GRAMPOS
"Pelo telefone", copyright O Estado de S. Paulo, 8/07/01
"- Alô.
– Alô?
– Sim, alô.
– Quem fala?
– Depende.
– É o …
– Shh. Sem nomes. Sem nomes!
– Mas quem fala?
– Sou eu.
– ?Eu? quem?
– Eu, p…!
– ?P…??
– Inicial de palavrão. Para o caso da nossa conversa sair na imprensa.
– Por que nossa conversa sairia na imprensa?
– E eu sei lá o que você vai dizer?
– Preciso saber com quem eu estou falando.
– Diga o que você quer dizer, depois eu digo se sou eu ou não.
– Assim não é possível!
– Foi você quem ligou.
– Vamos fazer o seguinte. Eu digo um nome. Se for o seu, você fica em silêncio. Se não for…
– Ah, é? Pro meu nome ficar gravado? Diga um pseudônimo. Se eu gostar do pseudônimo, fico em silêncio. Aí você diz o que quer dizer.
– Mas como eu vou saber se estou falando com a pessoa certa?
– Problema seu. De qualquer maneira, não fará diferença. Ninguém vai saber quem é você. Será uma conversa de anônimos. Quem estiver gravando não poderá nos identificar. Você pode dizer o que bem entender.
– Mas espera um pouquinho. Se tem alguém gravando, sabe de quem é este telefone. Sabe que só pode ser eu falando.
– Mas por que você acha que é o seu telefone que está grampeado? Obviamente, é o meu.
– Por que não pode ser o meu?
– O seu? Francamente! Por que alguém iria querer grampear o seu telefone?
– Mas você nem sabe quem está falando!
– Não interessa. O telefone grampeado é o meu.
– Nesse caso, não adianta esconder seu nome. Quem estiver gravando sabe que é você o dono do telefone.
– Arrá! Mas isso não prova que voz gravada é a minha. Enquanto meu nome não estiver na fita, esta conversa não me compromete, meu caro.
– Que conversa?
– Esta.
– E por que esta conversa iria comprometê-lo?
– Não sei. Você ainda não disse nada!
– E não vou dizer enquanto não souber quem está falando.
– Está bem. Diga só o assunto. O tema da conversa. Se fizer sentido, eu faço ?ran-ran? e aí você sabe que está falando com a pessoa certa.
– Você faz…?
– Ran-ran.
– Então vamos lá. Correia.
– Correia. Hmmm. Como é o primeiro nome?
– O quê?
– Do Correia.
– Não tem primeiro nome. Não é gente, é coisa.
– Correia, certo. Continue.
– Você disse que ia…
– Ran-ran. Ran-ran!
– Meu assunto com você é correia. Falta de. No equipamento que você me vendeu.
– Falta de correia no equipamento que eu lhe vendi. Isto é linguagem cifrada, certo?
– Cifrada? Não.
– Espera um pouquinho… É o Adolfo que está falando?
– É.
– Por que não disse logo, cara?
– Você disse ?sem nomes, sem nomes?…
– É que hoje em dia, meu querido… Sabe qual é a nova definição de paranóia?
– Qual?
– Avaliação criteriosa da situação.
– Boa, boa… Mas olha, é sobre aquele cortador de grama que você…
– Adolfo, não leve a mal.
– O quê?
– Vamos marcar um encontro para falar sobre isso? Pelo telefone…
– Você acha que fica suspeito?
- Nunca se sabe, nunca se sabe…"
"Grampos, imprensa e Judiciário", copyright O Estado de S. Paulo, 9/07/01
"De algum tempo para cá, o uso de grampos como material jornalístico virou ferramenta de trabalho. A reportagem foi sendo substituída por dossiê.
Os injustiçados já não olham para os tribunais, mas para os jornais. Os inimigos evitam o confronto direto, pois conhecem a eficácia de uma falsidade bem plantada. Viu-se a imprensa transformada num perigoso instrumento de vinganças, mas, ao mesmo tempo, numa instância prática de realização da justiça.
