FUGA DE CÉREBROS
O texto de Ana Maria Lopez e, principalmente, o relato final, é mais um documento do estado de coisas a que se chegou no ensino superior no Brasil. O relato é dramático, mas não se pretende aqui fazer drama. Busca-se apenas trazer à reflexão os problemas cotidianos em que vivem professores e pesquisadores que se dedicam à pesquisa e à docência e suportam sacrifícios que vão muito além do suportável. Ou preferem ir embora do país.
Quem conhece um pouco a universidade brasileira sabe que, excetuando-se uns poucos centros de excelência, o esforço de se qualificar no exterior encontra como contrapartida o desprezo e o descaso.
O texto está aí, abaixo. Já houve tempo em que a mídia brasileira dava atenção a assuntos deste tipo. Basta dizer que a própria reunião da SBPC em Salvador não existiu para as revistas semanais e foi tratada com descaso e displicência pelos jornalões.
A propósito do artigo "A ideologização do jornalismo", de Ulisses Capozoli [ver remissão abaixo], que, entre outras coisas, fala da fuga de cérebros do país, venho acompanhando a luta dos jovens recém-doutores brasileiros e deparei-me com o texto-desabafo de uma jornalista formada na UFPA, com mestrado em Michigan e doutorado na área de ciências sociais em Leicester (Reino Unido), publicado no Jornal da Ciência online (JC 1.830, 13/7/01). Brilhante a mensagem de Jimena Felipe Beltrão, acerca das razões que levam muitos dos recém-doutores brasileiros no exterior a pensarem em não retornar, mas, ainda assim, retornarem.
Tenho colegas brasileiros que também se doutoraram e pós-doutoraram no exterior, e que nestes últimos anos, ao retornarem ao país e realizarem concursos, tiveram até que se submeter a processos judiciais e gastar somas que nunca receberam na vida só para garantir a vaga pela qual haviam competido e recebido aprovação em primeira colocação. E por que tiveram que fazê-lo? Porque ainda existem nepotistas em muitas instituições federais de ensino superior (Ifes) brasileiras. Porque, além de tudo o que já se tem dito, o que vale não é a competência e a democracia, mas o apadrinhamento, as preferências pessoais de quem se esperaria o mínimo de discernimento e imparcialidade enquanto elite cultural do país. Aqueles que enfrentam com coragem e lutam por seus direitos e ideais acabam se engajando em outra luta permanente ? a do boicote. Talvez esta seja uma outra razão pela qual alguns recém-doutores não querem retornar ? eles se lembram de onde vieram e quem são a maioria dos pseudo-intelectuais, ou pelo menos dos que desejam algum tipo de pseudo-poder no Brasil.
Creio que todos nós que batalhamos pela experiência de nos aprimorar fora do país na volta, muitas vezes, nos sentimos como ostras que só podem abrir-se para aqueles que tiveram as mesmas experiências. Isso por percebermos que aqueles que não buscaram o mesmo tipo de formação são geralmente incapazes de sequer tentar entender parte do nosso estresse, da missão, das autocobranças e da formação que tivemos e gostaríamos de compartilhar pelo trabalho, mesmo que fosse com quem talvez não se esforçou, não se esforça, não se esforçaria ou nunca se esforçará nem a milésima parte do que nós o fizemos um dia, por nós e pelo Brasil.
Infelizmente, quando tudo o que os recém-doutores desejam é apenas retribuir ao país parte daquilo que lhes foi propiciado (inclusive a coragem de lutar pela cidadania!), acabam tendo que enfrentar o caráter nacional espalhado pelas instituições, aquele do tipo que tem muitas imperfeições e sucumbe a sentimentos bem pouco virtuosos, como a própria inveja. As desculpas para esse nosso tal caráter defeituoso são muitas ? "resulta da ausência absoluta de políticas decentemente voltadas para educação, saúde, agricultura, segurança e ciência de um modo geral" , mas o fato é que emperra o crescimento de qualquer instituição, em especial daquelas em que deveria haver uma massa pensante de primeira linha.
Certa feita, um outro leitor daquele JC, impresso, ao constatar o boicote da universidade que o empregava no Brasil quanto aos direitos salariais que tinha durante o período em que concluía seu Ph.D no exterior, escreveu o seguinte: "…há aqueles que escolhem uma titulação apenas; há aqueles que escolhem uma pós-graduação sem estresse, falando o mesmo idioma, sob as leis e cultura que conhece e, de certa forma, próxima dos amigos e da família; e há aqueles que escolhem tentar buscar o desconhecido, o que imaginam ser o melhor para sua formação e contribuição futura ao país, mesmo que saibam de todo o estresse a ser enfrentado ? são os generalizadamente chamados ?turistas?, mas que de forma bem pouco oportunista tiveram a coragem de batalhar por um doutorado em terras estrangeiras, sob milhões de dificuldades, inclusive a de provarem aos colegas que não são seus inimigos, mas parceiros de luta por uma universidade melhor."
Assim como o referido colega, e diferentemente de muitos dos recém-doutores que têm se pronunciado acerca da evasão de cérebros e de todos esses planos ridículos que nosso governo tem inventado para mascarar o desemprego dessa classe, eu saí do Brasil após já ter um emprego numa universidade federal. Por isso, posso dizer que só o emprego não basta, não resolve a questão da contribuição e da cidadania dos recém-doutores.
