DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"O leitor Carlos Câmara não entende que os jornais ?noticiem ?factos? que vão acontecer? e considera que isso é ?uma inversão do conceito de notícia?, que, em sua opinião, ?implica o relato de algo que aconteceu?. C. Câmara dá um exemplo: ?Na tarde do dia 16 de Maio, o Presidente da República visitou o Hospital Miguel Bombarda. Na manhã desse dia, o DN tinha, na primeira página, a notícia: ?Sampaio ataca política de saúde?.? Entre outras questões que coloca, Carlos Câmara pergunta se a ?antevisão dos factos é jornalismo?. A pergunta remete para as práticas jornalísticas e as relações entre jornalistas e fontes de informação. Questões complexas, algumas das quais já aqui afloradas e que, naturalmente, não podem ser aprofundadas neste espaço.
Num regime democrático, os media noticiosos são, ao mesmo tempo, um serviço público, uma indústria e uma fonte de poder. A sua principal função é servir o público. Para isso, exercem o seu dever de informar, para que se cumpra o direito do público de ser informado. Entre as funções que lhes são atribuídas encontra-se a de fornecer informação sobre os acontecimentos que se produzem à nossa volta. Para isso, os jornalistas procuram, seleccionam, interpretam e fazem circular a informação. Além disso, os media noticiosos asseguram a comunicação no seio da sociedade, constituindo-se em fórum de debate dos problemas que interessam aos cidadãos. Compete-lhes, também, fornecer uma imagem, tanto quanto possível rigorosa, do que se passa no mundo.
A questão colocada pelo leitor C. Câmara situa-se na primeira das funções acima enunciadas: o jornalista observa, selecciona, interpreta e faz circular informação que considera relevante. No caso em análise, o discurso do Presidente da República incidia sobre um dos sectores mais sensíveis da vida dos portugueses, constituindo tema privilegiado de intervenção pública do Presidente – a política de saúde -, razões suficientes para que o jornal pretendesse preparar a sua cobertura, a fim de proporcionar aos leitores uma melhor apreensão das palavras do Presidente. É, pois, normal que o DN tenha tentado saber, com antecedência, o que o Presidente iria dizer.
Habitualmente, os jornalistas têm acesso aos discursos oficiais antes de eles serem proferidos, por iniciativa dos próprios autores ou dos seus serviços, que, assim, pretendem dar-lhes tempo para preparar as suas peças. Na maioria dos casos, essa antecipação é feita sob a forma de ?embargo? até à hora a que os discursos são proferidos. A antecipação da distribuição não significa, contudo, antecipação da divulgação. Trata-se, apenas, de facilitar o trabalho das redacções. O respeito pelo embargo é, aliás, um ponto de honra do jornalista.
No caso a que se refere o leitor, a jornalista não só teve acesso antecipado ao discurso como, tudo indica, obteve autorização para a sua publicação. É um facto que a antecipação de um discurso, nomeadamente se ele contiver matéria de interesse, garante-lhe uma dupla mediatização: torna-se notícia, antes e depois de ser pronunciado. Corresponde, pois, a uma convergência de interesses: do jornalista, que pretende surpreender os leitores e antecipar-se aos seus concorrentes; e da sua fonte, que pretende valorizar o acontecimento.
O leitor afirma, também, que a primeira notícia (dia 16) é ?invenção da jornalista? e que ?o próprio título não explicita que é uma mera antevisão do acontecimento?.
Consultado pela provedora, o director do DN, Mário B. Resendes, afirma que ?o discurso efectuado pelo Presidente da República deu plena razão ao trabalho jornalístico de antevisão efectuado por Graça Henriques?.
A provedora confrontou a notícia publicada no dia em que o Presidente proferiu o discurso e a do dia seguinte, com o texto integral (disponível na Internet) e não encontra ?invenções da jornalista?. Na notícia do dia 16, além da antecipação de partes do discurso, a jornalista Graça Henriques introduz, a título de enquadramento, excertos de declarações do Presidente proferidas em 1999 por ocasião da Semana da Saúde. Contudo, analisando as duas notícias, verifica-se que o conhecimento antecipado do discurso não levou a um tratamento mais aprofundado do mesmo.
