ASPAS
RUTH DE SOUZA
"Uma vida entre nãos e homenagens", copyright Valor Econômico, 13/07/01
"Nas ruas do Rio de Janeiro, as pessoas comemoravam o fim da Segunda Guerra Mundial. No teatro municipal da cidade, a novata atriz de 17 anos, Ruth de Souza, representava seu primeiro papel – na peça ?O Imperador Jones?, de Eugene O?Neill – e tornava-se a primeira atriz negra a pisar naquele palco. Passaram-se 56 anos sem que ela parasse um único ano de atuar em teatro, no cinema e na televisão. Recentemente, Ruth foi homenageada no Festival de Cinema do Recife e sua trajetória foi tema do programa ?Retratos Brasileiros?, do Canal Brasil.
?Eu só tinha de dizer uma frase naquela peça (?O Imperador Jones?), mas você não pode fazer idéia de como eu tremia?, conta ela, com simpatia. Ruth recebeu o Valor em seu apartamento no bairro das Laranjeiras, no Rio, onde vive há mais de 20 anos. Mora com Doga, sua gata vira-lata, e tem também a companhia dos felinos da vizinhança, que vão lá para comer. Na sala, uma imagem de Nossa Senhora da Conceição compartilha espaço com uma biblioteca repleta de vídeos, livros e fotos (destaque para a de Grande Otelo). Na parede, dezenas de belos quadros – muitos, retratos dela mesma, como o assinado por Carmélio Cruz, apresentado, no ano passado, no módulo ?Negro de Corpo e Alma?, da Mostra do Redescobrimento.
Ruth acredita que o talento para representar nasce com as pessoas. Pode até ser. Mas, no caso dela, é mais provável que sua veia artística tenha sido esculpida durante sua infância passada em Porto do Marinho (Minas Gerais). Seu pai era lavrador e sua mãe dava aulas aos três filhos, ensinava-os a ler e contava-lhes histórias sobre o Rio de Janeiro, cidade onde Ruth nascera. A imaginação da menina fervilhava.
?Na roça não havia eletricidade, só lampiões, e minha mãe contava que no Rio havia muitas luzinhas, como se fossem vaga-lumes?, conta Ruth. ?Então, eu pegava um monte deles, botava no chão do terreiro, no escuro, e assim fazia a minha cidade.?
A família Souza voltou ao Rio quando o patriarca morreu e Ruth tinha 9 anos. A menina ficou deslumbrada com o mar de Copacabana, perto de sua nova casa, ao ver as luzes que sua mãe lhe descrevera e, sobretudo, quando descobriu aquelas ?coisas mágicas? que lhe pareciam ser os interruptores.
Dona Alaíde, a mãe, gostava de estimular a filha, que estava sempre com uma revista contando as fofocas de Hollywood na mão. ?Ela gostava muito de cinema e de música, ouvíamos óperas pelo rádio e ela me contava as histórias.? Até os 21 anos, Alaíde fôra educada na casa do almirante Galvão, onde sua mãe, vó de Ruth, trabalhava.
?Foi ela quem me levou a ver o primeiro filme?, recorda-se Ruth. ?Vimos ?Tarzan?. Impressionou-me tanto que foi o primeiro filme que comprei quando começou a onda do vídeo.? Assim, ela começou a se interessar por ser atriz. ?Sempre adorei ler e também era apaixonada pelos filmes de Hollywood, eles ensinaram muitas coisas à minha geração?, afirma Ruth.
Um dia, ela estava na casa de mrs. Lambert, ?uma negra americana, muito gorda e imensa, que dava aulas de inglês?, quando um artigo da revista ?Life? lhe chamou a atenção. O texto falava da Howard University de Washington, uma grande universidade só para negros. Ela comentou o assunto com a senhora e ficou sabendo que, perto dali, havia um grupo de atores negros formando um grupo de teatro. Era o começo do Teatro Experimental do Negro, idéia de Abdias do Nascimento, que durou cinco anos. Era, também, o início da carreira de Ruth.
?O prefeito nos cedeu o Municipal por um dia e nós queríamos estrear em grande estilo, mas não tínhamos dinheiro nem para montar a peça, nem para pagar os direitos autorais a O?Neill?, conta a atriz. O primeiro problema, eles resolveram encaminhando Ruth a todas as embaixadas para vender os ingressos. O segundo, enviando uma carta para o autor da peça – por sugestão dela -, na qual explicavam a situação. Até hoje, a atriz guarda a carta em que ele declara ceder não só o direito de montar ?O Imperador Jones?, mas todas as peças de sua autoria.
