Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Maureen Dowd

MEM?RIA


KATHARINE GRAHAM

"Katharine Graham, que mudou o jornalismo", copyright The New York Times / O Estado de S. Paulo, 19/7/01

"Faz alguns meses, jantei com Kay Graham e alguns amigos no Kinkhead?s, um restaurante de Washington. Na ocasião, disse à senhora Graham que a rádio C-SPAN, que vem transmitindo aos sábados as gravações das conversas telefônicas feitas por Lyndon Johnson da Sala Oval, acabara de pôr no ar um telefonema em que o ex-presidente flertava com ela.

O homem mais poderoso de Washington queria que a mulher mais poderosa de Washington denunciasse em seu jornal, o Washington Post, seus inimigos no Congresso. Para isso, não lhe faltava uma boa lábia sulista.

?Oi, querida, tudo bem??, indaga o rancheiro texano com seu sotaque arrastado à viúva Graham. ?Sabia que a única coisa que me desagrada nesse trabalho é o fato de ser casado e nunca poder ver você? Quando ouço sua voz doce, sempre pelo telefone, minha vontade é de sair correndo daqui derrubando todas as cercas, como se fosse um daqueles potros selvagens que tenho lá no meu rancho.? De que forma uma editora de tanta classe, e tão recatada, reagia a isso? Ela ria. Ele ria também. ?Assim o senhor me compromete, sr. presidente.?

Quando disse à senhora. Graham que a gravação havia sido retransmitida, achei que fosse vê-la corar contestando o fato, como sempre fazia quando o assunto era ela mesma. Em vez disso, Kay sorriu, meio dissimuladamente. ?É verdade?, recorda-se, ?Lyndon tinha uma queda por mim.? Em seguida, passou a falar do ?flerte? que teve com Adlai Stevenson e de como ninguém esperava que Kennedy se elegesse, porque parecia apenas um ?playboy imaturo?.

Durante quatro décadas, até sua morte, anteontem, aos 84 anos, ela era o homem por excelência em uma cidade que é a quintessência da masculinidade. Kay era tão imponente e respeitada, que, mesmo pedindo às pessoas que a chamassem de Kay, elas sempre acabavam se dirigindo a ela como a sra. Graham. De vez em quando, seu próprio filho, Don, que assumiu seu lugar como editor, chamava-a assim pelas costas.

Todavia, o fato mais interessante sobre a mulher mais poderosa da América é que ela tinha um espírito juvenil. Nossa grande dama não era nem um pouco antiquada. Ela gostava de sorvetes e de sobremesas de chocolate. Gostava de flertar com os homens e procurava aconselhar-se com eles; com as mulheres, conversava sobre roupas e perfumes. Era o patinho feio que se tornara um belo cisne, sempre mais glamourosa a cada ano. Renovando-se com Oscar de la Renta e Armani e com a assessoria de Anna Wintour, editora de Vogue. Gostava de cinema, até mesmo dos filmes mais tolos.

Kay e sua melhor amiga, Meg Greenfield, editora da fabulosa página editorial do Post e falecida há dois anos, costumavam escapar do jornal durante o expediente para ir ao cinema assistir ao filme Academia de Polícia, filmes de Ninja, histórias românticas para adolescentes e todo tipo de filme.

Certa vez, Meg ligou para Kay e perguntou: ?Você gostaria de ver o presidente francês?? ?Em que cinema?? Kay quis saber. ?Estou falando de Pompidou?, disse Meg asperamente.

Um dia, nos anos 70, depois de recusar um convite para participar de um show de esquetes que o Gridiron Club, exclusivamente masculino, promovia para a imprensa e os políticos, Kay e Meg foram até o Capitólio, onde o show era realizado. Abaixadas dentro do carro, passavam pelo local só para ver os homens chegando em seus smokings e as mulheres que faziam piquete na entrada do edifício.

Com o caso Watergate e os Papéis do Pentágono, ela transformou o Post em um jornal de categoria internacional. Escreveu um livro de memórias elegante e pungente sobre sua metamorfose de tímida dona de casa a audaciosa magnata de saias, que lhe valeu um o prêmio Pulitzer aos 80 anos.

Tinha em si uma força que fazia eco à evolução das mulheres: criada para o recato do lar por uma mãe dominadora e casada com um homem mulherengo, mesmo assim conseguiu superar-se e tornar-se uma figura exemplar.

Sabia compor-se diante de presidentes, mas nunca deixou de transparecer uma certa timidez em jantares black-tie. ?Odeio esse tipo de coisa?, sussurrou-me alguns anos atrás. ?Nunca sei o que dizer às pessoas.? No inverno passado, antes do jantar de boas-vindas que ofereceu a George W. Bush em sua mansão de Georgetown, Kay confidenciou a alguns amigos que se considerava uma inútil.

Kay Graham sempre se assustava quando mulheres de diferentes classes se aglomeravam para ouvia-la falar. Disse-me que se sentia extremamente comovida com isso. O posto que ocupava fora herdado, mas foi preciso que começasse desde baixo até chegar onde hoje estava. Washington sentirá sua falta. Lyndon Johnson tinha razão. Valia a pena derrubar cercas por essa mulher."

