PORTUGUÊS DE MENAS
José Colucci Jr., de Boston (*)
Um amigo, o escritor Nelson de Oliveira, autor de Subsolo Infinito, perguntou-me certa vez por quê gramático tem de ser tão radical. Estranho método esse, o de perguntar aos ignorantes. Que pode um engenheiro saber de gramática? Devia ser provocação. Lembrei-me logo de Ambrose Bierce, que definiu gramática como "um sistema de armadilhas estrategicamente colocadas na escada da ascensão social, à espera dos pés do homem que vem de baixo". Sei do que Bierce falava. Ainda me doem tropeções que dei em partículas apassivadoras, topadas em defectivos e cabeçadas em hipérbatos. O assunto virou artigo e, para a sorte dos leitores, a mesma pergunta foi feita a interlocutores mais qualificados ? Ferreira Gullar, Ignácio de Loyola Brandão, Décio Pignatari, José Paulo Paes e Ariano Suassuna. Repetirei aqui a minha resposta ao Nelson, pois considero-a relevante para a discussão do papel da imprensa na preservação da norma lingüística, sem dizer que não são muitas as oportunidades que tenho de misturar gramática e biologia. Prometo esconder o melhor que puder minha ignorância em ambas.
É comum comparar-se a língua a um organismo vivo, principalmente ao se criticar a rigidez dos gramáticos e a tirania dos dicionários. Faz sentido. Como os organismos vivos, a língua vive em constante mudança e adaptação ao ambiente. A essência da língua, como a da vida, é informação. Como os códigos da vida, os códigos da língua expressam-se de maneira ligeiramente diferente em cada indivíduo, e se combinam pelo contato entre os indivíduos. A evolução das línguas deu-se por processo análogo ao da evolução das espécies, a partir de troncos comuns. Poderíamos continuar as comparações por uma série mais ou menos longa, mais ou menos poética. O que interessa ao exercício que proponho, no entanto, é levar um pouco mais adiante a comparação biológico-lingüística, para extrair dela a conclusão que pode surpreender.
A gramática da vida é armazenada no genoma, que é todo o DNA de um organismo. Se o DNA não preservasse eficientemente a informação original teríamos câncer ou não seríamos a cópia mais ou menos fiel que somos de nossos antepassados. Nos cresceria um olho a mais na testa, uma bola a mais no saco ou um seio a mais no peito. Por outro lado, se o DNA fosse copiado perfeitamente todas as vezes, não haveria evolução e a base para a criação de espécies novas, mais adaptadas ao ambiente, desapareceria. Felizmente as células dispõem de mecanismos de reparo do DNA que possibilitam o meio termo entre esses dois extremos.
Pequenas alterações genéticas ocorrem freqüentemente em todos os organismos animais e vegetais, mas os mecanismos de reparo "consertam" a informação defeituosa e restituem o DNA à sua forma anterior. Os mecanismos de reparo, embora eficientes, não são perfeitos. Deixam às vezes passar alguma alteração no código genético. A chance disso acontecer aumenta com o tempo (por isso os mais velhos têm mais câncer) e intensidade da exposição a fatores mutagênicos (não se esqueçam do protetor solar), mas nem todas as mutações são fatais. Mudanças na seqüência do DNA podem ocorrer na maioria das células sem que sejam transmitidas aos descendentes quando o organismo se reproduz. Quando ocorrem nas células germinativas (óvulos ou espermatozóides) são transmitidas às gerações seguintes. Na natureza, sob a ação de pressões ambientais, mutações que ofereçam vantagem competitiva são selecionadas e se estabelecem ao longo do tempo. O resto da história todo o mundo conhece. Foi assim que o tamanduá ganhou a língua comprida, o tatu o casco duro e a anta… não sei bem o que a anta ganhou. Evolução não é mais do que a mudança do padrão genético de uma população.
Hordas bárbaras
Voltemos à comparação entre genética e gramática. O falar do povo, os experimentalismos, os estrangeirismos, o rádio e a TV produzem mutações aleatórias no padrão da língua. As pressões ambientais derivam de mudanças sociais, políticas e tecnológicas. Nesse contexto, os gramáticos são os mecanismos de reparo, as enzimas do DNA lingüístico. Protegem a língua dos ataques da mutação desenfreada e garantem a sua estabilidade. Sem eles, desfigurado por solecismos e barbarismos, o português viraria um caçanje. Mas, como as espécies, a língua precisa evoluir senão morre. Se os gramáticos cumprirem seu papel, apenas as mutações que se provarem resistentes ao tempo e eficientes no novo ambiente serão introduzidas na norma lingüística. O conservadorismo dos gramáticos é necessário para evitar a proliferação de estruturas deletérias, para que o tumor não entre em metástase.
O português do Brasil está sujeito a ataques desmesurados de fatores mutagênicos. A imprensa, que deveria representar um fator de estabilidade, apressa-se a assimilar o coloquial e o estrangeiro ? quando não a ignorância ? em nome de uma suposta modernidade. Jornalistas mal preparados, enxacocos, em cujo ouvido inculto uma mesóclise equivale a um palavrão, são os novos referenciais, já que ninguém lê livros. Nesse quadro, minha preferência é por gramáticos conservadores, como o falecido Napoleão Mendes de Almeida, injustamente chamado de "o nazista da gramática". Não me sinto suficientemente protegido das hordas bárbaras pelos novos gramáticos de baixo teor de radicalismo normativo. Gente simpática, mas que condescende demais com o coloquial. Prefiro o Napoleão, ainda que ele me corrigisse a frase anterior, já que nela um dos termos ? o "mas" ou o "que" ? não tem função sintática. Gramático tem de ser radical.
(*) Engenheiro, e-mail <j.colucci@rcn.com>