Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma carta, um artigo e um direito

 

DEFESA DE GAROTINHO

Sergio Mazzillo, advogado do governador
Anthony Garotinho, declinou de participar do programa Observatório
da Imprensa na TV
, de 17/7/01. Justificou sua ausência
por intermédio da carta reproduzida abaixo. Em seguida, vem
publicado artigo de sua autoria recusado por dois jornais e acolhido
pelo OI.

Prezado Dines:
Recebi, lisonjeado, o convite para participar do seu programa na
TVE. Não posso, entretanto, aceitá-lo. Como Advogado
devo atuar com discrição, evitando, ao máximo,
o debate na imprensa acerca das teses jurídicas referidas
nas causas que patrocino, mesmo quando tais discussões possam
ser " conceituais ".

O Estatuto da Advocacia, uma Lei Federal, dispõe claramente
sobre o assunto, definindo como " infração disciplinar
" a veiculação habitual de " alegações
forenses ou relativas a causas pendentes " ( artigo 34, XII
). Assim, a meu ver, o debate, apesar da companhia ilustre, estaria
voltado, essencialmente, para uma questão já ajuizada
e que diz respeito a Cliente de meu Escritório. Os comentários,
por certo elegantes, não deixariam de associar-se à
questão atual e notória.

Na verdade, caro Dines, advogo ainda tradicionalmente: discreto
e apaixonado pela tribuna, mas no Fôro. Sobre o caso já
falei o suficiente.
Não resisto, contudo, à ponderação jurídica,
de modo a que você saiba, com exatidão, o meu pensamento
sobre a garantia constitucional da " liberdade de imprensa
". Na verdade, a Constituição fala em liberdade
de " pensamento " e, daí, de início, afirmo
que este direito não é um privilégio da "
imprensa ", mas do cidadão ( artigo 5º, IV). A
Constituição assegura, também, a inviolabilidade
das " comunicações telefônicas " (
artigo 5º, XII ). Outro privilégio do cidadão.
A legislação ordinária reitera as garantias
maiores da Constituição e, no caso da escuta telefônica,
repete o preceito da Lei Maior, exigindo a autorização
judicial para que a escuta se consume. Sem a ordem do Juiz togado
a gravação clandestina é crime ( Lei no. 9.296,
de 24.7.96, artigo 10 ).

Assim, não vejo como o jornal ou a televisão recebam,
sabe-se lá de quem, " fitas de gravação
de conversas telefônicas ", declaradamente feitas de
forma ilícita e queiram divulgá-las. Impedir tal divulgação
não é censura, mas um direito de qualquer um. Postular,
em Juízo, que a imprensa não propague o que foi obtido
criminosamente não é cercear a liberdade de pensamento,
mas preservar o princípio da legalidade, consumado na privacidade
da comunicação telefônica.

E mais, se nem em Juízo a prova ilícita é admitida
( Constituição, artigo 5º, LVI ) como aceitar
que a imprensa use como fonte de sua notícia o ato criminoso
? Ultimamente, bisbilhotar a conversa alheia virou moda e os jornais
e a televisão, a todo momento, se valem da ação
criminosa de terceiros para ilustrar suas reportagens. Os danos
causados ao cidadão pelas manchetes escandalosas são
inestimáveis e não há reparação
que compense.

Minha opinião pode ser resumida, talvez, no conhecido axioma:
o direito cessa quando o abuso tem início.

Aliás, opinar sobre o assunto já era minha intenção
há mais tempo. Até ofereci ao JB e ao Globo um artigo
( anexo ). Sem sucesso. Quem sabe, agora, o interesse exista. Seria
uma questão de equidade, pois as declarações
que li nesses últimos dias pecaram por serem unânimes
em favor dos jornais e da televisão. Os jornalistas, seus
convidados de hoje, se apreciarem o texto, poderão publicá-lo.

Receba o meu afetuoso abraço e transmita minhas cordiais
saudações aos participantes do programa. Rio de Janeiro,
17 de julho de 2001.[Sergio Mazzillo,
Advogado, mestre em Direito pela Universidade da Pennsylvania
]



Sergio Mazzillo (*)

Ao se aposentar como articulista do The New York Times, A.M.
Rosenthal escreveu:

"Jornalistas, por vezes, ferem
pessoas apenas por reportar os fatos. Eles não precisam,
porém, cometer crueldades desnecessárias, o que é
válido também para os articulistas. Quando terminar
uma história, eu diria, leia-a e substitua seu nome pelo
do sujeito do texto. Se a matéria fizesse sua mulher chorar,
mas não contivesse insinuações, não
fizesse menção a termos pejorativos e não o
agredisse gratuitamente, seriam notícias, e não intrigas
sensacionalistas. Então a matéria poderia ser impressa,
pois como repórter sei que o autor foi justo. Caso contrário,
tente novamente, pois não queremos ser juizes de ninguém."
[6 de novembro de 1999].

