois guarda-costas enquanto almoçava com amigos. De acordo com Pinto, Maiorana deu-lhe um soco e depois que caiu ao solo os três homens repetidamente o chutaram. ‘Se eu não matá-lo agora, o farei mais tarde!’, Maiorana gritava. O ataque veio depois de dois dias em que Pinto publicou uma história de três páginas sobre a família e propriedades dos Maiorana.
Em seu escritório no O Liberal, Maiorana, 39, parecia contrito, reconhecendo que sua ação foi ‘estúpida’ e ‘errada’. Sentado a poucos metros de onde ele mantém um quadro em homenagem à memória do pai, Maiorana reconheceu que a história de Pinto foi baseada em fatos corretos.
Mas ele disse que Pinto traiu a confiança de seu pai, Romulo Maiorana, ao revelar coisas ditas em confidência. (Pinto desistiu de O Liberal depois da morte do velho Maiorana numa discussão sobre um testemunho político escrito por Pinto que o jornal se recusava a publicar.)
‘Eu me ofendi não por causa de mim mesmo, mas porque ele falou sobre assuntos muitos íntimos’, disse Maiorana, cuja mãe viúva, irmão mais velho e irmã também administram os negócios da família. Além de dois jornais, os Maiorana também controlam uma estação de TV regional, emissora de radio, uma empresa a cabo e um portal na Internet.
‘Ele me via como um filho’
Falando com Maiorana e Pinto fica claro a rivalidade quase-familiar no coração de suas disputas. ‘Ele sempre sonhou em ter um filho jornalista’, diz Pinto sobre o velho Maiorana. ‘Ele nunca teve um filho jornalista porque seus próprios filhos não eram jornalistas bons o suficiente. Então ele me via como uma espécie de filho adotivo.’
Ennio Candotti, 65 anos, professor universitário e ex-presidente de Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, descreve os processos na justiça (incluindo os 18 impetrados pelo grupo O Liberal) contra seu amigo de longa data como ‘abusos’ disparados pelas elites de ‘um estado anárquico’ que ‘não se ajustaram à democracia e justiça’. Eles resolvem seus conflitos através de meios financeiros e através da força porque não podem resolvê-los pela palavra escrita ou a razão e os meios democráticos’, diz.
Embora com recursos muito limitados, o Jornal Pessoal regularmente publica matéria que não aparece na mídia brasileira. Como exemplo, Pinto aponta para uma história explicando como a interrupção temporária de uma hidrelétrica na Amazônia alguns anos atrás causou um aumento nos preços do alumínio na bolsa de metais de Londres, porque o Brasil estava permitindo que um consórcio brasileiro-japonês de alumínio comprasse energia com tarifa subsidiada pelo governo.
Para cobrir a Amazônia adequadamente, Pinto diz, um repórter tem que saber sobre assuntos ambientais, negócios, hidrelétricas, contabilidade, física, química e gerenciamento de água (que observou na Holanda). ‘O único mérito do jornalista é fazer a pergunta certa’, ele diz. ‘A dúvida é matéria-prima para um jornalista.’
A região deve crescer, ele acredita, se perder seu status centenário de pobreza e atraso. A questão é: como? Mas primeiro, ele diz, o mundo deve abandonar a ilusão de que a Amazônia ‘é o lugar do Pecado Original’, um Éden perdido que de alguma forma pode ser recuperado.
Ele é cético a respeito dos clichês contemporâneos sobre ‘desenvolvimento sustentável’, que ele acredita ser ‘não mais do que ideologia até agora, usado como placebo, para amenizar a opinião pública internacional’ e acalmar a consciência dos que ele chama consumidores ‘coloniais’, ambos dentro e fora do Brasil. Fazer com que os humanos aprendam ‘como usar’ a Amazônia ‘sem destruí-la’ é o maior desfio da região, ele diz.
Ajudar seus leitores a entender essas complexidades é o que faz Pinto escrever e lutar na justiça. E se sua missão às vezes pareça ter um toque quixotesco, ele sugere que seus algozes, não ele, caiam para enfrentar a realidade.
‘A atitude daquele que não quer encarar os fatos e a verdade é muitas vezes comparado à avestruz,’ ele diz. ‘Eu não acredito nisso também, então pesquisei um pouco e descobri que a avestruz enfia a cabeça na areia não para não encarar os fatos, mas por causa de sua alta sensibilidade.’ Com a cabeça dentro do buraco ela pode determinar a direção de onde o perigo está vindo, captando o som.
‘Eu mergulho a cabeça na terra, como uma avestruz, porque eu quero saber o que está acontecendo’.
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Jornalista