Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bernardo Ajzenberg

FOLHA DE S.PAULO

"Gato por lebre", copyright Folha de S. Paulo, 22/7/01

"Ninguém se surpreende, de alguns anos para cá, ao encontrar uma mesma peça publicitária, simultaneamente, em diferentes jornais ou revistas.

Para os grandes anunciantes ?instituições financeiras, montadoras, operadoras de cartão de crédito ou telefonia, redes varejistas, entre outros- trata-se de uma praxe.

Dessa vez, porém, o governo federal ?outro anunciante de peso- resolveu inovar. E, com sua iniciativa, reacendeu indiretamente, uma velha questão do jornalismo: a relação entre a área comercial e a área editorial das empresas jornalísticas.

O ?evento? ocorreu nas edições de quinta-feira de pelo menos 11 diários de diversos Estados, como parte de uma ofensiva política de comunicação do Palácio do Planalto levada a cabo para realçar os ?feitos? de sete anos do real.

Dias antes FHC encabeçara uma cerimônia de comemoração com forte apelo midiático. Na última sexta-feira, para mencionar apenas mais um exemplo, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação do Governo (Secom), Andrea Matarazzo, publicava na própria Folha um texto sob o título ?Real: sete anos de avanços?.

Pois bem, na quinta-feira, então, os principais jornais do país trouxeram um encarte especial de quatro páginas, com textos, fotografias e ilustrações, cujo conteúdo era, em síntese, um balanço altamente positivo do governo FHC e da moeda nascida em 1994.

Semelhanças óbvias

Nada haveria de anormal nisso, em tese, a não ser por um detalhe: cada jornal trazia um encarte visualmente diferente, com tipografia, diagramação e textos próprios.

E não apenas isso: essas diferenças tinham como base a maior aproximação visual possível (sem ser uma mera cópia, claro) entre o encarte e o jornal em que ele se encaixava.

Na Folha, por exemplo, fazia lembrar certos ?cadernos especiais? que o jornal publica periodicamente. O mesmo para os demais órgãos.

Já no Diário Popular, para dar outro exemplo, nem mesmo uma capa havia: o encarte compunha uma perfeita seqüência com a página anterior.

Com destaque maior ou menor, diga-se, todos incluíram nessas páginas os dizeres ?informe publicitário?ou ?publicidade?. Mas foi indisfarçável, nada capciosa, a tentativa do governo de ludibriar os leitores, apresentando um anúncio oficial como se fosse material noticioso.

Na sexta-feira, a Folha, corretamente, trouxe reportagem revelando como ocorrera a operação.

Mostrava que o governo, por meio da Secom, gastou R$ 2,5 milhões para os jornais (seus departamentos comerciais, bem entendido), com apoio num mesmo material informativo oficial, produzirem, cada qual, o encarte que publicariam, dentro de padrões gráficos próprios e diferenciados.

Essa reportagem, observe-se de passagem, incorria em erro ao dizer que o publicitário Alex Periscinoto, secretário de Publicidade Institucional da Secom e idealizador do projeto, era o ?P? da agência DPZ, uma das que estariam recebendo comissões derivadas dos tais anúncios, por serem donas das contas do BNDES e do Banco do Brasil (que bancam a publicação).

A gravidade do equívoco não está tanto nela mesma (é de Francesc Petit, um de seus donos, o P da DPZ), mas no fato de propiciar uma leitura equivocada de que Periscinoto teria favorecido sua própria agência.

Igreja-estado

Deixando isso de lado (o jornal publicou ?Erramos? ontem), o que se quer discutir, aqui, é até que ponto essa forma de preparar anúncios ?com visível objetivo de dificultar a diferenciação entre eles e as notícias propriamente ditas- não afeta a tradicional e ?sagrada? separação entre a área editorial e a área comercial dos jornais, algo que, no jargão da imprensa, costuma se chamar a relação ?igreja-estado?.

A resposta é: direta e formalmente, não; mas, subliminar e indiretamente, sim.

Em seu livro Sobre ética e imprensa (Companhia das Letras, 2000), o jornalista Eugênio Bucci escreve o seguinte:

?Um engano bastante comum entre leitores, telespectadores, ouvintes, e mesmo entre jornalistas e profissionais de marketing e de publicidade, é supor que a publicidade garante o sustento dos veículos de imprensa. O engano é comum porque se apóia em números verdadeiros, o que leva a parecer uma verdade objetiva?.

Mas o que sustenta a própria concepção de ?igreja-estado?, acrescenta Bucci, é que ?o único alicerce de uma revista ou qualquer outro veículo jornalístico é a sua credibilidade?.

Esta, sim, conquista o leitor e, a partir daí, o anunciante, o qual outra coisa não busca se não o mesmo leitor.

?Não há uma única publicação jornalística bem-sucedida, no longo prazo, que tenha descuidado por muito tempo da confiança do público e se dedicado a bajular anunciantes?, conclui Bucci.

Embaralhamento

Ouvido pelo ombudsman, o diretor de Redação da Folha, Otávio Frias Filho, disse que, no caso do encarte, a separação igreja-estado ?prevaleceu?.

Os jornalistas, diz ele, não tiveram conhecimento prévio do anúncio. Além disso, ?a linguagem tipográfica e iconográfica não é a mesma do jornal?.

Por fim, destaca o diretor, estavam presentes nas quatro páginas os dizeres ?informe publicitário?.

Frias Filho admite, no entanto, que esses dizeres deveriam ter sido introduzidos com mais visibilidade, em tamanho maior, para deixar ainda mais evidente, ao leitor, que não se tratava de material noticioso.

?Estão sendo tomadas providências, a partir de agora, no sentido de definir padrões mais rígidos quanto às dimensões desses dizeres em relação ao tamanho dos anúncios?, informa o diretor de Redação.

De fato, não chego ao ponto de afirmar que foi rompido o limite entre as áreas comercial e redacional. Seria um exagero.

Mas o tratamento visual e editorial específico dado ao encarte só não induz a engano (ao menos numa primeira leitura) aos leitores mais tarimbados.

A primeira impressão que eu próprio tive ao manusear a Folha na quinta-feira (e permita-me, leitor, considerar-me experiente no ramo) foi de que se tratava de um caderno especial do jornal sobre os sete anos do real, não de um anúncio.

Constituiu-se, neste caso, com clareza, um perigoso precedente de similaridade.

Não se trata de purismo. O que está por trás dessa preocupação é a necessidade de enfatizar, justamente, mais uma vez, a questão primordial da credibilidade.

Qualquer esforço nesse sentido, mesmo que a ameaça a ela não pareça a muitos tão evidente, será positivo num ambiente de mídia como o atual, cuja tendência é, ao contrário, o embaralhamento de cartas, a unificação embaraçosa entre notícia e propaganda.

Abalada a credibilidade, é todo o jornal, com ou sem anúncio, que se esvai ?a curto, médio ou longo prazo."

    
    
              

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