Relativamente ao uso, no título, do verbo ?atacar? no tempo presente – ?Sampaio ataca (…)? -, corresponde a um exercício de simplificação que, como acontece quase sempre, lhe diminui o rigor. O uso do tempo futuro – ?vai atacar? -, como pretendia o leitor, teria sido mais apropriado, dado que o discurso seria proferido algumas horas depois de o jornal ter saído.
Apesar de constituir uma prática muito utilizada, a antecipação de discursos contém uma parcela de artificialismo que choca alguns leitores. Esta prática constitui uma maneira de os jornais tentarem acompanhar a velocidade de propagação da informação pelos meios audiovisuais e Internet, relacionando-se também com problemas de concorrência entre jornais. Contudo, a qualidade da informação nada ganha com estratégias de antecipação de documentos, que apenas se justificam para permitir a análise aprofundada de temas importantes, tendo em vista uma melhor apresentação aos leitores.
A ambiguidade do processo de antecipação de discursos, sem uma justificação claramente compreendida, prejudica a relação de transparência entre o jornal e os leitores.
O tratamento mediático de temas políticos data de há mais de um século. Os compêndios de história dos media retêm algumas datas:
Foi em 1830 que teve lugar a transmissão, por telégrafo, do primeiro discurso presidencial. Por seu turno, a primeira entrevista com uma figura pública realizou-se em 1859, e em 1928 teve lugar a primeira grande transmissão radiofónica de uma convenção política.
Estes dados respeitam aos EUA e constam do livro The Image: a Guide to Pseudo-Events in America (1961), do historiador norte-americano Daniel Boorstin, a quem se deve o conceito de ?pseudo-evento? – acontecimentos criados e planeados para serem cobertos pelos media.
Boorstin fornece outros dados históricos relativos à comunicação política no seu país. Aqui ficam alguns:
No dia 28 de Abril de 1961, os assessores do Presidente Kennedy deram à imprensa o discurso que ele proferiria no dia seguinte, em Chicago.
Os jornais do dia 29 – dia em que o Presidente discursou – divulgavam o texto que tinha sido distribuído. Contudo, o Presidente decidiu abandonar esse texto e falar de improviso. Uma edição de última hora do üMO4ýChicago Sun-TimesüMO0ý, titulava: ?Kennedy falou de improviso?.
A notícia do abandono do discurso escrito sobrepôs-se ao conteúdo do discurso proferido. Boorstin interroga-se sobre qual dos discursos era o ?real?.
Os jornais empenharam-se, sobretudo, em descobrir os motivos que teriam levado ao abandono da primeira versão do discurso.
A ?revolução gráfica? – que permitiu gravar, transmitir e disseminar imagens impressas de pessoas, paisagens e eventos – tornou-se uma tentação para os jornalistas, levando-os a preparar notícias, com antecipação, de coisas que era suposto virem a acontecer. Quando surgiram os media com notícias de hora a hora, ou de meia em meia hora, os diários com várias edições e os semanários, tornou-se uma necessidade encontrar notícias.
Segundo Boorstin, nos anos 30-40, o Presidente F. Roosevelt tornou-se um fazedor de pseudo-eventos e de sound-bites, que enchiam as primeiras páginas dos jornais, transformando as conferências de imprensa, habitualmente rituais sem interesse, na maior instituição nacional criadora de notícias, através de um processo informal de conversa e troca de ideias. Sabendo como os jornalistas precisam de notícias, Roosevelt ajudava-os a construí-las, orientando-as segundo os seus próprios interesses.
O senador McCarty (1947-57) inventou a conferência de imprensa da manhã para anunciar a conferência de imprensa da tarde. Os repórteres acorriam e preparavam os títulos para os jornais do dia seguinte com o anúncio das revelações que McCarty faria à tarde, a uma hora que não permitia a divulgação no dia seguinte. Os jornais eram, assim, alimentados com antecipação de notícias que muitas vezes falhavam."