Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A salvação cotada em dólar

MÍDIA E RELIGIÃO

Muniz Sodré (*)

In God we trust. A frase ("em Deus nós confiamos") é, como se sabe, o velho dístico da moeda norte-americana. Vale a lembrança agora que ficamos sabendo pela imprensa que uma igreja evangélica da Barra da Tijuca, Zona Sul do Rio de Janeiro, realiza os seus cultos em inglês. A explicação é que, assim, também fiéis estrangeiros poderão beneficiar-se das pregações.

Até aí, nada demais. O interesse maior da notícia está na revelação de que o grande êxito da iniciativa deve-se à presença de brasileiros. Entrevistada, uma fiel confessou nada entender do que ali se prega, mas que achava "lindo o som da língua inglesa".

Há muito tempo vêm afirmando os sociólogos que, junto com a multiplicação de seitas na cena urbana contemporânea, o fenômeno religioso autonomiza-se cada vez mais frente à transcendência (o sagrado, o além-do-natural) e à própria sociedade. A vivência religiosa torna-se estilo de vida, há seitas para todos os gostos, assim como no mercado de consumo se diversificam a oferta e a demanda. Crença e mídia passam a ter mais afinidades do que supõe a vã teologia.

Na verdade, teologia e marketing, já há algum tempo, andam de mãos dadas. O fenômeno "mítico-religioso" não é suscitado pelo suposto poder dos conteúdos informativos, mas de um lado (a) por uma lógica mercantil, profético-moralista e autoescatológica, que troca o antigo Bem ético pelo bem-estar individualista, associando salvação e consumo. "Suntuoso é o caminho para a salvação ? consuma e sinta-se bem!", ironiza John Carroll, crítico de cultura.

De outro lado (b), pela articulação da rotina cotidiana dos indivíduos (onde antes a religião tradicional intervinha com seus discursos reguladores) com o efeito (quase divino, à beira do sobrenatural) de simultaneidade, instantaneidade e globalidade característico da intervenção das modernas telecomunicações no tempo-espaço, que contrai por aceleração da temporalidade o espaço físico convencional e tende a abolir o tempo por eternização do instante sem duração, confluindo para uma visão de ciberespaço próxima à concepção cristã de paraíso etéreo. E ainda (c) pela ideologia que vê na suposta racionalidade comunicacional o "melhor dos mundos".

Na verdade, toda e qualquer experiência subjetiva do sobrenatural ou da transcendência, a que se dê o nome de religião, depende fortemente de práticas mediadoras, que variam do ritual a formas escritas. Com referência a este último aspecto, costuma-se associar o surgimento do mercado de livros impressos na Europa quinhentista à expansão do protestantismo.

No âmbito da comunicação massiva do final do século 20, reprisa-se a velha combinação da prática mediadora com a vivência mística, só que agora sob a égide do medium, tecnologicamente afim a características divinas, como onividência e ubiqüidade. Sob o influxo da retórica midiática ou dos híbridos de sacerdotes-atores-homens-de-marketing, os novos crentes são seduzidos, como os já antigos, pela promessa de um democrático acesso direto à divindade.

Língua franca

Tudo isso cheira a dólar. Nos Estados Unidos, desde o final dos anos 70, como intróito à era neoconservadora que resultaria no economicismo de Ronald Reagan (a chamada reaganomics), floresceu uma espécie de "capitalismo cristão" coadjuvado pelo tele-evangelismo eletrônico. Debruçada sobre a derrocada de valores tradicionais (a "onda" juvenil, o peso ideológico dos imigrantes, a expressão pública das minorias etc.) e centrada no messianismo do espetáculo místico, a "igreja eletrônica", ou ainda "igreja comercial", passou a constituir verdadeiros impérios televisivos. Neste contexto, tudo se vende e se compra ? da fé à redenção.

A princípio, o fenômeno parecia exclusivamente norte-americano. Hoje, entretanto, a imprensa escrita comenta às vezes sobre uma espécie de "guerra santa" entre as igrejas no Brasil, com o objetivo de montar cada uma o seu próprio império de rádio e televisão.

O fenômeno é particularmente conspícuo no âmbito das novas seitas pentecostais. Além de consolidar o status quo doutrinário das mais antigas, a mídia eletrônica impulsiona o crescimento de novas, arregimentando centenas de milhares de adeptos em especial nas regiões mais empobrecidas e marginalizadas.

É comum que os líderes religiosos ou pastores sejam versados em técnicas de marketing ou mesmo provenham desse campo profissional. É logicamente conseqüente que o inglês, língua franca do comércio e da tecnologia mundial, termine entrando como parte da estratégia "marqueteira". Pouco importa, no fundo, que se entenda ou não o que se prega. Assim como a mídia comercial, tudo isso tem mais a ver com "massagem" do que com mensagem. E, pelo que se observa, tem muito a ver com práticas eleitorais. Deus nos salve.

 

    
    
              

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