 

"Um legado de coragem que sobreviverá nas redações, copyright The New York Times / O Estado de S. Paulo, 18/7/01

"Nos anais do jornalismo, Katharine Graham, que morreu na segunda-feira, aos 84 anos, será mais conhecida por ter apoiado seus repórteres e editores do The Washington Post na investigação do escândalo de Watergate, que acabou levando à renúncia do presidente Richard Nixon. O jornal ganhou um Prêmio Pulitzer e Graham e sua equipe ajudaram a promover uma geração de repórteres investigativos. Mesmo antes de desempenhar esse papel fundamental na saga política do século, Graham já tinha mostrado sua coragem como publisher, passando por cima de seus advogados e apoiando o The New York Times no histórico confronto com o governo por causa da publicação dos documentos do Pentágono.

Apesar disso, a maior façanha de Kay Graham talvez tenha sido o mítico ato de autotransformação assumido após o suicídio do marido, em 1963. Até então, era uma ?esposa-capacho? como se autodescrevia, enquanto seu charmoso marido, Phil Graham, administrava o jornal do pai dela. A morte dele deixou Katharine com quatro filhos e um negócio de família que foi aconselhada a vender ou colocar nas mãos de administradores experientes.

Após seus primeiros dias como executiva solitária, quando se postou tremendo diante de seus colegas para anunciar que não ia vender o jornal nem ceder o poder, Katharine evoluiu para ser uma força, às vezes intimidante e sempre regida por princípios nos negócios, no jornalismo e na sociedade americana.

Em parceria com Benjamin Bradlee, como diretor de redação do jornal, e Warren Buffett, como seu consultor empresarial, Katharine imperou em uma época de jornalismo audacioso e crescimento no Post.

Como revela em sua autobiografia, ganhadora do Prêmio Pulitzer em 1998, Katharine teve uma infância solitária, com o pai ausente e a mãe tão ocupada que, uma vez, precisou marcar hora para vê-la. Mas, depois que assumiu o jornal, Katharine usou sua criação rígida e a riqueza de sua família. Sua casa transformou-se em um dos salões mais vibrantes da capital do país, onde misturava elegantes e poderosos.

Ao longo dos anos, ela foi admirada mas nem sempre querida. Alguns executivos do Washington Post temiam a rapidez com que seu entusiasmo mudava. Sua visão era de que seus erros tinham de ser corrigidos rapidamente.

Seu comando durante a greve, em 1975, deixou feridas que levaram anos para cicatrizar. Mas conseguiu seu objetivo principal, impedir o jornal de fechar apesar de os grevistas terem vandalizado as oficinas.

Durante sua administração, encerrada em 1993, a The Post Company aumentou em muito suas receitas, colocou ações em bolsa, expandiu-se e acrescentou jornais e emissoras de TV. Se ela operou o lado empresarial com eficácia, era o lado noticioso da empresa que encantava Katharine. Costumava telefonar para os editores e ficava rondando a redação quando havia notícias de última hora. E é nas redações que seu legado ficará para gerações de jornalistas que podem inspirar-se no exemplo de integridade e persistência em face do embuste e da intimidação do governo."

 

"Jornalistas", copyright O Estado de S. Paulo, 22/7/01

"Na semana passada citei um leitor que reclamou de os jornalistas não lerem. Ele quis dizer que não lêem livros. Mas, digo eu, também não lêem jornais e revistas. As faculdades de jornalismo não querem saber de apresentar aos alunos as publicações mais importantes do mundo e a história da imprensa. Um livro como a excelente autobiografia de Katherine Graham, Uma História Pessoal, jamais seria indicado. Katherine, ?publisher? do Washington Post, morreu nesta semana. Imprimiu o nome na história ao liberar o trabalho dos profissionais no caso Watergate, que causou a renúncia do presidente Nixon. Fez, assim, mais do que ninguém pelo princípio da separação entre editorial e comercial, ainda mal respeitado no Brasil."

 

"A poderosa das rotativas", copyright Veja, 25/7/01

"A mulher mais influente da história da imprensa americana, Katharine Graham, que morreu na semana passada, aos 84 anos, com ferimentos na cabeça em decorrência de um tombo na calçada, tinha tudo para dar errado quando começou suas atividades no comando do diário The Washington Post e da revista semanal Newsweek, em 1963. Era tímida, insegura, sem brilho intelectual e despreparada tanto para a atividade jornalística quanto para o exercício dos negócios. Dona-de-casa dedicada aos filhos, naquele ano ela recebeu a notícia de que o marido, Philip Graham, havia cometido suicídio com um tiro de espingarda, pondo fim a anos de depressão aguda com passagens por manicômios. Aos poucos, entretanto, tendo a capital do país como cenário, Kay, como era chamada pelos íntimos, mudou o curso de sua vida e veio a se converter numa figura poderosa, temida e reverenciada por chefes de Estado. Quando assumiu o novo cargo, o Washington Post era um veículo provinciano. Sob a direção dela, derrubou um presidente, Richard Nixon, com as célebres reportagens do caso Watergate. Nas últimas décadas, Kay manteve relações pessoais com mandatários como Lyndon Johnson e Ronald Reagan, o francês Giscard d’Estaing, o alemão Willy Brandt ou o checo Vaclav Havel, além do bilionário Bill Gates, da princesa Diana e da feminista Gloria Steinem.

