FAMA
Marion Minerbo (*)
Um dia, todo mundo terá direito a seus 15 minutos de fama. (Andy Warhol)
Dia virá em que todo mundo estará na televisão. E não haverá ninguém do outro lado. (Millôr Fernandes, "Avançando Warhol", "Mais!", Folha de S.Paulo, 25/3/2001).
Enquanto Warhol ainda supunha uma platéia para cada um de nós, Millôr, nosso contemporâneo, nos aconselha a abandonar qualquer esperança pois ela, a platéia, é uma instituição em vias de extinção.
Pois é. Antigamente havia caciques e índios. Cada qual com sua função. A vida na tribo era simples e pacífica, com comida e mulheres para todos. Aos poucos, as mulheres passaram a apresentar um desejo ?inexplicável? de casar-se apenas com os caciques. Para piorar, depois de casadas plantavam, colhiam e cozinhavam exclusivamente para eles. O orgulho ferido, ?o que há de errado comigo??, os índios até que toleravam. A coisa complicou-se quando sua sobrevivência física ficou ameaçada. Resultado: todos os índios queriam tornar-se caciques. Compreensível.
Esta pequena crônica tenta justamente explicar o ?inexplicável?: como, e por que, as mulheres passaram a desejar apenas os caciques ? e não me refiro à horda primitiva, mas à contemporânea, de que fazemos parte. Apesar de vivermos em tribos, não somos índios e, afinal, nós, psicanalistas nos interessamos pela lógica inconsciente que determina o modo de ser do mundo em que vivemos.
O fato acima descrito pode ser observado por qualquer um de nós. No mundo da política, dos jornalistas e das celebridades em geral, mas também dos psicanalistas, as coisas se passam mais ou menos assim. É nossa realidade. O que pode fazer um psicanalista diante de um fenômeno como este? Analisá-lo! E esta análise se inicia, necessariamente, por um pressuposto: nós apenas refletimos em ponto pequeno um fenômeno global ? em seu múltiplo sentido de englobar boa parte do globo terrestre, da rede Globo de televisão e ainda de outras redes. Coisas da Era da Imagem. E este fenômeno global admite uma ordem de determinação, que nos cabe compreender.
O fato é que, se há lugar ao sol para todos os filhos de deus, o mesmo não pode ser dito da luz dos Holofotes, que são bem mais importantes do que o sol na Sociedade do Espetáculo [Debord, G. A Sociedade do Espetáculo, Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 1997 ]. Os filhos da Mídia certamente desfrutam de maior visibilidade do que os comuns, mortais, filhos de deus.
Sempre soubemos que ?quem é vivo aparece?, mas atualmente a coisa se inverteu: ?quem aparece está vivo?, e quem não aparece desaparece, vítima de um mal gravíssimo, o anonimato. E mais: quem aparece está vivo, porém não para sempre. Assim que os Holofotes passam a iluminar outra pessoa, esta se transforma em cacique e o primeiro retorna ao pó. Há muito tempo deixamos de nos contentar com 15 minutos de fama. E não foi nossa vaidade que aumentou. É que sabemos que a luz dos Holofotes se tornou uma questão de vida ou morte.
A Sociedade do Espetáculo se comporta de acordo com uma lógica que afirma que "o que aparece é bom e o que é bom aparece" (p. 16). Além da gritante circularidade, nota-se o absurdo desta afirmação, pois se você aparece, caro colega, tanto pode ser bom como não. E vice-versa, você pode ser talentoso e nem por isto aparecer ? é claro que isto pode ou não constituir um problema para você. Isto, contudo, não importa na Sociedade do Espetáculo, que criou também esta curiosa forma de seleção ?natural?. Quanto mais você aparece, mais aparecerá, isto é, mais será cortejado pela Mídia psicanalítica ? revistas, mesas redondas, fóruns, palestras, cursos, cargos políticos e científicos. A partir disto, seu séquito de alunos e supervisionandos estará garantido. Neste ponto você começa a se transformar numa griffe, num objeto de consumo. E, é claro, terá muitos pacientes que pagam bem. De acordo com esta seleção ?natural?, se você não aparece, a culpa é sua e de sua incompetência ? se não profissional, certamente de marketing pessoal. Ninguém sentirá sua falta quando submergir no anonimato.
