Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fotógrafo que sonha em preto e branco

LUIZ CARLOS BARRETO

Luís Edgar de Andrade

O jogo da seleção brasileira contra a França, no velho estádio de Colombes, em Paris, continuava zero a zero. Era uma tarde gelada de domingo, há muito tempo, no ano de 1963. Sentados na grama molhada, junto ao goleiro adversário, entre os fotógrafos, Luiz Carlos Barreto, Carlos Leonam e eu tremíamos de frio. E nada. Até que Pepe foi escalado para cobrar um pênalti. Barreto pôs-se de pé a fim de fotografar o lance. Ao levantar-se, tirou a vista de um colega francês, que lhe deu um cascudo para obrigá-lo a sentar-se. O futuro cineasta reagiu na hora, derrubando com um murro o outro fotógrafo. Resultado: o Brasil ganhou o jogo de um a zero, mas eles dois saíram de campo sem a foto do dia.

Por volta de 1958, o mesmo Barreto, Luciano Carneiro e eu rodávamos, às seis da tarde, pela avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. Os motoristas dos outros carros começaram a apontar para o teto do pequeno Morris. Barreto apertou o freio e abriu a porta para verificar o que tinha havido. Para espanto geral, sua Leika M-3 estava sobre o carro no meio do trânsito. Ele tinha esquecido a máquina fotográfica, ali em cima, ao conversar com alguém, na calçada da rua do Livramento, quando saía do trabalho na revista O Cruzeiro. Atravessamos o túnel João Ricardo e a avenida Presidente Vargas, fomos pela praia do Flamengo e Botafogo, percorremos mais dois túneis e chegamos a Copacabana, 15 quilômetros depois, sem que a Leika despencasse no chão. Está provado, assim, que os bons fotógrafos têm um anjo da guarda para protegê-los contra a lei da gravidade.

Dezenas de histórias como estas passaram pela minha retina, numa sucessão de imagens, rebobinadas pelo destino, ao folhear o livro Passagem ? A Memória Visual de Luiz Carlos Barreto (Editora Objetiva, 223 páginas, R$ 90,00) que foi autografado no Paço Imperial do Rio de Janeiro, na segunda-feira, 2/7. Se daqui a 250 anos alguém quiser saber como era a vida do homem na face da terra, entre a primeira e a segunda metade do século 20, bastará passar os olhos, com atenção, nas fotos imortais do grande cearense, hoje conhecido como o pai do Cinema Novo.

Gagárin disse que a terra é azul, mas Barreto, quando sonha acordado, sonha em preto e branco. A inocência, o desejo, o amor, o regozijo e, depois, a fome, o tédio, a angústia e o desespero, isto é, a imensa gama do sentimento humano, tudo isso foi documentado por ele, na mocidade, usando as nuances que existem entre o branco total e o preto absoluto, produzidas pela luz natural, que é a luz divina.

Durante seu trabalho de repórter, exercitou, como mestre, o dom de imobilizar o tempo nos limites do espaço. É que os instantes de beleza são para sempre. Veja-se, por exemplo, no seu livro, a moça da página 109, que caminha, contra a luz, num beco de Sevilha, aureolada de sol, com os olhos no infinito. Isso foi ? e não foi ? num dia remoto de 1954. Quase 50 anos se passaram, em cima da foto. Apesar disso, a moça caminha, ainda hoje, no retângulo de 35 milímetros, como se fosse agora.

A emoção de Barreto está no olho. Suas fotos, portanto, transcendem qualquer legenda. Dizem que, ao se tornar cineasta, ele parou de fotografar. É um engano. De fato, não carrega mais a sua Leika no pescoço. Mas, como todos nós, seus discípulos, continua a fotografar com os olhos, em casa e na rua, ao longo do dia. São milhares e milhares de fotos virtuais que Deus coleciona, no seu arquivo, para mostrar aos anjos no fim dos tempos.

    
    
              

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