O comentário do famoso jornalista merece destaque. Entre nós
já se tornou corriqueiro que os órgãos de imprensa,
disputem as manchetes escandalosas dos fatos de repercussão
nacional. As notícias provêm, na maioria, das fontes
anônimas, dos dossiês apócrifos ou das gravações
clandestinas de conversas telefônicas. A partir daí,
repórteres, editores e articulistas bombardeiam a todos com
infindável série de reportagens e comentários.

E não nos esqueçamos que o estardalhaço em
torno do escândalo do dia se mistura com aquelas manchetes
ditas do gosto popular: a vitória do Guga; o jogo da seleção
com o Catarata Futebol Clube; o cineasta que sustenta o traficante
etc., etc…

Por vezes, causa espanto a imprecisão da notícia ou
da opinião. Liberação de verba orçamentária
é confundida com apropriação do dinheiro público;
decisão judicial com favorecimento; bazófia do político
espertalhão com crítica séria; violação
de sigilo de conversa telefônica com prática jornalista
aceitável.

É o caso de perguntar ao chefe da redação se
uma gravação telefônica ilegal, que não
serve de prova em Juízo ( Constituição Federal,
artigo 5º, incisos XII e LVI ), se presta para dar credibilidade
à sua notícia. Uma singela comparação
do modo de proceder da imprensa brasileira com suas congêneres
americana ou européia deixa a desejar. E muito ! A crise
pela qual passou, por exemplo, o Presidente americano foi tratada
– lá, é lógico ! – com mais seriedade. Hoje,
o vazamento das informações pelo staff do Promotor
especial é questionada na justiça, assim como a gravação
da conversa telefônica que a tudo deu origem ( cuja autora
identificou-se, voluntariamente ). A responsabilidade jornalística,
entretanto, não impediu, como se sabe, que a sociedade americana
de tudo fosse informada ( e não sugestionada ).

Falta, antes de tudo, um pouco de classe, de categoria, ou melhor,
de educação, para publicar o que é do interesse
de todos: o fato ! A busca da verdade e não do rumor; a precisa
identificação da origem da notícia ( ainda
que se proteja a fonte ) e não da especulação;
o emprego da linguagem correta e não do excesso de adjetivos,
deveriam ser oferecidos ao cidadão que tem o direito à
informação. E, principalmente, abandonar o apego às
gravações criminosas, que denigrem mais a quem delas
se utiliza do que aos seus protagonistas.

O resultado do procedimento jornalístico incompetente é
conferir ainda mais desalento ao cidadão de bem. Já
não basta o comportamento deplorável da " elite
" política e empresarial: os seus desmandos são
contados de maneira quase incompreensível e sempre espalhafatosa.
O cidadão, que deve, em última análise, formar
seu juízo acerca das ações do político
inescrupuloso, do tecnocrata indigno ou do empresário desonesto,
recebe informação incompleta, as vezes viciada, ou
calcada na ilegalidade das ações de terceiros.

A liberdade de expressão, bem inalienável do cidadão
e nunca do dono do jornal, garantida na Constituição
( artigos 5º, inciso IV, e 220 ), estará vulgarizada
a persistir o costume do escândalo, do quase linchamento do
personagem apontado como corrupto, criminoso, ou lá o que
seja, sem um mínimo de trabalho jornalístico amparado
na investigação, na pesquisa, na entrevista pessoal
( e não telefônica, como é praxe ). A condenação
prévia do envolvido na notícia, significa a usurpação
do direito ao devido processo legal ( Constituição,
artigo 5º, incisos LIV e LV ). A propalada ineficiência
do Judiciário não autoriza a imprensa destruir – ou
" salvar ", conforme o caso – reputações.
A presunção de inocência é postulado
do estado de direito. Só a prova admitida em Juízo
e a sentença judicial definitiva servem para condenar.

Muito se terá a ganhar com o noticiário competente
e sóbrio. O cidadão, bem informado, terá sua
opinião. A sociedade como um todo será beneficiada
e resultará aprimorada. Este o papel da imprensa livre, de
qualidade, que não deturpa, pelo excesso de alarde, os acontecimentos
que noticia e que não arrasa, de antemão, com o envolvido,
cuja reputação dificilmente será restaurada
no caso de sua inocência.
Os editores, repórteres e articulistas bem poderiam pensar:
e se fosse eu, o que sentiria minha mulher ?

(*) Advogado, mestre em Direito pela
Universidade da Pennsylvania

    
    
                     
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