O ingresso da família de Kay no ramo da imprensa remonta a 1933, quando o pai, Eugene Meyer, um financista de Wall Street, resolveu arrematar em leilão o falido Washington Post, o lanterninha dos cinco diários da capital federal. Tão logo Kay se casou com Philip Graham, um advogado bem-sucedido, Meyer levou o genro para ser seu editor associado. Philip dedicou-se ao empreendimento com vigor e contribuiu para melhorar a circulação do jornal. A partir do fim dos anos 50, a vida de Kay virou um tormento com a doença do marido. Não bastasse, ele tentou controlar sozinho a empresa e passou a namorar uma funcionária do escritório parisiense da revista Newsweek, recém-comprada pela corporação.

Do ponto de vista profissional, quando se sentou na cadeira do ex-marido, Kay Graham soube compensar suas deficiências, cercando-se de dois colaboradores de talento e energia, já que de jornalismo ela tinha apenas um diploma em Chicago e a experiência limitada como redatora da seção de cartas dos leitores. Seu braço direito editorial passou a ser o jornalista Ben Bradley, que modernizou a cobertura de matérias, com estilo atrevido e vigoroso. Para os negócios, valeu-se de Warren Buffet, um tarimbado investidor do mercado de capitais. A alma que faltava ao jornal se materializou em 1971, com a revelação dos Documentos do Pentágono, uma caudalosa coletânea de textos secretos sobre a participação americana na Guerra do Vietnã, trazidos à luz por Daniel Ellsberg, um antigo colaborador do Pentágono e doutor em economia pela Universidade Harvard. Em junho, o New York Times começou a publicá-los, mas foi impedido de continuar por uma ordem judicial, a primeira vez que uma restrição desse tipo ocorreu na História do país. Quando o Post obteve uma cópia da papelada, coube-lhe a tarefa de desafiar o poder. ?Engoli em seco e mandei ir adiante, vamos publicar?, contou mais tarde Kay Graham. Foi uma decisão difícil, tomada contra o parecer dos advogados, que aconselhavam prudência, pois a revelação de documentos secretos poderia ser comparada a crime de espionagem e ameaça à segurança nacional. O caso foi parar na Suprema Corte e os dois diários venceram, num episódio que se tornou referência internacional para a defesa da liberdade de expressão.

Pouco depois, o Post cravou outra cobertura memorável, do que veio a ser chamado de Escândalo do Watergate, com o arrombamento de um comitê do Partido Democrata, em Washington. Os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein puxaram o fio de uma meada cujo desdobramento levaria o então presidente Richard Nixon a renunciar ao cargo, em 1974, acusado de mandar abafar o registro do caso. ?O que estávamos vendo era a legendária ponta do iceberg?, relatou Kay Graham, mais tarde, em seu livro Uma História Pessoal, vencedor do disputado Prêmio Pulitzer. ?E talvez nunca viéssemos a saber o tamanho do iceberg se não fossem os extraordinários esforços investigativos de Woodward e Bernstein.? Reside aí uma das qualidades mais decantadas dela ? a de dar garantias para o trabalho independente de jornalistas, tão fundamental para um veículo que habita na vizinhança do poder.

Na biografia de Kay Graham há também muito glamour, ela mesma uma festeira capaz de promover bailes em Washington tão disputados quanto os da Casa Branca. São deliciosas as histórias sobre as cortes de que foi alvo. Recentemente, por exemplo, começaram a ser reproduzidas no rádio as gravações das conversas telefônicas feitas pelo ex-presidente Johnson, no Salão Oval da Casa Branca, com trechos de paquera explicíta. Entre elas, um diálogo dos dois. ?Oi, querida, tudo bem? Sabia que a única coisa que me desagrada neste trabalho é o fato de ser casado e nunca poder ver você??, galanteou o garanhão texano. ?Quando ouço sua doce voz, sempre pelo telefone, minha vontade é sair correndo daqui derrubando todas as cercas, como se fosse um daqueles potros selvagens que tenho lá no meu rancho?, Johnson avançou no assédio, aparentemente sem sucesso. Boa parte do encanto de Kay vinha do fato de assumir o lado prosaico de suas preferências, como gostar de escapar, durante o expediente, para ir ao cinema com a jornalista Meg Greenfield, responsável pelos editoriais do Post. A dupla podia ser vista no saguão de cinemas onde passavam coisas como Loucademia de Polícia, filmes de ninjas ou histórias românticas para adolescentes."

    
    

              
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