Muitas vezes não nos é possível, ainda que empregados, aplicar sequer a mínima parcela do que aprendemos em nosso treinamento no exterior. Para isso, seria necessário que fizéssemos parte de departamentos e instituições coesos, com metas de pesquisa e colocação das áreas de cada profissional definidas até a nível de reitorias. Diretrizes que viessem do próprio governo federal, como acontece em outros países. Instituições nas quais apoio logístico e administração fossem encontrados quando buscados, ou pelo menos que nos fosse permitido participar de sua criação se não existissem.
Partimos para nosso treinamento, sim, mas quando retornamos é possível que sequer tenhamos direito a mesa e cadeira na sala de algum colega, ou, se lutamos para manter o que nos era antes disponível, somos considerados presunçosos e mal-agradecidos! Enfim, nessas instituições são imensos os obstáculos criados por aspirantes a cacique e caciques de fato. Muitas vezes eles nem pertencem ao quadro de professores-pesquisadores, mas lhes foi delegado algum poder por instâncias superiores. Engavetam processos, retardam o trâmite de documentos, omitem informações e até impedem que simplesmente se acessem profissionais com determinadas atribuições na linha hierárquica, algumas vezes também coniventes. E em tempos de internet, sentem-se livres até para invadir o cerne de computadores muitas vezes pessoais e ler informações que deveriam ser confidenciais, isso quando os servidores dessas instituições não são manipulados para deixar de funcionar em datas cruciais!
O princípio da imparcialidade, tão inerente à democracia, raramente é observado ? ainda que esse substantivo seja um dos clichês mais freqüentemente alardeados nos discursos político-acadêmicos. Nessas circunstâncias, o desperdício de energia nas disputas de um poder obsoleto (haja vista nossos salários!), além da vaidade pura e simples, é, de fato, mais forte do que qualquer intenção um pouco mais altruísta de alavancar o setor e a sociedade como um todo.
Seria importante que os seis mil recém-doutores desempregados pudessem juntos assumir imediatamente posições nas Ifes, pois não estariam tão sós nas lutas que individualmente travarão em universidades momentaneamente sucupiranas.
Aos recém-doutores empregados não basta apenas gastarmos horas escrevendo e até aprovando projetos, ministrando muitas aulas e disciplinas novas, nem tão pouco participar de congressos que nos permitam o intercâmbio no próprio país ? temos que vender a nossa alma se quisermos tentar conquistar o mínimo do que precisamos para pelo menos continuar trabalhando, na ilusão de que um dia aplicaremos parte do treinamento que recebemos.
Mas será que alguém que viveu quatro, seis anos em países nos quais uma carta e até um bilhete representam documentos jurídicos do mais alto valor, nos quais o "não lesar o próximo como não desejaria ser lesado" é um princípio categórico, nos quais a imoralidade e a corrupção de qualquer nível leva até ministros para a cadeia comum, nos quais a palavra de um homem tem um valor moral inestimável, nos quais qualquer situação em que o indivíduo se sinta prejudicado ou valorizado pode ser clamada por escrito e necessariamente recebe retorno e providência oficial, enfim, será que alguém que aprendeu muito sobre cidadania pode ser solicitado a emburrecer da noite para o dia e prostituir o cérebro para um sistema acadêmico omisso, falido e cheio de pobres vaidades?
Nesse aspecto, a imprensa também tem um papel fundamental. Narcisistas sabem fazer uso dela, especialmente nos rincões mais tupinescos do país. Emissoras de TV que também usam de nepotismo para empregar jornalistas (ou pseudo-jornalistas, visto que conheço estudantes de Biologia, sem qualquer diploma, trabalhando como repórteres de filiais da TV Globo e da TV Bandeirantes nestes lugares) não se cansam de abrir as portas para favorecer a vaidade e a disseminação de mentiras de indivíduos que buscam benefícios políticos particulares dentro de universidades federais.
É muito importante que se empreguem os recém-doutores todos, mas seria relevante que isso ocorresse onde a competência não fosse esmagada pela necessidade da bajulação, e onde a execução da ciência nunca fosse associada ao narcisismo de alguns profissionais com talento para o circo, mas à elegância e à perfeição de idéias, resultados e descobertas capazes de contribuir com a sociedade. Enquanto houver quem goste de dirigir um Mercedes em ruas esburacadas e cheias de miseráveis nos sinais teremos recém-doutores pseudo-empregados ou desempregados no país, e teremos doutores brasileiros no exterior frustrados por não poderem trabalhar decentemente na terra onde nasceram.
(*) PhD Universidade de Bristol,
UFAL-DQ, <lopezam@uol.com.br>
Fui assaltada em Salvador, me levaram tudo, me machucaram. Tudo porque minha suposta universidade, nas mãos de pelegos do poder que não me compram, se recusou a me pagar uma passagem para participar da reunião anual da SBPC. Fui de teimosa, de ônibus, e terminei com dois cortes no abdome, toda ralada e rasgada numa vala de esgoto. Graças ao Exército pude entrar em contato com alguém, trocar de roupa ? e ainda assim coordenar a sessão que deveria supervisionar. Voltei para minha cidade (Maceió) graças à ajuda de estudantes de outras universidades, que pagaram minha passagem. (Ana Maria Lopez)
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ideologização do jornalismo ?
Ulisses Capozoli