Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vozes roucas, ouvidos surdos

MÍDIA E DEMOCRACIA
(*)

Fernando Pacheco Jordão (**)

Dez anos atrás, quando a epidemia de cólera estava no auge, os então governadores de Pernambuco, Joaquim Francisco, e da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, trocavam informações. Pernambuco já tinha dezenas de casos e o governo alertava para o perigo. E a Bahia? "Aqui eu só dei um caso", respondeu ACM. O que ele queria dizer é que não permitira a revelação pela mídia da situação real, tão grave quanto em Pernambuco, por isso autorizara a divulgação de um caso apenas. Bons tempos aqueles. A opinião pública que se danasse, o importante era preservar a imagem do governante.

O fato me vem à lembrança a propósito de algumas reações em episódios recentes como a violação do painel de votação do Senado, a saída do ministro da Integração Nacional e a questão da corrupção, porque elas expõem exemplarmente o descompasso que ainda existe entre os costumes e comportamentos políticos e as demandas da sociedade, alimentadas por sua exposição cada vez maior à informação e sua prontidão para a cobrança. Tais reações sinalizam que a maior parte dos políticos ainda não se deu conta de que os tempos do cólera eram outros, perduravam resquícios da ditadura e a mídia apenas esboçava seus novos compromissos com a comunidade.

Se não, como explicar os comentários de alguns personagens das últimas cenas brasilienses? Um (Arruda) comparou a cobertura jornalística das sessões do Conselho de Ética ao Coliseu, sentindo-se, coitado, um cristão entregue às garras e dentes dos leões. Outro (ACM) declarou-se vítima de "linchamento" pela mídia, depois de ter-se valido durante anos de seu poder de manipulação da informação. Até o relator (Saturnino) saiu-se com um "caça às bruxas" quando se referiu à pressão da opinião pública.

O senador Fernando Bezerra foi mais longe ao justificar por que anunciara sua saída do Ministério da Integração Nacional durante uma entrevista coletiva, e não em despacho com o presidente Fernando Henrique. "Afinal, neste país é a mídia que demite", disse ele. E o Palácio do Planalto se esforça para consertar sua imagem, sem perceber que não há como mantê-la intocada se as mãos responsáveis por comprovados atos de corrupção são vistas pela sociedade como as mesmas que costuram as alianças de sustentação do governo. Assim, espanta-se quando, as pesquisas de opinião indicam que ? mesmo depois da bem montada ofensiva de comunicação sobre a nova corregedoria da sra. Anadyr ?, a maioria da população continua cética quanto ao empenho do governo contra a corrupção. De ouvidos surdos à "voz rouca das ruas", ainda não compreendeu a classe política que não há marqueteiro que dê jeito no impacto da exposição ao contraditório ao vivo e em cores ? algo, no caso dos senadores, a que não estavam habituados se não no ambiente restrito do plenário.

Acabaram os bobos

"Palco da mídia"… "circo da notícia" ? rotulem como quiserem, mas o fato é que os meios de comunicação tornaram-se a grande arena pública, em que tudo, não apenas a política, é escancarado à curiosidade do país: tanto as últimas grosserias do Ratinho como os lances da separação do casal Suplicy ou as lágrimas (as falsas e as verdadeiras) do senador Arruda. Tudo fica exposto: não só cenas de assassinato e tortura, atrocidades em rebeliões de presos, corpos decapitados, mas também traficantes deportados, réus confessos, fraudadores apanhados com a boca na botija e senadores flagrados na mentira. Nada escapa ao escrutínio do público, pronto para processar e hierarquizar as informações segundo seus interesses e com uma capacidade de discernimento que às vezes também jornalistas tendem a subestimar.

E é nesse caldo de cultura que políticos, com poucas exceções, tentam se movimentar à moda antiga ? na dissimulação, no jogo de meias verdades (ou meias mentiras), sobretudo velhos coronéis da política oriundos da ditadura militar ou novatos criados na atmosfera rarefeita de povo de Brasília. Seria ingenuidade desconhecer que no terreno da cobertura política atuam alguns jornalistas suscetíveis à manipulação e a jogos de interesses, deixando-se impregnar pela atmosfera de conspiração e intrigas de Brasília (não se pode esquecer, por exemplo, que as indiscrições e gabolices de ACM sobre a lista de votação no Senado vinham de longa data e tiveram a cumplicidade da mídia, quando as desqualificava como simples fofocas).

Mas não há como ignorar o papel que a mídia desempenha hoje como instrumento democrático, em escala de sintonia com a opinião pública muito acima da capacidade de percepção do mundo político, espantado com a reação pública à exposição de suas mazelas.

O povo não é bobo, fora a Rede Globo ? era o refrão do tempo da ditadura. Hoje, poderia ser outro: o povo não é bobo, nem a Rede Globo… nem as TVs e rádios em geral, jornais e revistas, cada vez mais atentos na resposta às demandas de suas clientelas.

(*) Copyright Valor Econômico, 27/6/01.

(**) Jornalista, sócio-diretor da FPJ-Fato, Pesquisa e Jornalismo

    
    
                     

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