Cada um de nóós tem um coeficiente de exposição à Mídia (C.E.M.). Se o seu C.E.M. for igual a cem, ele se multiplicará exponencialmente, pois nenhum evento poderá dispensar sua presença e a cada novo evento seu coeficiente só faz aumentar. Se seu coeficiente for zero agora, ele tenderá a zero no futuro, pois sua chance de vir a ocupar a luz dos Holofotes é cada vez mais remota. Na verdade, o seu CEM pode até deixar de ser zero e aumentar, digamos, para dez. Porém neste mesmo período de tempo, quem tinha CEM = dez passa a ter vinte, de modo que na prática o CEM estrutural tende a permanecer constante.
E não é à toa que existem centenas de eventos por semana, psicanalíticos ou não. É que seus promotores também precisam sobreviver. Seus empregos dependem, naturalmente, da bilheteria ? nem eles escapam à Lei do Holofote e da seleção ?natural?. A visibilidade do evento é sua visibilidade. O sucesso do evento é seu sucesso. Sendo que a bilheteria depende dos palestrantes, é óbvio que o psicanalista com altíssimo coeficiente de visibilidade será disputado a preço de ouro.
Suponhamos que este, assoberbado pelos compromissos, sugira ao organizador um outro nome, também competente porém, infelizmente, mais disponível. A menos que este tenha um altíssimo CEM, ? por exemplo, que o evento seja organizado por uma instituição de griffe ? que garanta a bilheteria independentemente dos palestrantes, é pouco provável que ele se arrisque a convidar um novo nome. Assim, embora no médio prazo até compensasse promover novos talentos de modo a ter mais opções no futuro, é provável que a resposta seja: "Quem é este sujeito? Quem o conhece? De onde surgiu? Não tem nome. Não atrairá público". E sequer podemos falar em complô ou monopólio do poder. Simplesmente é assim.
Tomemos, a título de exemplo, um tipo de evento que conhecemos bem: os congressos. O espaço deverá ser dividido entre quem tem o que dizer. Porém hoje em dia quase todos têm o que dizer! Assim, numa mesma semana, num mesmo local, pode haver vários congressos simultâneos, de modo a oferecer espaço a um grande número de pessoas. Nem vamos falar do óbvio, a saber, que certos espaços conferem ao expositor um CEM maior do que outros, e que os convites obedecem a critérios de ordens diversas, em que a consistência do orador nem sempre é o que conta mais. O interessante é ter sido criada há alguns anos a categoria de ?poster?, que pode contemplar ainda um bom número de expositores nos intervalos entre os Holofotes principais e secundários. Com tantas apresentações simultâneas, é possível que seu trabalho seja apresentado e discutido apenas por seus amigos, que apesar de já conhecê-lo (ao trabalho), foram gentilmente prestigiar você. Veja bem, não penso que haja desinteresse dos outros congressistas por seu trabalho. Penso, apenas, que eles estarão, neste mesmo horário, prestigiando seus respectivos amigos em outra sala. No final, ficam todos mais ou menos satisfeitos, especialmente os organizadores do congresso, pois as inscrições estão garantidas: haverá, no mínimo, tantos inscritos quantos forem os expositores ? que, como vimos, são muitos.
Se você tem CEM = zero, você também será disputado a preço de ouro, porém na categoria de ?público?. Você pode ser, por exemplo, um precioso aluno de um seminário, ou leitor das centenas de publicações psicanalíticas. Aliás, uma pesquisa interessante seria procurar descobrir "quem lê quem". Tenho um palpite de que a coisa é estrutural. Deixando Freud de lado, por ser hors concours, acredito que nossos analistas seniors lêem (quando sobra tempo) analistas contemporâneos cujo CEM é maior que o deles ? por exemplo, aqueles que estão sob a luz dos Holofotes Internacionais. Acho pouco provável que um analista com um CEM respeitável leia um colega desconhecido. Claro que há exceções ? alguém pode estar fazendo um levantamento bibliográfico sobre determinado assunto, e tropeçar em um artigo interessante escrito por um novato. Mesmo no caso de minha hipótese vir a ser confirmada, não creio que se trate de desprezo, como poderia parecer à primeira vista. As razões são de outra ordem: pura falta de tempo, pois o analista sênior está ocupado escrevendo o trabalho que deverá apresentar na semana que vem, numa mesa redonda. De modo que, se você tem o que dizer e gosta de escrever, é fundamental ter alunos. Ao criar sua própria tribo, você garante um mínimo de leitores.