?Foi um auê na imprensa, todo mundo queria ver a peça e eu tremia assustada, mas deu tudo certo?, recorda-se. Vale lembrar que, naquela época, o único ator negro de relativo sucesso era Grande Otelo. ?Para falar a verdade, eu nunca me senti vítima de racismo, sempre fui atrás dos meus projetos preparada para levar um não, mas nunca deixei de tentar?, diz. ?Um diretor negro, normalmente, tem mais dificuldade para conseguir patrocínio, por exemplo, e os papéis principais para nós são muito mais difíceis de conseguir?, continua.
O tema é controverso e está bem documentado em ?A Negação do Brasil – O Negro na Telenovela Brasileira?, do cineasta e doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP Joel Zito Araújo (ed. Senac, 2000). Também é abordado em ?Damas Negras – Sucesso, Lutas, Discriminação?, escrito pela jornalista Sandra Almada (ed. Mauad, 95), com depoimentos das atrizes Chica Xavier, Léa Garcia e Zezé Motta, além de Ruth.
?Mas também acho que falta uma organização dos negros, a coisa mais difícil do mundo é juntar meia dúzia, um quer ser o dono, o outro também, há muita rivalidade?, conclui a atriz. Nãos, Ruth levou muitos. E também recebeu muitos papéis de coadjuvante. Mas seu largo e premiado currículo é pontilhado de luzes gloriosas.
No fim dos anos 40, Ruth conseguiu uma bolsa e foi estudar teatro em Cleveland, Washington e Nova York, onde conheceu de perto as universidades para negros sobre as quais lera, pouco antes, na ?Life?. Na década de 50, de volta ao Brasil, viu nascer o cinema nacional e trabalhou nas companhias cinematográficas Atlântica, no Rio, e Vera Cruz, em São Paulo, onde ela viveu durante 20 anos.
Muito antes de Fernanda Montenegro (indicada para o Oscar de melhor atriz por sua atuação em ?Central do Brasil?), Ruth de Souza foi a primeira brasileira a ser indicada para um prêmio internacional – o de melhor atriz, na edição do Festival de Veneza de 1954 -, pela sua atuação em ?Sinhá Moça?. ?Concorri com Katharine Hepburn, Michele Morgan e Lili Palmer?, diverte-se ela. ?Perdi para Lili por dois pontos, o que me fez sentir premiada?, diz ela, que na época nem sequer foi enviada à Itália. ?Não havia nenhum representante brasileiro lá; naquele tempo, era diferente de hoje, a gente não sabia direito dessas coisas.?
Ruth de Souza atuou, ainda, nas primeiras radionovelas do país e nos teleteatros das TVs Tupi (RJ) e Record (SP). Integrou o elenco de atores que participaram da fundação da Rede Globo, onde fez mais de 40 papéis e permanece até hoje.
Seu mais recente filme, ?O Aleijadinho?, foi exibido no Festival do Recife, quando a homenagearam. Neste filme de Geraldo dos Santos Pereira, com Maurício Gonçalves (filho do ator Milton Gonçalves) no papel principal, ela interpreta a nora do escultor mineiro e também funciona como narradora da história.
Agora, Ruth deve participar do próximo longa-metragem de Joel Zito e representará um pequeno papel em um filme de Ibañez Filho sobre as engrenagens da televisão. ?Entre teatro, cinema e televisão, o que prefiro é mesmo um bom papel?, declara ela, que já viveu muitos amores ?errados? mas nunca se casou. Em nome da carreira, segundo afirma."
TV PÚBLICA
"O papel da TV pública", copyright Folha de S. Paulo, 15/07/01
"A TV e a alta cultura, tradicionalmente, não se dão bem. Nos anos 70, pais intelectualizados chegavam a proibir seus filhos de assistir à ?máquina de fazer doidos?. Embora não existam limitações teóricas à possibilidade de a televisão produzir e exibir bons programas culturais, é forçoso reconhecer que essas ocorrências são pelo menos raras.
Um dos mais felizes e longos casamentos entre cultura e TV acaba de terminar. Não aqui, mas na França. Foi pela úuacute;ltima vez ao ar no dia 29 de junho ?Bouillon de Culture? (?Caldo de Cultura?), do jornalista Bernard Pivot. Era um programa em que se discutia literatura. Pivot mantinha uma emissão literária semanal havia 28 anos.
