Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eugênio Bucci

OBSERVATÓRIO DA PROPAGANDA

PORNÔ CHIC

"A pornografia que quis ser cidadã", copyright Jornal do Brasil, 19/7/01

"A França está às voltas com um best-seller de enrubescer os(as) atendentes de livraria. La vie sexuelle de Catherine M. (Éditions du Seuil) é um livro do barulho. Com um detalhismo hiperexplícito, narra uma inacreditável autobiografia erótica. A autora é Catherine Millet. Não se trata de um pseudônimo, nem de uma pessoa desconhecida. Expert em arte contemporânea, Catherine é a diretora de redação da revista Art Press e, entre outras atividades de destaque, esteve à frente da seção francesa da Bienal de São Paulo, em 1989. Bastaria isso para que seu livro fosse, no mínimo, um choque. Não se trata de uma ex-atriz do cinema pornô querendo mostrar que tem cérebro (coisa que a gente vê a toda hora), nem de alguém posando de vítima dos acontecimentos para bancar a regenerada. Não: Catherine é uma mulher estabelecida, bem-sucedida, integralmente emancipada – que se afirma integralmente libertina. Mais que um acontecimento literário, a questão aqui é cultural, ou melhor, política. Tem a ver com os limites das condutas que a democracia é capaz de assimilar.

De imediato, La vie sexuelle de Catherine M. conquistou o público. Está vendendo mais que Paulo Coelho. Lançado em abril, o livro chegou rapidamente a uma vendagem diária de dez mil exemplares, segundo a revista LExpress. Há treze semanas marca presença nas listas dos mais vendidos. Mantém a segunda colocação entre as obras de ficção. Embora publicado numa linha da Seuil intitulada ?ficção e cia.?, o depoimento é assumidamente autobiográfico. E assim vem sendo tratado. O próprio marido de Catherine Millet, o romancista Jacques Henric (que também integra o comitê de direção da revista Art Press), apressou-se em avalizá-lo. Poucos dias após o lançamento do livro da mulher, ele publicou um outro, com fotos dela. São cerca de 30 nus de Catherine, clicados por Henric a partir dos anos 70 (os dois vivem juntos desde então e não têm filhos). Em Légendes de Catherine M. (Éditions Denoël), num texto extenso que cobre 205 páginas, Henric se vangloria de ter a seu lado uma mulher ?livre? – e aí se compara, modéstia à parte, a James Joyce, que padeceria de um ciúme doentio e, ao mesmo tempo, de um fascínio incontrolável pela possibilidade de ser traído. Henric não sofre de ciúmes. Aplaude, com suas légendes, as inconfidências de Catherine.

Voltando a Catherine, ela tem o seu estilo. Fala da própria sexualidade com uma espécie de objetividade indiferente, sem um grão de culpa, nem de romantismo, nem de paixão; fala do que a excita como se descrevesse o que lhe dá sono. Desenha de si mesma um perfil de total descomplicação. Desde a primeira adolescência, nutria em suas fantasias masturbatórias o desejo de se entregar a muitos homens de uma vez só. Muitos mesmo. Perdida a virgindade, aos 18 anos, dedicou-se a pôr a fantasia em prática. Clubes privados em Paris, parques mais ou menos retirados da cidade, em todos os lugares ela serviu a astros do cinema, a poderosos homens de negócio e a trabalhadores humildes. Não se lembra, nem de longe, de quantos foram seus parceiros. De muitos, nem viu o rosto.

Mais que uma narrativa picante, porém, o livro pode ser visto como o registro de uma profunda mudança de hábitos sexuais que estaria em curso na sociedade contemporânea. Daí, talvez, venha boa parte de sua enorme força. Talvez ele conquiste, mais que leitores, adeptos. O relato das orgias de Catherine M. não seria apenas uma confissão isolada, mas a crônica de novos costumes, ainda ocultos. Há sinais disso, ao menos na França. No início de junho, a revista Le nouvel observateur trouxe uma matéria de capa sobre as mulheres que falam de sexo (Catherine Millet entre elas) e sobre o que elas estão representando (ou modificando) no campo dos costumes. Entre as revelações da reportagem, estava o depoimento de uma das muitas praticantes atuais do ?gang bang? (sexo entre uma mulher e muitos homens). Era uma senhora de 33 anos, que se deixou acompanhar de um repórter a uma de suas sessões mensais. O texto da revista, embaraçoso mas sóbrio, é outro sinal de que as histórias de Catherine não são apenas dela.

O público francês certamente não é neófito em pornografia. O século 18, o século das luzes, foi também, sabemos todos, o século da literatura libertina. Na França, acima de tudo. No século 20, veio a consagração das narrativas libertinas. O Marquês de Sade, habitante recorrente da Bastilha, foi reabilitado de forma um tanto gloriosa. Não só por obras como As onze mil varas, de Appollinaire, ou Histoire dO, que parecem homenageá-lo, mas também por intelectuais como Jacques Lacan. Esses livros fazem parte de uma tradição literária, ainda que fosse uma tradição de alcova. O sucesso de Catherine Millet, portanto, não pode ser creditado à hipótese de que uma narrativa mais despudorada pudesse representar uma novidade nas livrarias francesas. Parte desse sucesso, eu desconfio, deve ser atribuído a uma nova idade da pornografia da qual Catherine é uma expoente: agora, a pornografia quer deixar a alcova, já não se contenta com sua existência clandestina, mas quer passear à luz do dia. Daí a adequação do estilo sem nenhuma culpa que caracteriza a autora. Trata-se de um discurso de afirmação, não de arrependimento.

Aí você pergunta: mas isso tudo não é puro marketing? Catherine e seu marido não estão gerando polêmica só para vender mais livros? Será que logo mais não vão revelar que toda a história não passava de um blefe? Sim, pode ser, mas não faz tanta diferença. O que mais chama a atenção nessa história é que, com este livro, seja ele mais autêntico ou menos autêntico, a pornografia dá mais um passo para sair do gueto. Como discurso e, mais ainda, como prática (orgiástica e radicalmente antimonogâmica), ela parece buscar reconhecimento e aceitação no espaço público – mais ou menos como o movimento gay busca legitimar-se como opção. Haverá um lugar ao sol para os pornógrafos? Ou eles serão sempre marginais e marginalizados? Assim como hoje existe uma diretora de revista de arte notoriamente libertina, poderá haver no futuro um ministro libertino? Será, enfim, que, dentro de algum tempo, ser um libertino praticante e declarado, assim como Catherine M. diz que é, será algo tão corriqueiro como ser homossexual assumido? Eu não tenho respostas para perguntas assim, e talvez essas perguntas nem sejam procedentes, mas elas ficam no ar enquanto esse livro-bomba enrubesce tos atendentes nas livrarias."

    
    
                     

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