Por falar nisto, se você me lê agora, agradeço sinceramente o tempo que está despendendo comigo. Espero que esteja se divertindo ? é o mínimo que posso lhe oferecer em troca de sua generosidade. Pode ser que você esteja lendo Caciques e Índios pela curiosidade que o título despertou em você. Porém é igualmente possível que eu tenha um C.E.M. igual, ou pelo menos um pouquinho maior, do que o seu, conquistado com publicações anteriores. De qualquer modo, embora eu tenha a consciência de estar, neste exato momento, ocupando a luz dos Holofotes por quinze minutos, acredito na importância do que tenho a dizer. Espero sinceramente que o texto lhe traga algo de novo e faça sentido para você. Assim, pelo menos terei merecido sua atenção.
E se há, como acredito, tão poucos leitores, por que nós, psicanalistas, escrevemos tanto? Por prazer e por necessidade, em primeiro lugar. Queremos e precisamos compartilhar nosso trabalho, idéias, questionamentos e descobertas com os colegas. É importante escrever e publicar. Por outro lado, é inegável nosso prazer em ver nosso texto impresso numa revista de qualidade, e aqui estamos adentrando nossas questões narcísicas. Há o nível da sobrevivência ? é importante ?ocupar os espaços?, como se diz hoje em dia, de preferência com um texto interessante que de fato mereça o espaço concedido. Estas, contudo, são nossas motivações conscientes. Em nível inconsciente, mencionei a lógica da Sociedade do Espetáculo (quem aparece é bom e quem é bom aparece), a seleção ?natural? que decorre desta lógica, e a dinâmica do Coeficiente de Exposição à Mídia de cada um.
Sei bem que fiz uma série de afirmações sem embasamento teórico algum. O leitor (!) poderá objetar que se trata de um ponto de vista altamente subjetivo, além de pessimista. Pode não parecer, mas acabo de realizar uma investigação psicanalítica [Minerbo, M. Estratégias de Investigação em Psicanálise, Casa do Psicólogo, 2000] sobre um pequeno setor de nossa realidade, que bem pode ser batizado de ?mais caciques do que índios?. Recordando, procurei descrever algumas das regras inconscientes do campo que determina um comportamento manifesto intrigante:
** nossa necessidade de escrever e publicar, apesar dos poucos leitores;
** nosso desejo de dar aulas, seminários e palestras, apesar das platéias cada vez mais rarefeitas.
Prosseguindo minha investigação, talvez assumindo um tom mais sério e convencional eu me torne mais convincente. Não é apenas a lógica do espetáculo que nos impele a precisar ?ocupar espaços?. O mesmo sintoma é produzido pela angústia da impotência. O sujeito contemporâneo está exposto a uma dupla injunção, contraditória, que dilacera o ego. O mundo tecnologizado e massificado torna praticamente impossível a ação individual eficaz [Herrmann, F. Psicanálise do Quotidiano, Artes Médicas, 1997]. Criar ou mudar alguma coisa, no mundo de hoje, exige um esforço hercúleo. A inércia que mantém as coisas em seu rumo habitual parece intransponível. Para implementar qualquer projeto de porte é preciso uma equipe de pessoas altamente motivada. Por outro lado, nossa cultura só admira e respeita quem ?faz e acontece?.
Nosso imaginário, portanto, valoriza a performance, o fazer. ?O que você tem feito??, é o que perguntamos a alguém que não vemos há tempos. Uma boa resposta poderia ser ?estou escrevendo?. Escrever e publicar demonstram que a pessoa passou na prova de ?potência e desempenho?, merecendo como prêmio maior exposição aos Holofotes.
Neste imaginário somente alguns poucos parecem gozar do mítico estado de completude narcísica. São as celebridades. Revistas (Caras; Chiques e Famosos) foram criadas especialmente para estas pessoas que, em nossa cultura, se transformam em verdadeiros ?objetos de desejo?. É evidente que serão cobiçadas em todos os sentidos. Sem podermos nos descolar deste imaginário, se as celebridades detém toda a potência, resta-nos o lugar da impotência frustrada por uma performance que nos parece pífia. E isto não pode ser creditado apenas à neurose de cada um. É preciso considerar que somos a expressão individual de algo maior, o inconsciente de nossa época.