Foi um divórcio com fausto. Pivot foi celebrado por toda a imprensa. Seu nome é hoje o preferido por 28% dos franceses para ocupar o posto de ministro da Cultura.
O formato dos programas não era exatamente inovador. Tratava-se basicamente de entrevistas com autores. Em quase 30 anos, foram mais de 6.000 entrevistas. O detalhe é que Pivot lia mesmo os livros sobre os quais fazia as perguntas. Ele diz que reservava 14 horas de seu dia para leitura.
A lista de autores que compareceram ?chez Pivot? impressiona: Vladimir Nabokov, Georges Simenon, Marguerites Yourcenar e Duras, Alexander Soljenitsin, Lévi-Strauss, Norman Mailer, Umberto Eco. Os presidentes Valéry Giscard d?Estaing e François Mitterrand também se apresentaram -e por terem escrito livros. De brasileiros, estiveram Jorge Amado, Paulo Coelho, Chico Buarque. Charles Bukowski foi ao programa em 1978. Tomou, ao vivo, um porre homérico (seis garrafas de Sancerre).
Aparecer no ?Bouillon? era garantia de boas vendas na França. O programa era assistido por cerca de 850 mil pessoas. A questão, inescapável, é: se o programa fazia tanto sucesso, por que acabou? A resposta não é trivial.
Segundo Pivot, a fórmula ?salão literário do século 18? se esgotou. O jornalista, porém, não esconde que houve desentendimentos entre ele e a emissora, a France 2, que é pública. A desavença se deu em torno do horário. Historicamente, o programa era apresentado às 21h30. Nos últimos tempos, porém, a France 2 o estava empurrando para o fim da noite. A última transmissão foi ao ar às 22h50.
O que está em jogo aqui é o próprio papel de uma TV pública. De um lado, ?Bouillon? era um programa que reunia alguns dos principais elementos esperados de um canal público: era educativo e reforçava a identidade cultural francesa. Como um bônus, até apresentava audiência. O ponto é que não tinha telespectadores o bastante para seguir no horário nobre, no qual uma programação mais ?comercial? obteria melhores índices. E, embora um canal sem fins lucrativos não precise ?vender a alma? pela audiência, ninguém, nem mesmo o Estado francês, quer uma TV pública que amargue repetidos traços no ibope. No limite, não há sentido em aplicar recursos numa emissora a cuja programação ninguém assiste.
O que me interessa aqui é refletir sobre a viabilidade da TV pública num ambiente em que existem também TVs comerciais. Embora em princípio uma não exclua a outra, as coisas talvez não sejam tão simples.
Apelo para a teoria dos jogos, na zona fronteiriça entre a matemática, a biologia e a economia. Imaginemos uma espécie de morcego albino cujos exemplares possam adotar duas estratégias de sobrevivência: ou cooperar com seus semelhantes ou tentar passar-lhes a perna sempre que possível.
Individualmente, é vantajoso infringir as regras da cooperação. O morcego burlador se alimentará melhor do que os outros e desfrutará de mais morcegas, gerando mais morceguinhos. Só que, se o sucesso reprodutivo dos morcegos rebeldes for muito grande, e o número de indivíduos dessa cepa aumentar demais, a estratégia deixa de ser vantajosa. Não dá para ser ?esperto? sem que existam ?trouxas?. Os portadores de genes egoístas já não farão tanto sucesso entre as morcegas e seu número tende a diminuir, restabelecendo-se assim a moralidade quiróptera.
Não sei se, nessa história, a TV pública representa o morcego bonzinho ou o mais sacana, mas o exemplo serve para mostrar que complexas interações entre indivíduo e comunidade tendem matematicamente a favorecer padrões, inclusive comportamentais.
Minha dúvida é se, num ambiente onde existem TVs comerciais, a TV pública pode sobreviver e, mais do que isso, prosperar. É claro que sempre haverá espaço para atrações inteligentes, nem que seja em horários improváveis da TV fechada, mais ou menos como os programas dedicados à pesca ou a motoristas de caminhão. Mas receio que, num contexto de ?livre concorrência?, a TV pública com sua programação cultural seja aritmeticamente refreada por sua homóloga comercial.
É claro que não faz o menor sentido tentar inventar mecanismos para forçar as pessoas a assistir o que não desejam, mas isso não nos impede de lamentar o triste destino da boa TV pública."