A publicação de grampos pode ser tudo isso: denúncia verdadeira ou chantagem vil. Impõe-se, conseqüentemente, um redobrado esforço na qualificação das matérias que chegam às redações. É preciso ter cuidado com a fonte que voluntariamente procura o repórter. Dossiês, mesmo quando carregados de indícios relevantes, são apenas pistas para uma adequada investigação. Não são (ou não deveriam ser) matéria para edição. Nada, nada mesmo, substitui o dever da apuração. O grampeamento continua sendo um delito.
Independentemente das tentativas de minimizar a gravidade da sua prática, continuo achando que o melhor fim não justifica quaisquer meios.
Um perigo ronda o trabalho da imprensa: a síndrome da concorrência. A preocupação com a perda de um furo está na origem de inúmeros deslizes. O bom jornal é aquele que tem a coragem de esquecer a concorrência e optar pela informação de qualidade. É sempre melhor usar a cautela do que ter de recuar no dia seguinte. Feitas tais ressalvas e separado o joio do trigo, gostaria de salientar a relevância das sucessivas denúncias contra a corrupção que têm batido à porta das redações. Fatos recentes evidenciam a importância da denúncia jornalística como instrumento de luta contra a impunidade. Alguém imagina, por exemplo, que a apuração e punição dos principais beneficiários do esquema de corrupção armado na construção da sede do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo teria sido possível sem a pressão de um autêntico jornalismo de denúncia? É óbvio que não. O Brasil, graças também à varredura feita pela mídia, está passando por profunda mudança cultural. Esse processo, no entanto, tem provocado alguns conflitos institucionais. Sobressai, entre eles, um crescente desgaste no relacionamento entre o jornalismo e o Judiciário. Alguns, certamente indignados com os excessos da mídia e o vedetismo de certos membros do Ministério Público, criticam o presumível poder de destruir dos meios de comunicação.
A informação é a base da sociedade democrática. Por isso, precisamos melhorar os controles éticos da notícia, combater as injustas manifestações de prejulgamento e a precipitação que pode desembocar em autênticos assassinatos morais. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de criticar o formalismo paralisante do Judiciário, responsável maior pela desconfiança com que a sociedade encara a possibilidade da realização da justiça. Em nome do amplo direito de defesa, importante e indispensável, a efetivação da justiça pode acabar se transformando numa arma dos poderosos e numa sistemática frustração dos mais desprotegidos. Aplicam-se aos desvalidos os rigores da lei e se concedem aos criminosos do colarinho-branco as vantagens dos infinitos recursos que o Direito reserva aos que podem pagar uma boa defesa.
A crise do Judiciário tem empurrado a imprensa para uma função que não é sua. O cidadão, descrente da eficácia do caminho judicial, procura o repórter. Vivemos uma profunda distorção, uma superposição de papéis. A crise, no entanto, não se resolve com atitudes corporativas. É preciso discutir um novo conceito de espaço público que permita uma convivência civilizada entre o Poder Judiciário e o mundo da informação. Os meios de comunicação, independentemente de suas mazelas e equívocos, têm travado uma saudável discussão a respeito dos seus conflitos éticos. Não vejo, no entanto, o mesmo debate na área do Judiciário.
O formalismo jurídico, marcado pela pura e simples aplicação das leis, não tem conseguido enfrentar problemas que ultrapassam as balizas fixadas pelo positivismo que está por baixo de inúmeras decisões. Será que o Judiciário, refém de uma estrutura obsoleta e morosa, está em condições de responder ao desafio dos crimes ecológicos, da delinqüência infanto-juvenil, dos escândalos políticos, do financiamento ilegal de partidos, etc.? Penso que não. Nós, profissionais da imprensa, estamos tentando fazer a nossa parte.
Esperemos que o Judiciário, sem dúvida constituído por inúmeros homens de bem, faça a sua. Só então, sem corporativismo e arrogância, romperemos o conflito que tem marcado as relações entre duas instituições básicas para o processo democrático: imprensa e Judiciário. (Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética Jornalística, é representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil)"