Lyotard [Lyotard, The Postmodern Condition: a report on knowledge, University of Minessota Press, 1993 (9a. Ed)] procurou compreender que critérios determinam e legitimam a produção de conhecimento no mundo contemporâneo. Durante do período histórico denominado modernidade, os critérios de validação e legitimação desta produção estavam subordinadas à grande narrativa iluminista. A pós-modernidade se inicia quando esta produção já não está a serviço da emancipação do homem, nem é um instrumento privilegiado na busca de sua(s) verdade(s). Nestas condições, diz Lyotard, o que passa a legitimar a busca do conhecimento na pós-modernidade é a lógica da performatividade. Performance significa desempenho. Assim, o que importa não é que tipos de pesquisa levarão à descoberta de fatos verificáveis, mas que tipo de pesquisa terá melhor desempenho, onde ter um bom desempenho significa produzir mais pesquisas nas mesmas linhas. A lógica da performatividade é tautológica, como a lógica do espetáculo: um sistema (ou uma pessoa) justifica sua existência na exata medida em que consegue manter-se em movimento. O movimento não visa outra finalidade que a de continuar em movimento (continuar no poder, continuar sob a luz dos Holofotes, continuar com o monopólio de certo setor do mercado). Os meios se transformam em fins.
Nesta mesma linha, o fim do poder legitimador da metanarrativa iluminista tem uma importante conseqüência: a saturação inerte [Baudrillard, J. Les Stratégies Fatales, Paris, Bernard Grasset, 1983.]. Quando um sistema deve legitimar sua existência mantendo-se em movimento, independente de qualquer finalidade externa a ele, tende a um estado que só pode ser descrito desta forma. O sistema irá reproduzir-se infinitamente até que a saturação lhe impeça os movimentos. Hipertelia, termo de Baudrillard, é a lógica que determina o movimento de todos os sistemas para além de sua finalidade racional (telos = finalidade), resultando na ?obesidade? dos sistemas. Tal proliferação ao infinito pode ser comparada à proliferação enlouquecida das células cancerosas, que acaba por inviabilizar o funcionamento do órgão atingido.
Se isto acontece com todos os sistemas (de informação, de comunicação, de produção, etc), o sistema de produção de papers e eventos psicanalíticos não poderia comportar-se de outra forma. Editam-se mais livros do que podemos ler. E o que fazer com as pilhas de revistas que se acumulam sobre nossas mesas? Se, antes, escrever um paper era uma atividade necessária, agora o excesso de papers ? muitos deles nada acrescentam ? nos confunde e paralisa. Desconfiamos que certas revistas são editadas apenas para garantir a visibilidade de uma instituição e ?ocupar os espaços?, funcionando principalmente como peça de marketing. Enfim, como vimos, a finalidade deste furor produtivo é manter o indivíduo/instituição em evidência. Na verdade, é preciso reconhecer que tudo isto visa, no fundo, garantir a sobrevivência da própria Psicanálise, nosso ganha-pão. Apesar de ter seu lado um pouco ridículo, não é, em absoluto, um motivo fútil.
Mas será que não temos alternativas a não ser transformar nosso saber em mercadoria e investir em publicidade, para garantir o mercado consumidor?
Acredito que nosso saber tem consistência suficiente para prescindir, até certo ponto, dos Holofotes, porém pode perdê-la (a consistência) quando nos tornamos reféns das regras do jogo.
Podemos saber que fomos cooptados pelo sistema quando:
** nossas ações são sistematicamente calculadas para garantir o mercado. Neste caso, acabamos por perder de vista o principal, que é a produtividade clínica e intelectual;
** negamos que o sistema funciona de acordo com as regras acima enunciadas e, com veemência e indignação, pretendemos ser exceção à regra;
** a Psicanálise se esquece que uma de suas funções é, justamente, explicitar as regras do jogo social, fazendo pleno uso de seu potencial crítico.
Quando nos tornamos reféns das regras do jogo e invocamos os Holofotes em vão, subimos ao palco como atores despreparados. Triste espetáculo. Em pouco tempo o espaço será ocupado por outros saberes ?mais atualizados, modernos e eficientes?, com prejuízo efetivo para a Psicanálise.
Enfim, o que nos garante um lugar ao SOL é termos coisas novas, importantes e interessantes a dizer. A luz dos Holofotes será mera conseqüência ? muito bem-vinda, é claro.
(*) Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.